sábado, 30 de dezembro de 2017

Poema Simpático

Pessoas vêm,
Pessoas vão.
Nunca diga um simples sim,
Nunca diga um simples não.
Aos poucos você conhece enfim
A oportunidade de seu coração
E o som da sua canção.

As rosas tem espinhos
Não me nego afirmar
Mas quão bela são as rosas
Que os espinhos conseguem formar?
O mundo feito de rosas é
perfeito você pode concordar.
Mas somente vale rosas que
deixam seus espinhos tocar.
E as que tocam com rosas nossos espinhos
não tem como não amar.

Rosas vêm,
Rosas vão.
Nunca goste de uma simples espinho,
Nunca goste de uma simples rosa em vão.
Aos poucos você conhece sozinho
E adora sua canção
Sem rima, mas com o coração.

Trecho de Outrora
Por Jayme Mathias Netto
vivisseccao.blogspot.com

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Sangue

Dizem que o sangue é um fluido vermelho, abundante em nosso corpo e que é responsável por funções muito importantes para a manutenção de nossa vida. A genética vem nos mostrando que nele, como em muitas outras partes do corpo, estão estruturas que carregam informações que são passadas entre as gerações, oferecendo, então, os caminhos pelos quais as formas de nosso corpo e mente serão desenhadas. A ciência genética avança, é verdade, mas não precisamos dela para saber dos prodígios espirituais e fenomênicos desse líquido que está presente nas veias de cada um de nós - afinal, antes de nosso tempo, Jesus já não sabia que era descendente de Davi, sendo filho de José, e este de Jacó, e este de Matã, e assim por diante até que se chegasse no patriarca Abraão? O sangue é o pré-requisito do tempo. O sangue é permanência e ruptura ao mesmo tempo; o sangue é a dialética encarnada. Ao invés de representar uma determinação natural, uma fatalidade biológica, através das quais os homens e mulheres seriam cópias uns dos outros nas suas diferentes gerações, é nele que as milhares de possibilidades de combinações pela via da mistura de dois códigos genéticos acontecem. Pelo sangue, a Maria assemelha-se a Raimundo, seu pai, no que este tem de inquieto, questionador, insubmisso. Mas enquanto este é saudoso de seu "velho tempo", onde o mundo era melhor, aquela busca as rupturas das estruturas de hoje para que o futuro represente as possibilidades de uma vida melhor. O sangue que corre num, corre na outra, mas como esse fluido é o lugar das possibilidades infinitas, ele também representa a substância capaz de dar passagem aos novos espíritos nascentes dos novos tempos. Mas, deixadas de lado as ilações distantes, resta-nos perguntar: de que forma, realmente, o sangue se manifesta em nós? A resposta desta pergunta é o motivo d'eu ter feito este texto. É muito estranho, mas também incrivelmente bonito, ver como o sangue que corre em mim e que corre em meu irmão faz com que nos façamos parecidos, tenhamos um jeito de falar parecido, tenhamos cabelos parecidos, olhos da mesma cor. No meio da caoticidade, dentre as zilhares de possibilidades das coisas acontecerem de maneiras infinitamente distintas, duas pessoas podem partilhar de certas características, ocasionando o fato delas poderem se identificar como pertencentes a algo comum entre uma e outra. Eu e minha mãe temos os mesmos olhos, e ainda partilhamos da mesma personalidade, dizem. Reconhecemo-nos como seres aparentados, e esta palavra é rica: aparentados em aparência, mas, também, aparentados em parentesco. E o sangue que corre verticalmente, corre horizontalmente, e lá vai você aparentar-se aos primos. São todos muitos diferentes, mas são todos aparentados, ao final. Por fim, digo que dizem que o capitalismo acabou com o sangue, que o individualismo vem minando as sociabilidades derivadas desse fluido, marca tão característica de tempos pretéritos. Isso pode ser verdade, e esse pode ser realmente um dos intuitos da modernidade capitalista. Mas a questão é se isso vai se tornar realidade: na guerra entre sangue e capitalismo, a vitalidade do espírito humano que transcende gerações irá perecer? Eu acredito que não.

Por Willem Carneiro
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domingo, 24 de dezembro de 2017

Eu tenho que...

Eu não tenho que te convencer.  
Não tenho que procurar os melhores argumentos para fazer com que você aceite o que penso.
Eu não tenho que ser compreendido.
Não preciso fazer com que você entenda que eu não quero ser concebido.
Eu não tenho que dizer nada.
Não preciso continuar falando asneiras e fingindo que todas elas fazem sentido.
Eu não tenho que dizer o que eu sinto.
Não preciso bradar aos quatro cantos minhas pulsações nervosas que jamais adentram num texto escrito.
Eu não tenho que ser feliz.
Não preciso ir aos domingos no zoológico com a família dar pipocas aos macacos.
Eu não tenho que ser solidão.
Não preciso conviver mais comigo na procura do que não sou.
Eu não tenho que ser.
Não preciso afirmar aquilo que não é.
Por Paulo Victor Albuquerque
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domingo, 17 de dezembro de 2017

Poesia Express

De repente a rima do repente não é mais assim, tão boa.
A estrofe, uma catástrofe de versos que provocam o inverso do que propôs o poeta.
A melodia se torna repetitiva.
As cores daquele quadro parecem as mesmas dos outros três anteriores.
Não há mais fantástico. Tudo é plástico, estático, mecânico.
Fruto de um ou dois minutos de reflexão. Da "necessidade".
De repente tudo é monocromático, idiossincrático, dependente de uma série de acontecimentos do dia a dia.
A rotina que passa pela retina enfeitada por um ou dois frufrus.
Tal como um macarrão instantâneo, surge mais um feto, sem muito afeto, fruto de um aborto poético.
Aquele poema ok.
Quantos likes ele merece?
Dentro de quantos "amei" cabe a alma de um poeta?
A poesia só é bela quando não necessita. Ela mesma se basta.
Comove por ser perfeita, fechada em seu universo ao mesmo tempo em que se abre aos encaixes de quem a aprecia. Se transforma a cada olhar.
Desdobra a cada declamar, lágrimas, raiva, amor.
Quanto likes valem o aborto de uma idéia? Que se florescesse amanhã seria eterna, mas que hoje torna-se uma frase efêmera de Instagram.
Não aborte sua poesia!
Proteja-a como a cria de uma leoa feroz.
Alimente-a com as mais belas expressões do seu eu. Faça dela foz.
Para que na hora certa ela desemboque para o mundo e seja para ele, mais que uma frase de para-choques.

Por Júlio César Barbosa Dantas
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domingo, 10 de dezembro de 2017

Muníficos homens que ainda há

Já amanheço ...
o dia farto de alvura, ínclito

Antes inundado em negrume do dia
que anoiteço, insólito

À espera de um otimismo
interino

Do ponto de vista de quem tem
medo...

Mas no meu horizonte
é escolha

é em minha vitalidade que
essas ideias aferrolham...

No meu âmago
eu sou régio

A minha esperança
eu balizei como meu projeto...

E os a mim iguais, penso
“que mal há?”

Tem gente que quer é amor
e a rara alacridade do dadivar...

Por Jayme Mathias Netto

domingo, 3 de dezembro de 2017

O bote

O inverno chegou no sertão. A água que cai derrete o solo numa lama pastosa que atola o pé dos dois meninos felizes que correm embrenhados nos mato. Eles correm pois a chuva anuncia a chegada da grande serpente que engole tudo pela frente. O anseio dos dois é de fazerem parte do bucho da gigante, desejam serem engolidos em uma abocanhada só.

lá está ela, seu movimento é ligeiro. A cascavel feroz agita a cauda ao avistar suas duas presas. O ataque é certeiro. Não há saída. A digestão da fera consome os meninos por inteiro.

Após o descanso do bicho os dois são expelidos e voltam para sua casa alegres como se eles é que tivessem feito a refeição. “Que animal magnífico!” Pensava Emanuel consigo. “Pena que só fica aqui enquanto chove”. Mal sabia Emanuel que aquela foi a última vez que ele fôra engolido pela serpente.

No dia seguinte receberam a visita de um homem muito ilustre que até mesmo seu nome era subjugado pela alcunha de Doutor. Bicho da cidade, homem da ciência, inteligência incontestável. Ora, logo os meninos se aperriaram para mostrar o bicho que eles encontraram no meio dos mato, ver se o Tio Doutor gostaria de conhecer.

Enquanto caminhavam, Alberto imaginava o espanto que seu Tio iria receber com o bote da serpente, sorria sozinho enquanto andava construindo sua imaginação. Lá está ela. Os dois fecham os olhos. A respiração pára esperando o bote. Nada. O Doutor imóvel fala. “Mas isso é só um rio”. Morte. A morte da serpente estava anunciada. O homem da ciência proclama o seu sepulcro.

Os invernos se passaram e Emanuel nunca mais voltou para o ventre da serpente, a terra rachada ou a lama sebenta refletiam na melancolia do seu olhar. Alberto, por sua vez, tomou outra escolha, decidiu fugir da terra dos homens e ir morar no bucho da cascavel, pois somente lá ele era feliz.

Certa vez me embrenhei no meio dos mato e perguntei para a chuva: “O que vale mais para uma única vida, a realidade do barro ou a felicidade da serpente?”.       

Paulo Victor Albuquerque
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domingo, 26 de novembro de 2017

Desafinado

Acorda, a corda que segura a melodia do teu juízo arrebentou.
Arranje um arranjo que concorde com os acordes dessa canção melancólica.
Que segure o som do fracasso mesmo com uma corda de aço a se fazer faltar.
Afine, afim de que o fim seja a mais doce e fina melodia.
Porque a música da sua vida não para, ainda que não haja cordas.
Mesmo que o único som seja o do passar das horas no relógio a estalar.
Invente uma forma de com as cordas restantes se reinventar, mesmo que numa reviravolta impressionante, encontre uma dissonante que teima em contrariar a harmonia das tuas ideias.
Encontre o contratempo e o vire ao seu favor.
E se mesmo assim, a música desafinar, toque com suas cordas quebradas, da maneira que for.
Porque na música da vida, o silêncio é a morte.
Júlio César Barbosa
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 19 de novembro de 2017

Filosofada

No solipsismo contemporâneo. Cada ente na sua casca. Cada carapaça protegida em nome de uma pérola de uma ostra morta. O ente doente de tanta especificidade.
Nas cidades, a pressa de uma dobra tão difícil quanto rara. Os sinos na igreja anunciam que uma dobra é só um som para os solipsistas. Eles, cheios de experiências, bradam por um eu que não lhes pertence.
O ente do ente, doente de solipsismo, porque é especialista em contemplar seu próprio umbigo, apequenou tudo. Diz ser capaz de ter amigos, mas como isso seria possível se só a mônada lhe resta como abrigo?
Sem janela e sem portas, o pobre coitado. Isso não lhe cabe, porque tocar no ser como mais que a totalidade dos entes é coisa pra quem sempre gosta de dar uma filosofada, para quem rasga a carapaça e arregaça as mônadas, como fizera com as mangas da camisa na coragem.
Rasga os entes e a especialidade com rebeldia e só ai é que nasce o filósofo, com pérolas e argumentos, com vontade de vida. Um alfaiate que rasga e costura carapaças especialistas. Cria sua cordialidade e sempre renasce como um possível dual, trial, múltiplice em máscaras que vão e voltam do ser. É um vírus, não uma doença. O drible que se faz em si e no outro, dribla porque vai e volta sem fronteira. Em vez de ficar na doença do "cada um no seu quadrado" é convalescente e abre a totalidade. Sua tarefa é leve porque desliza nas ostras abertas, quebra carapaças e desvaloriza as pérolas especialistas podres. Ele arranca do ente uma forma do ser. E tudo ele sabe ser capaz de dobrar. Dobra novamente as mangas que costura e agora recomeça sua mais bela atividade em outros entes, outros solipsistas, outras especialidades. E o ser sempre cochicha com amor e generosidade no seu ouvido que ele é uma colcha de retalhos desapercebida.
Jayme Mathias
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 12 de novembro de 2017

Universos paralelos

O universo permite a autocriação de microcosmos, cada qual com suas próprias leis. Estas leis não estão necessariamente interligadas, possuem independência e estrutura singulares. O único vínculo entre esses microcosmos possíveis é com a abertura do todo universal. Aqui nos deparamos com a relatividade do tempo, do espaço, com os universos possíveis.

A abertura da autocriação de microcosmos distintos permitiu as grandes metrópoles capitalistas produzirem os espaços fantasmagóricos. No interior desses ambientes vislumbramos a efetivação da relatividade einsteiniana. Resta-nos indagar: até que ponto os espaços fantasmagóricos influenciaram a relatividade física, ou a relatividade teórica contribuiu na constituição fantasmagórica?

Outro atributo proveniente da abertura cósmica se manifesta na produção da linguagem pragmática e seu jogo linguístico. As estruturas lógicas linguísticas somente tornam-se possíveis dentro da abertura microcósmica do universo.

Todas essas estruturas somente são possíveis devido a abertura material do cosmos. O que leva a matéria a se estruturar em suas singularidades cósmicas? O Ser é aquilo que permite tal associação.

Por Paulo Victor Albuquerque

domingo, 5 de novembro de 2017

No love

Ser poeta sem falar de amor.
É retirar a carne da dieta do predador.
É ser constante aluno, nunca preceptor.
Não sei falar de amor.
Seja pelo clichê, ou pelos porquês que sempre circundam as paixões.

Falar de amor exige a dor de perder, de não ser correspondido, de sentir a rejeição ou do constante perigo de cair aquém de alguém que não te quer.
Falar de amor é falar de sofrer, não por si,  mas por alguém que é tão imperfeito quanto você.
"É ferida que dói" e se vê!
É desejo sempre latente, mas também atitude de inconsequente.
Eu prefiro a dor daquilo que consigo ver.
Prefiro a razão. Não dar vazão para aquilo que até a alma é capaz de corroer.
Amor foi feito para ser sentido não escrito.
Permaneço então um poeta vegano
seguindo a dieta de restrição evitando  uma alimentação estabanada.
Agora percebo que é tão verdade o que disse antes que do amor falei, falei e não disse nada.

Por Júlio César Barbosa
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domingo, 29 de outubro de 2017

Opaco

Implodir
Como o dentro que adentro
Implodir
Como o oco enquanto alento
Implodir
Como eco que professo
Implodir
Como o nexo que confesso
Implodir
Como o silêncio!

Por Jayme Mathias Netto
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domingo, 22 de outubro de 2017

Sem freio.

O tempo ta
                 rolando
                             ladeira
                                         abaixo
____________________________o
Quem segura o tempo?  O pensamento
                                                             °
O pingo do tempo consome as eras, risca o firmamento, engole Kronos, lambuza o argumento.

Paulo Victor Albuquerque

domingo, 15 de outubro de 2017

Sentimento em 4 estrofes

Cego, sigo a saga do sensível.
Certo de que o fim me é alheio.
Disperso, no espaço, escasso.
Como um porco no campo de centeio.

Destruo, destrono, desvirtuo tudo aquilo que me apoia.
Equilíbro-me entre a sanidade e a paranóia.
Torço para que a clarabóia não suporte.
O peso das frustrações de um passado latente.

Chamo pela chama falsa de uma vida plena.
Clamo pela erva vil que envenena minha mente.
Deslizo, liso pela borda do abismo.
Deduzo o relevante, uso o incoerente.

A mente, mente num último recurso.
Mostra-me um futuro distante,  contente.
Mentiras, em tiras de romance barato.
Descarrego a última bala do pente.

Por Júlio César Barbosa
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domingo, 8 de outubro de 2017

O Plano

Antes

Durante

Depois

São planos

O antes que já foi

O durante que já passa

O depois que nunca vem 

Até que renasça 

Como antes também

Planos são fumaças

Que fogo não tem


Por Jayme Mathias 


domingo, 1 de outubro de 2017

Uma sombra que não é minha

As crianças são seres extraordinários, sempre nos despertam para o novo. Recentemente me deparei com um vídeo em que uma garotinha se espantava com sua própria sombra. O espanto socrático nunca foi levado tão a sério como por essas criaturas. Tal fato nos revela como o espanto não se limita àquilo que nos é externo, ele também se produz com tudo o que é projetado por nosso corpo. Parece que as coisas que emanam de nosso corpo não são produto de nossa consciência, daí o espanto. Na verdade não podemos nos surpreender com aquilo que nos pertence, que temos o controle de criação. Nos espantamos sim (!), com o desconhecido, com o fabuloso ou o estranho.
A criança se espanta com o novo. O que ela admira não é a última novidade em modelo de celular, antes é a existência do aparelho de comunicação a distância, é a invenção do “celular” e não o seu tipo ou marca. O que ela produz brincando não lhe espanta, mas ela traz para dentro de seu jogo todos os objetos de sua admiração.
Para surgir o espanto faz-se necessário a distância. Enquanto escrevo esse texto ele é coisa minha, outras vezes não. Com a distância temporal nos espantamos com aquilo que produzimos, ela se torna algo alheio, pertencente ao mundo, detentor de vida própria. O espanto é o reconhecimento do Ser que não está em nós, é o vislumbramento da superioridade da vida que não nos pertence, é o despertar de todas as coisas em sua magnitude. A criança se espanta com a vida do Ser.

Paulo Victor Albuquerque
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domingo, 24 de setembro de 2017

Magna Córtex

Nada! Nado em meio às ondas do cerebelo buscando um equilíbrio mais árduo que o de um equilibrista na corda bamba.
A sinopse da sinapse todos já sabem. O axônio transmite o impulso pelo neurônio sem pseudônimo, anônimo e ao mesmo tempo conhecido por todos.
Ainda assim, seu caminho ninguém descreve.
Finalidade oculta, até se revelar.
A eletricidade serpenteia pelos sulcos singulados e por todos os lados, lapsos de loucura são autojustificados, como devaneios, de um descontrole momentâneo.
Como em uma cidade noturna, observada das alturas, a gravura dos lóbulos se ilumina de eletricidade.
No giro singulo está a verdade despedaçada de porque engulo o tempo sendo linear. "Mas eu já vi!" Deja vú. C'est la vie.
Submerjo mais uma vez na tentativa de uma justificativa ontológica da resposta fisiológica ao que designamos de dor, amor, temor, Deus.
Na epífise neural, o ideal que  separa o homem do sobrenatural é progressivamente suprimido, pelo comprimido analgésico da "normalidade".
A pineal involui. A proximidade do surreal não se inclui nos planos do homem "civilizado", pelo menos pela manhã. A noite, não há distinções entre o muçulmano, o católico ou o evangélico, o mundo psicodélico não escolhe suas vítimas pela religião.
De um lado para o outro, do frontal ao parietal, do occipital ao temporal, busco em que momento foi uma boa idéia se livrar da dualidade bicameral, onde os "Deuses" nos diziam o que fazer.
O peso de ser consciente é muito grande, mas seja "hipo" ou "hiper", o tálamo já tem seu ofício definido.
Da dor de pensar a si, do cérebro brotam termos que descrevem a trajetória de um final sem glória, onde a história não tem entrelinhas.
Catarse?Homeostase? Sinergia, Entropia? Distopia? Supremacia!
A mente contempla a si própria, pois antes sóbria tinha o único ofício de executar. Só agora percebe o quão ridículo é pensar em tudo a sua volta e esbarrar na resposta de não ser capaz de se mensurar.

Dormi.

Júlio César Barbosa
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domingo, 17 de setembro de 2017

Vago pela cidade

Vago pela cidade
Vaga
Vazia
Vago pelas ruas
Vaga essa agonia

Vagabundeio
À espreita dos suspeitos
Cúmplices do meu custeio
Vago sou, mas não quando vagueio
Nada há nesse espelho

Cada passo na cidade
Passa
Passado
Cada passagem
Cheia de relógio marcado

Estou cheio
Inchado de devaneios
À espreita do desespero alheio
Espelhando em mim seus anseios
Muito há nesse jogo que medeio

Jayme Mathias Netto
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 10 de setembro de 2017

A guerra dos Fonsecas

Fonseca, general experiente de inúmeras guerras, que como todo ser vivo, encontrou vitórias e derrotas ao longo de suas batalhas. No auge dos seus quarenta e poucos anos já passou por diversas pelejas orquestradas pelo destino: possuiu duas famílias, incontáveis amores, metros de cabelos cortados, bigode sempre afiado. De todas suas vivências nada se compara ao campo de batalha. Nele o corpo se presta a um estado limite entre sua constituição e a fissura, mutilação. Não há momento mais severo, mais engajador. A trepidação da metralhadora se propaga em suas células, repetição acelerada que lhe traz o prazer sexual. O choque do tiro, da luz, da bomba, do inimigo inesperado, tudo pulsa num campo de tensões.
Aí você lendo esse texto, criando as imagens do Fonseca em sua mente dentro do lugar de combate, relacionando sua imaginação com algum filme que já assistiu ou coisa semelhante. Você consegue envolver seu corpo com esse texto mais do que o Fonseca com o campo de batalha? Não. O empenho do corpo dentro do combate é completo, a tensão dos músculos, o estalo dos ossos, o ranger dos dentes, o estômago virado.
Acho que foi na primeira quinta-feira do ano passado: Fonseca estava em um novo conflito, tudo normal, corpos dilacerados, córregos de sangue, o velho cheiro de suor e morte, mas algo estava estranho, o nosso general assistia todo o espetáculo da técnica do mesmo modo como presenciava o jantar em casa, as reuniões no quartel, o coito com seus amores. Sabe o que é isso Fonseca? O tédio. Agora sim leitor, não há mais diferença entre sua imaginação e o campo de batalha do novo Fonseca, entre o seu dia, sua vida, e a de mais ninguém. Se o prazer de viver está na luta, e se tudo agora é mais do mesmo, por que continuar na guerra? É na ausência do prazer que a falta de sentido do existir nos aparece. E haverá um dia em sua vida que eu retornarei para narrar o seu desespero também.

Paulo Victor Albuquerque
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domingo, 3 de setembro de 2017

N.C.S

Acordara, mas ao olhar para o teto de seu quarto mais uma vez, pensou em voltar a dormir. Para sempre. Tarde demais! A mente, a mil, já começara mais um dia de seu processo de autodestruição e a primeira pergunta que vinha a tona era: "em que momento da minha vida deixei de ter um propósito? A resposta cortante vinha de imediato: "não há propósito!". Ao dedicar a vida inteira ao que está "atrás da cortina", tudo o que encontrara era triste. Esclarecedor, mas trágico, tal como, quando descoberto o truque, o mágico se transforma em charlatão. Não há arco-íris para quem persegue a verdade, tudo é monocromático. Em quarenta e um anos de vida, perguntas como essas o corroeram internamente todos os dias. O raciocínio, afiado como uma espada samurai, despedaçou qualquer traço emocional suficiente para o fazer mudar de idéia. Como um "Jedi" que se converteu ao "lado sombrio da força", por usá-la em demasia, fora tomado por um "mal" amoral, da apatia, da ataraxia, do nada!
Era como se todos os conhecimentos, estratagemas,teorias, métodos, linguagens, agora corroborassem com a intransponível aporia com a qual se deparava: a da existência.
Sentia- se desnecessário, incompatível, inalcançável. De início, achou que conseguiria, repetia em vão os mantras entoados pela autoajuda de levar "um dia de cada vez" e como alguém que com uma âncora amarrada aos pés, tenta chegar a superfície, sentiu a pressão aumentar assustadoramente a cada questionamento sem resposta, a cada descoberta sem volta, a cada túnel em que a luz no fim era do trem. Sucumbira de tal forma ao mar revolto da depressão, que atingira a região abissal do ser.
Era o homem que descobrira o fogo em meio aos neandertais, o escravo liberto da caverna de Platão, o primeiro a pisar na lua e perceber que não havia ninguém, era tudo e era nada! Levantou-se, olhou-se no espelho do guarda- roupas, mirando os próprios olhos, constatou que não havia nada lá para ver, nada além de seus próprios erros e incapacidades o encarando de volta.
Sem ressentimentos, sem adeus, sem mensagens subliminares, sem moral da história, como um patógeno prejudicial ao corpo,num último esforço, retirou o cinto que ainda estava na calça usada pela última vez cerca de um mês atrás, dobrada no criado mudo e usando os conhecimentos da física, pendurou-se pelo pescoço na porta do quarto que tanto o aprisionara. Antes de fechar os olhos, constatou, ainda nos últimos lampejos, que não havia nada de poético, na agonia de ceifar a própria vida, nada de significativo nas pernas que tremiam com a falta de oxigenação, ou no sangramento nasal devido ao trauma provocado pelo cinto e consciente da escolha feita, aceitou o fardo da pressão exercida em seu pescoço, como muito menor do que a que sentira em seu âmago por ser insuficiente. Jaz a mente de um consciente de ser vítima do anticorpo da vida.

Por Júlio César Barbosa Dantas
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domingo, 27 de agosto de 2017

Sucata

-Merda. Merda.
Ela dava dois tapas na própria cara. O primeiro bem tímido, o segundo assustador de tão forte para ela mesma.
-Agora estamos sem celular e sem casa. Sem celular. Sem casa, repetia enquanto me cutucava inquieta. – não é verdade seu viado? Pedia por uma reação.
Eu recebia as cutucadas e dizia ao seu lado, na mesma pose:
-Exato, mas é normal. É normal, a vida é assim.
Queria confortá-la , mas com tom profundo e duvidoso de quem quer ameaçar-lhe a culpa. Na real cara, eu pensava que a vida era uma grande merda e que nada ia substituir onde já tinha chegado, entendeu? Essa situação que já nos acostumamos. Rosa comenta algo acrescentando como a Europa estava decadente. Eu apenas cocei o saco e repeti em eco “a Europa”.
-Porra Jorge tu tá chapado filho da puta? Você acha mesmo que a União Europeia vai pagar onde vamos dormir hoje? Não é tão fácil quanto arranjar essa teu crackzinho de merda não.
-Talvez Rosa, talvez. Vai dormir, porra..
Ela saiu pela ruas sem ter onde ir, voltou o mais rápido possível para nossa gerigonça empilhada no topo da sucata em St. Denis.
No fundo sei que por fora eu não disfarçava. A situação era miserável, pobre e faminta.
-Sabe, Jorge? não consegui puxar aquela merdinha do bolso do cara cheio de grana.
-Mas é sempre impossível no bolso deles. Tu tem essa mania de tentar o mais difícil, vaca, é melhor uma bolsa magra ou um casaco pra garantir não passar essa buceta de frio.
Ela andava em círculos ameaçadores da sua ira, queria evitar a fissura e pensar numa saída.
-Arranjasse pelo menos a parada, mas que merda;  era só a chave e com o celular pedia um sequestro, tou ligada. Mas isso tinha que dá certo!
Acendo o último cigarro. Ofereço a ela. E a gente tentava dormir como um animal preso e acostumado em ser lixo, com droga enfiada no cu, escondida um do outro, fingindo que nos importávamos com a fissura porque de fato queríamos mudar a situação. Puro fingimento.
Ela traga e comenta:
-Aí seu merda, bela chuva em?!
-Eu tou mal sua vadia...
Eu na verdade estava tão bem que ela se acalmou e me olhava sem me ameaçar com seus olhos dramáticos. Era uma merda de uma mentira aprisionada. Não havia nada de belo naquela lama de metal e na nossa vida amorosa.
Enquanto isso eu lembrava de nós dois na cama de seu quarto há 17 anos atrás, em que nada estava vencido, pelo contrário era um amor acabado de sair do estoque do armazém de sua tia que sustentou nós dois até os últimos meses. Linda, linda sonhava em reencontrar aquela princesa de trepada à primeira vista no leque de penumbras que os raios descrevem cada fase a vida que levávamos juntos até hoje. Eu dormia sonhando quando o amor e o sexo nos levava ao delírio de sermos o que quiséssemos. Entregávamos às fantasias das máscaras e camadas de nossos desejos. Sem isso não seria possível o contentamento do que hoje tentamos entender que seja esse amor. A desgraçada fez questão de roncar tão rápido, enquanto via ela de calcinha com seus vinte poucos anos e fodíamos como dois bichos se devorando na garagem, no banheiro ou em qualquer buraco que sua tia não nos visse. Essa merda de memória sempre funciona “se isso depois aquilo”, só queria meter daquele jeito de novo. Mas quem me fode sou eu mesmo. Casamos apressadamente, loucos e verdadeiros. O tempo rápido traz junto a desgraça. Na penumbra não vejo hoje senão uma velha suja, drogada e chata pra caralho. Apunhalo contra seu peito rápida e repetidas vezes uma faca cega, confiro se jorra sangue suficiente e se ela ainda respira, arranco do seu cu todas as pedras que tinha. Nunca mais deixo que ela interfira na memória boa que fomos. Deixo-a apodrecer na sucata e corro noite adentro. Adeus Rosa sua vadia. Adeus!

Por Jayme Mathias Netto
vivisseccao.blogspot.com

sábado, 19 de agosto de 2017

O despertar

O despertador toca. Quem sente primeiro o seu chamado? O olho abre, o braço abre, a perna abre, a pele... O tecido da cama se dilata junto com a pupila. Uma dança distorcida da mais pura leveza seguida de contorções se martela horizontalmente. O leito se torna um quadro adornado pelo movimento do animal que desperta. A canção são os estalos de ossos e gemidos que ecoam nas paredes, o maestro é o alarme.
Levanta-se, o coração tenta acompanhar o despertar das células e o sangue corre mais rápido pelo corpo. Jamais em estado de alerta, anda no modo automático, movimento fisiológico natural que carrega o bicho até o sofá mais próximo. Ele não pensa. Catatônica, a pele pulsa para mais um instante de vida. O despertar do corpo começa no sonho preliminar à vigília, ele prepara o renascer. São nesses instantes que o não sentir sustenta a falta de pensamento, aqui o animal prevalece sobre o humano. Bem vindos ao não-humano.
Momento único, tempo fundamental e singularmente sem igual. Hora precisa para nada, que nunca volta pois não tem, que não faz falta pois não é. Buraco negro dos sentimentos, furacão de insensibilidade. Mas afinal, quem desperta primeiro? O bicho e ele nunca mais volta.
O despertador toca. Quem sente primeiro o seu chamado? O olho abre, o braço abre, a perna abre, a pele...

Paulo Victor Albuquerque
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 13 de agosto de 2017

O poço secou

É isso! O poço está seco! O que posso seco? Quando logo cedo percebo que me falta?
Falta. Faz-me lembrar de questionar a alma ao me deparar com o ditame que colocarei pra completar a rima, de desejar: " que a felicidade vire rotina!"
Mas como assim? Se tudo que é rotina, mistura na retina aquilo que é especial e o que nem tanto assim?
Se já somos reconhecidamente seres que só percebem o valor do que não tem, do que se foi?
Felicidade não pode ser questão de ser, mas de estar. Já dizia a música:  "When a moment is all we are!".
Somos momento, efêmero, fugaz. Brevidade que se esvai sem avisar. Porque então desejar que o especial vire banal? Que graça haveria no amanhecer se fosse sempre dia? Se não houvesse o frio da noite esguia? O mar pode ser lindo, mas se pergunta-se a um náufrago: do que mais  sente falta? Certamente que terra firme será sua ressalta.
O que posso seco? Posso tanto! Posso tudo! Posso encher, posso transbordar, criar, admirar, contemplar.
Transparecer, transcender, entender.
Refletir, inferir, deduzir. E perceber que é a falta que me faz humano. A incompletude me faz desejo, que me faz procura.
Procura que conduz a cura dessa doença chamada rotina que hoje é ruína das almas que não sentem falta.

Por Júlio César Barbosa Dantas

domingo, 6 de agosto de 2017

O estômago Parte II

Retomando o texto "O estômago" do Paulo Victor. E pensando em pessoas que compartilham o mesmo estado digestivo dos nossos tempos. Eis que essa manhã acordei com o estômago mais pra lá do que pra cá. Meu dia ficou assim, calmo, calor e calado. O estômago compartilha com ele mesmo dois modos de vida, um que é capaz de soltar e livrar as digestões, o outro é o que é capaz de enrijecer-se, proteger-se para que nada mais aconteça de estranho, nenhum corpo adentre nesse corpo.
Que órgão é o estômago, que coisas ele me guarda!
Nessa sua forma de guardião ele comanda o respirar dos pulmões, as batidas do coração, tudo é guiado pelo estômago que não come bem. Cuidado com o que come, atenção para aquele que produz teu alimento, aquele que faz teu alimento e os que cozinham. É uma longa cadeia de pessoas para que o estômago esteja mal. O mal-estar do corpo é ignorado, e só consegue atenção quando ganha uma doença. Mas logo em seguida vem os remédios, queremos o bem-estar sem perguntar por quê. Camuflamos a vida como se fosse possível a mágica de dominação de nosso estômago, mas ele é um senhor, um velho senhor e já sabe demais para ser enganado, ele reage aos corpos componentes, ele rege toda a ópera não-harmônica do corpo-carcaça. As formas enrijecidas das mãos e dos pés, rezando para que o mal-estar passe, quem comanda é quem está lá e sempre esteve. Guardião das ressacas da vida, dos vômitos inebriantes, ele quer voz e quando a ganha, tomamos um pouco mais de anti-ácidos. Porque desrespeitamos tanto o velho sábio é que ele agora nos questiona com a vida e estamos acostumados a empurrá-lo dia após dia, em nome das pessoas que nos oferecem tudo aquilo que ele não suporta mais. Tudo aquilo que ele nega é justamente o que, por vergonha, aceitamos colocar goela abaixo. Um prato, um coquetel, uma comida, sem perceber que o corpo não quer aquilo, o estômago se responsabiliza, barão da nobreza, quem fica na muralha, guardião de todo o saber, se desespera. Respeitem vossos estômagos, nós não somos magos! Tudo o que o estômago nos diz é que não há espaços para essa gente vazia que olha ao corpo como embutidos e enlatados, comprimidos e cápsulas sufocadas em embalagens descartáveis.

Trecho do livro Outrora : crônica de uns dias perdidos
Por Jayme Mathias Netto
Outrora.net

domingo, 30 de julho de 2017

Julho do Leitor: Pra nunca esquecer de Ravena Olinda

Eu olho nos teus olhos
Me alegro com teu sorriso
Eu danço pensando em você
Sem medo
Eu me perco nas horas
no tempo.
Eu vejo o céu mais azul
Fotografo memórias
Eu me entrego sem culpa
Segredo
Eu transgrido fronteiras
muros.
Eu viajo até você
Terceira linha do meu coração
Eu me agarro em você
Desejo
Eu te faço mais leve
livre
Me cansei dos pés presos no chão.
Quero te levar
Comigo
Só pra ver o pôr-do-sol
E te deitar no meu sofá

PS: Melodia de Marcio Policastro

domingo, 23 de julho de 2017

Julho do leitor: Interrupção de Milton Rodrigues

Você falou do seu desejo de sentar no meu colo e mexer o quadril enquanto sentia meus dentes e unhas nas tuas costas...

Meu corpo inteiro correspondeu a sua vontade e eu te esperei sentar em mim com toda sua sensualidade de corpo e alma. Com toda sua tara de mukhee faminta em noite de caça.

Você disse que todo aquele nosso envolvimento te excitava e gemeu baixinho ao notar que eu queria ser teu homem, que em todos os sentidos eu queria estar dentro de você preenchendo os espaços da sua vida e do teu corpo. 

Você me sentiu em você?

Por um momento nossos pensamentos se encontraram em um quarto imaginário, onde tua pele se arrepiava com minha boca, onde nossos corpos encaixavam suados. Onde você de quatro me dava muito mais que teu coração.

Então você disse que tinha medo. E então você pensou demais. E então você abraçou um atalho. E só sobrou poesia.

Entre o tesão do momento e o amor de uma vida inteira, fodemos o nosso emocional, mas não gozamos.

Milton Rodrigues de Sousa Júnior

domingo, 16 de julho de 2017

Julho do leitor: Texto bilíngue "A Cena Fria" de Clémence Rocher

A Cena Fria tradução de "La Scène Froide" de Clémence Rocher

Tradução de Jayme Mathias

Tão só uma vaga luz clareava a mesa central da cozinha. O brilho irradiava uma cor amarelada sobre as faces ternas e ausentes dos quatro membros da família. Nos contornos do recinto, surgia na sombra uma filiforme quimera. A tempestade das trevas filtrava, na janela do porão, e se distanciava ao longe uma lareira e um armário secular enraizados na obscuridade. A cena oferecia uma introvisão das profundezas do tempo. Nada influenciava as testemunhas. Somente o odor de putrefação umedecia o local sórdido. Cada um dentre eles afundava na calada da noite, silenciosos e sombrios.

Seule une faible lumière éclairait la table centrale de la cuisine. La lueur irradiait une couleur jaunâtre sur les visages ternes et éteints des quatre membres de la famille. Aux confins de la pièce surgissaient dans l'ombre, de filiformes chimères. L'orage des ténèbres filtrait du  soupirail et se logeaient au loin un âtre et une armoire séculaires ancrés dans l'obscurité.  La scène offrait un aperçu du tréfonds des temps.  Rien n'influait ces défaillants. Seule leur odeur de putréfaction humectait l'endroit sordide... Chacun d'entre eux sombrait dans l'agape du soir,  silencieux et mornes.

De súbito, alguns gritos estridentes perfuraram o silêncio macabro da noite. Era a velha guarda, sujeita às frequentes crises de histeria, que se torcia novamente. A mais jovem das quatro se matinha quieta admirando a luminescência estranha de seu prato. O reflexo da tela polida pintava sua doce face de uma cor ainda desconhecida. Seus olhos vidrados e sua boca contraída significavam a chegada de um terrível acontecimento. A progenitora continuava plácida e pensativa, mas parecia vigiar a porta de entrada que batia frequentemente. Na sua frente, encontrava-se o mestre da casa que tremia a cabeça como que para rejeitar as ideias que congelavam seu espírito desorientado. Dois orifícios brancos perfuravam seu rosto. Ninguém parecia habitar os corpos fatigados e impenetráveis que se moviam como um autômato. Uma última cadeira estava ocupada por um caribenho da cidadela salvo por seus bons mestres. Ele se colocava curvado e reservado como um imigrante raspando o fundo de sua tigela. Este último apreciava o sabor dos legumes frescos da Madame e não ousava elevar o olhar sobre sua família muda, como era de costume. Seus membros coloridos pareciam se fundir na atmosfera. Assim, nós víamos dois talheres flutuantes no ar espesso.

Soudain, des cris stridents percèrent le silence macabre de la nuit. C'était la vieille gardienne sujette à de fréquentes crises d’hystérie qui se tordait une fois encore. La plus jeune des quatre se tint coi admirant la luisance étrange de son assiette. Le reflet de la toile cirée teintait son doux visage d’une couleur encore inconnue. Ses yeux fixes et sa bouche contractée  signifiaient la venue d’un terrible évènement.  La progéniture restait placide et pensive mais semblait surveiller la porte d’entrée qui claquait régulièrement.  En face d’elle se trouvait le maître de la maison qui secouait sa tête comme pour rejeter ses idées qui glaçaient son esprit désorienté. Deux trous blancs perçaient son visage. Personne ne semblait habiter ces corps las et impénétrables qui bougeaient à la manière des automates. Une dernière chaise était occupée par l'antillais du village sauvé par ses bons maîtres. Il se tenait courbé et renfermé tel un immigré raclant le fond de sa gamelle. Ce dernier appréciait la saveur des légumes frais de Madame et n'osait lever le regard sur la famille  muette, comme à l'accoutumé. Ses membres colorés semblaient se fondre dans l’atmosphère. Ainsi, nous y voyions deux couverts flotter dans l’air épais.

De repente, enquanto os sinos da igreja vizinha soavam, uma surpreendente donzela fez sua aparição. Somente sua presença clareava a penumbra do ambiente. Vestida de um amplo traje acortinado e de cetim vermelho, ela parecia tão pura e tão vestal que todos os olhares da mesa fria se direcionaram para ela. A ruiva baixou a cabeça e emitiu um delicioso suspiro; triste e austero, à imagem dos escrutinadores da cena. A imaculada deu alguns passos largos e sentara-se no berço de Houpette, o animal de estimação da casa e sem pêlos. Este, tão ocupado em colecionar carne podre não parecia contrariado pela invasão do seu nicho, onde estavam os sapatos pestilentos de toda tribo.

Soudain, lorsque les cloches de l’ église voisine sonnèrent, une mirifique jouvencelle fit son apparition.  Sa seule présence éclairait la pénombre ambiante. Vêtue d'un ample accoutrement en voilages et en satin rouge, elle paraissait si pure et si vestale que tous les regards de la table froide se posèrent sur elle. La rouquine baissa la tête et émit un délicieux soupir ; triste et austère, à l'image des scrutateurs de la scène. L’immaculée fit quelques foulées et alla s’asseoir dans le couffin de Houpette, l'animal domestique sans poil du foyer. Celui-ci, trop occupé à collationner de la viande pourrie  ne sembla pas contrarié par l'invasion de sa niche ou se trouvaient les chaussons pestilentiels de toute la smala.
    
Os olhares começaram a se preencher. As respirações faziam coro e os copos se puseram a escoar. É numa morosidade não obstante rápida que os quatro membros levantaram-se, cada uma a sua maneira. O mestre da casa cessara de se agitar e a velha mulher parou de chiar. O caribenho levantou a cabeça enquanto que a mais jovem ficou de pé, sem se mover. Ela observava Léna, a outra pequena encantadora, uma deliciosa sobremesa que a tribo compartilhava. Os três antropófagos rasgavam brutalmente os membros de Léna, recentemente cortados para a ceia, que preparavam para compartilhar sua fé.

Les regards commencèrent à se remplir. Les respirations faisaient chœur et les corps se mirent à suinter. C’est dans une rapide lenteur que les quatre membres se levèrent, chacun à sa manière. Le maître de la maison cessa de se secouer et la vieille femme cessa de grincer. L’antillais leva la tête tandis que la plus jeune resta debout, sans bouger. Elle observait Léna, l’autre fillette exquise, ce délicieux entremets que la tribu se partageait. Les trois anthropophages  arrachèrent  sauvagement les membres de Léna revenue des vêpres qui s'apprêtait à partager sa foi. 

domingo, 9 de julho de 2017

Julho do leitor: "Retour" de Luciana Lis

Retour

Eu preciso dizer que meses atrás eu ouvia marchinhas de carnaval dentro da alegria mais estúpida que já fui submetida, eu sorri tanto e exagerado para suplantar qualquer ruído passado que viesse me impedir de continuar a rodar, rodar e rodar. Hoje escuto ao longe um triste violino de cordas frágeis em que as notas parecem acompanhar o movimento assustado dos meus olhos.

O meu cansaço parece ter levado para longe, no momento daquela ventania que me fez fechar os olhos, qualquer argumento de que a vida vale a pena, me fez como num soco perceber que um filho não me salvará, me trouxe um suspiro estafado diante da fúria com que se pronunciam negações e ignorâncias diante do que não se conhece, diante da necessidade de autoafirmação de muitos e que não reconhecem sua própria imagem diante do espelho.

Também aconteceu de eu não saber mais o que fazer dentro da minha própria casa, de eu não saber mais para onde seguir quando já tinha inventado a minha própria liberdade.

Por Luciana Lis

sábado, 1 de julho de 2017

Julho do leitor: "Sangue" de Anne Jamille Sampaio

Sangue

Aqui eu me sento para dissertar sobre mim, de mim, talvez até para mim. Em uma fiel tentativa de organização mental, diante de um turbilhão de pensamentos que me invadem, me tomam, me laçam, fazem de mim uma mulher imersa em um contexto confuso, cheio, recheado, repleto de dúvidas, indecisões, incertezas. Eis a minha angústia escrita em letra de um texto. Texto ilógico, sem começo, em busca de um meio, sem saber se realmente deseja chegar a um fim.
As palavras saem em uma rapidez tamanha, em uma tentativa fugaz, que tenta ser sagaz, de dizer sobre o indizível, de dizer sobre mim, sobre quem sou.
Sobre mim, como é duro e difícil dizer. Pensei, repensei, tre-pensei – ajudem-me palavras, ajudem-me a dizer algo que seja substancial, importante, que tanto tenho relutado, em conflitos sem nome.
A falta de graça, a falta de vida que rodeia-me, sob a forma de pessoas sem graça, sem nata, sem algo que faça ferver, que faça mexer, que faça inquietar dentro de mim – algo que faça fugir de pensamentos loucos, insanos que me consomem, como uma vela, como uma vela que se destrói, se corroi, se põe a findar-se sem nunca, entretanto, conseguir chegar a lugar algum.
Falar, verborragiar, explicar, pensar, repensar, envolver-se por palavras. Apaixonar-se pela palavra.
Palavra é vida. Palavra me é vital! A palavra me rouba de mim ou me faz retomar a mim mesma? A aquilo que sou, que faço, refaço, repenso, renasço. Palavra, me roube, me tome, me consuma, faça-me sua – em toda a minha confusão, em todo o meu conflito, em todo o meu não saber nada sobre mim. Ou ao menos, me tome, me roube e faça morada sob a forma de paz ou de algo parecido com isso.
Seja minha e não me roube de mim mesma. Ancore e faça morada. Deixe-me ser.
Exigir: exigência, necessidade de tanto, cobrança por algo tão grandioso, esplendoroso.. Exigir tanto de outros, exigir tanto, tanto, tanto..Talvez até chegar a ter tão pouco. Pouco, nada, quase nada. Imaginação e fantasia. Imaginação e sensibilidade. Imaginação e algo além de si mesma. Algo que me transpõe, que adentra minha carne, que adentra minhas vísceras, que invade todos os meus vasos, consome meu ar. Me deixa impedida de reagir fisiologicamente, deixando-me ao patológico o único meio de conseguir emergir. Sair de um estado tão louco, tão solto, tão nada aparentemente meu.
Não sou minha. Tento me fazer minha de tantas formas. Mas isso não pode ser dito, não pode ser verbalizado. Deve ser calado. Deve ser mantido em chaves que são tão nossas, que são tão porcas, por estarem imersas em uma lama de mentiras, de vaidades, de falsidades. Não poder expor, colocar, gritar, mexer em alto e bom tom a angústia da vida, das feridas. Ao invés, sorrimos, cumprimos protocolos sem graça, sem praça, sem nada! Protocolos sociais, que nos fazem sorrir risos bestiais, soltos, imperativos até – mas risos sem graça, sem nada. São mesmo risos ou apenas dentes mostrados, revelados em uma boca anatomicamente perfeita e destituída de signos, sinais, símbolos..? Eis uma questão, tão dura e difícil questão.
Inquietação, loucura, loucura, loucura.
Psicose. Psicose. Psicose. Delírios, delírios, delírios. Alucinações? Alucinações? Alucinações? Repetições. Repetições, repetições. Repito, repito, repito. Reflito.
Digo muito, mas não digo nada. Exponho a mim, rasgando meu papel em sangue, expondo cicatrizes, vísceras, fístulas que formam abscessos negados, mas que insistem em mostrar toda a sua dor, toda a sua denúncia de uma sensibilidade guardada, rasgada, resguardada. Dor, dor dor. Amor, amor, amor.
Reações pintadas em um quadro branco, sem cor, sem vida – em um branco e preto sem graça – que vem a denunciar um lado do preto que não é belo, que traz apenas o silêncio de uma inquietude indisplicente – sem a devida sabedoria de como se portar, de como se dizer.
Assim aqui chego. Em meia a loucas e insensatas palavras. Em um desnudamente há muito não feito.
Seria sustentável admiti-lo para além das palavras? É possível vivenciar isso além de um contexto de 4 paredes, um divã e um ouvido atento a escutar? É possível criar um laço fraterno que nos olhe nos olhos e nos receba em toda a loucura e insensatez que habitam aquilo que chamam de mente humana, ou melhor, de cérebro humano? Conexões sinápticas tentam dar conta de toda loucura, em uma conjuntura na qual as palavras tentam nos acomodar no mundo, junto às pessoas, as loucas e insensatas pessoas.
Pedir por um ouvido atento, que segue muito além de palavras quaisquer ditas sob a égide de uma censura maculada – quão difícil é uma escuta nua, uma escuta crua, que nos receba naquilo de mais louco que possuímos. Que nos receba em toda a atitude insana, desprovida de toda e qualquer tentativa de censurar a louca loucura que nos habita. Loucura louca impedida de gritar aos quatro cantos. Louca loucura que nos afirma quando podemos nomear algo e, através disso, justificar toda a nossa insensatez reprimida.
Não há algo específico, não há um nome específico. Há apenas uma loucura escrita, testada, vivenciada, exposta, à amostra de um olhar que se diga algo, de uma censura que sempre insiste em se fazer e de uma tentativa de perturbar o ser humano, aquele que tanto mente, que tanto sente, mas que pouco é realmente contente.
Rima insana, rima sem graça. Mas vai muito além de uma tentativa de casamento vocabular. Vai além, como sempre, vai além.
Eis isto. Isto sem nome. Isto que testa, que ameaça, que é imperativo. Isto, que vira isso e que se torna inominável. Eis o desejo. Eis a mim. Sou o desejo, vestida dele. Completamente dele.
Após longos e apressados 20 minutos - a censura me pediu para voltar outra vez: abri a porta.
“Sente-se, querida!”

Anne Jamile Sampaio

domingo, 25 de junho de 2017

Apocalypse Now

“Eis que eu venho em breve, e trago comigo o salário para retribuir a cada um conforme o seu trabalho. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim.” (Apocalipse 22: 12 – 13).
Todos os sinais indicam que o fim está próximo. Irmãos matando irmãos; nações que se aglutinam em lutas mortais; sociedade narcotizada por antidepressivos e substâncias recreativas. O medo, meus amigos, paira no ar podre e tóxico das grandes metrópoles. O terror nos acossa e não temos saída. Todas as placas apontam o fim dos tempos.
O sentimento escatológico é uma constante em nossa cultura. Talvez essa sensação seja proveniente do “instinto de vida e morte” em que Freud afirma existir fisiologicamente nos seres vivos. Microscopicamente nossos corpos encontram-se numa guerra constante entre a vida e a morte. O cadáver de nós mesmos encontra-se sepultado no sarcófago de nossa inconsciência. O que desejo afirmar é: apesar de nossa relação direta com a finitude do existir, o sentimento do fim dos tempos, de uma atmosfera sufocante que não nos deixa saída, a certeza da catástrofe, são sintomas sustentados ideologicamente pelas superestruturas do real. Os filmes hollywoodianos, certas obras literárias, os programas jornalísticos, os fenômenos naturais do planeta e do universo, descrevem um percurso histórico que culminará paulatinamente no seu fim próximo. Todos esperam o eterno retorno do fogo divino heraclitiano que consome a matéria num devir infinito. Especialistas apontam suas causas para a decadência, projetam possíveis soluções em uma realidade tão complexa que depende da variante de múltiplos fatores e estratégias para o seu existir. Tal heterogeneidade transforma-os em sonhadores.
Mas não se preocupem irmãos. Há de vir o messias, aquele que trará a paz e acabará magicamente com todas as mazelas do mundo, sejam na natureza, os assassinatos, as drogas, a morte. Quanto maior a complexidade da vida material atrelada à ideia de progresso humano, causando-nos uma dependência institucional em meio a um emaranhado de forças, acreditamos que somente um ser imaculado e santo será capaz de nos guiar, de nos salvar. É nesse sentimento religioso de inferioridade que sustentam-se os Trumps, Bushs, Le Pens, Bolsonaros ou os Hitlers. Com suas propostas salvadoras da catástrofe arrastam suas multidões de dependentes químicos do espírito. Mas tenho uma novidade a lhes contar, o fim não está próximo, ele não virá.

Paulo Victor de Albuquerque
Vivisseccao.blospot.com

domingo, 18 de junho de 2017

Homo homini Lupus

Dizem que existo dentro de cada um de vós.
Preso, enjaulado, sob duas distintas ópticas. Do bem e do mal.
Mas como julgas moralmente um animal? Irracional? Desconheço tal palavra.
O fato é que bom ou ruim não me cabe, sua linguagem, humano, não me contém. Pois sou lobo, acima de tudo.
O frio e a noite não me amedrontam, mas também a luz do dia não me restringe.
Caço em bando, quando do bando me beneficio, mas em companhia qualquer encontro vício.
Sou o mesmo, em bando ou sozinho, meu caminho eu mesmo crio, esguio, esquivo com perícia das intempéries de um mundo hostil.
E nada me para, nem mesmo a vara e as armas do pastor de ovelhas.
Ao definir minha trilha, sigo obstinado minhas vítimas e as armadilhas, mesmo elas, não ceifarão meu propósito.
Nem que para isso tenha de arrancar minha própria pata, pois em mim há apenas uma chama inata.
Ômega, alfa ou Beta, minha meta é apenas​ uma, sobreviver.
A qualidade da qual falam vcs humanos e que a mim cabe, não é bom ou mal. É vida. Liberdade minha alcunha.
Não me furto da discórdia e da guerra intestina. Abraço-a.
Clandestina é a minha presença.
Não espere de mim complacência.
Isso também é outro nome que tem essência num viver que me é alheio.
Inocência não pertence a lupinos, mas a meninos que ao aprender o que é o mundo, nem mesmo donos são de seus destinos.
Minhas garras não tem amarras e minhas presas destreza para perfurar exatamene onde desejo.
Não há beleza na morte. Apenas sinta-se com sorte se algum dia me avistar. Do contrário caro humano, fique esperto. De certo não apareço nem sou notado por quem desejo atacar.
Muito prazer. Nem bom, nem mal, nem amigo, ou cordial. Lobo e só.

Júlio César Barbosa Dantas

domingo, 11 de junho de 2017

Thauma

Ninguém nasce pragmático
Paulo Victor de Albuquerque

O que nos é inato, talvez, seja a capacidade de nossa inteligência, para não utilizar o jargão usual do intelecto ou entendimento impregnado de categorias filosóficas, está na hora admitirmos uma palavra nova, digo, portanto, a nossa inteligência tem uma capacidade usual de instrumentalizar. Na linguagem, transformamos as forças que nos chegavam da natureza, os uivos ferozes, os chiados dos rios, os barulhos de insetos, animais, da água, dos trovões e de tudo que possamos imaginar diante de uma natureza, de um sustento que dependia de nossa força, transformamos tudo isso em canto, pedido de socorro, uivamos, restabelecemos distinções de sons entre a força que nos impulsionava na caça bem feita, inventamos cantos de ímpeto contra o inimigo e a hostilidade. Tonalidades e variadas formas de tornar comum um signo como expressão. Marcamos nas paredes uma memória impulsiva aos nossos olhos, iluminados pelas chamas do fogo. Quebramos, extraímos, tornamos pó, fizemos cores. Acaso isso não nos espanta? O fato de que ao tornarmos comum, comunicar, fomos aos poucos nos acostumando a sermos nós mesmos instrumentos, sendo determinados pelo mais fácil e adaptável que há em nós? Aos poucos fomos obrigados a incluir dentro de nossas pulsões um alfabeto, com muita força estabelecemos tal como a fronteira geográfica a distinção entre esse fluxo de linguagem externa e um fluxo de linguagem interna, mediamos tudo isso em gramática. Quanta força coercitiva há num alfabeto e numa gramática? Platão, quão assustado e thaumatizado estava Platão, quando tentava escapar e defendia um diálogo da alma consigo mesmo, sem a determinação da linguagem! Há uma crueldade na linguagem. O risco da linguagem como atalho, seu lado negativo do pharmacon como um veneno que não só se distanciou de nós, mas vem, por vezes, contra nós. Chegamos ao vício filosófico de pensar que essa força comum que atua em nós (a linguagem), seria o próprio dizer de nossa alma e de nosso corpo. Com bastante esforço forjamos o eu, o livre-arbítrio, a memória e a responsabilidade para responder por nós diante dos tribunais da razão com a marca do comum. E o que é a filosofia senão o ímpeto dentro da capacidade de tudo que se chama filósofo, a força que quer conter tudo isso e dizer em linguagem? De comunicar sem ser vulgar? O impulso na psique humana, a filosofia como força que quer domesticar um corpo e uma mente por meio de palavras, dominá-las e contê-las na memória. Quanta violência imprimimos nos bichos que habitam em nós!

Por Jayme Mathias Netto
Outrora.net

domingo, 4 de junho de 2017

No limiar

Encontrava-me absorto em meio a fragmentos de frases que me saltam ao corpo,
e que, como Nietzsche, me disponho a anotá-las em qualquer um dos meus blocos de
notas, digitais ou não, e eis que me deparo com esta frase. Quando a leio primeiro me
vem o quanto é uma boa ideia, não reconhecendo-a como pertencente a mim mesmo
nem a outro alguém. “Ninguém nasce pragmático.” Tal obviedade me faz reconhecer
que ela não me pertence, ela é um fato e eu somente a percebi, assim como quando você
repara em coisas que sempre estiveram lá, mas que nós tínhamos outras mais
interessantes para nos envolver. Não quero defender com isso o semântico ou mesmo o
pragmático, eu por mim ainda não disse nada, a não ser a máxima acima exposta.

Enquanto humanos podemos afirmar algo: somos seres que, ao nascer, ou seja,
antes de adentrarmos no jogo linguístico pragmático, possuímos uma vida literalmente
consumida pela sensação imediata, somente com o tempo organizamos linguisticamente
o estranho mundo sensível ao nosso redor. Aqui nos deparamos imediatamente com
uma aporia. O limite da linguagem é o limite da materialidade? A linguagem humana é
o produto do seu corpo com tudo aquilo que lhe rodeia, seu substrato é a própria
matéria. A linguagem é material. E até mesmo aquele que afirma um fora deve dizê-lo
de dentro, ainda se sujeita à imanência. Mas eis que algo vem à boca, perigosa como a
língua da serpente, bifurcada. Existe um limite para a matéria? Pergunta mau caráter de
um daimon malicioso. Não daremos ouvidos pois o limite não pode ser dito.

A filosofia jamais poderá tratar o limite, ele não nos pertence. O limite é
teológico. Esperança infrutífera de pôr um limite à própria vida. Todo nosso
pensamento insere-se mergulhado no meio, melhor dizendo, no limiar. O limiar é
transição, portal entre mundos abertos que se agrupam e dissolvem numa dança dos
átomos. A filosofia semântica está à procura do limite, castração da matéria
fragmentada em essência. No pragmatismo, o jogo é a busca do limite da linguagem.
Aqui o paradigma da linguagem se impõe como limite. Se linguagem é matéria não
podemos afirmar o seu limite, teologia.

Irmãos, o grande papel da nova metà-physiká é reconhecer os limiares, cisões
invisíveis que pairam sobre a matéria mas que não a limitam. O entendimento é o portal
entre mundos possíveis que se entrecruzam. Não podemos afirmar os limites da matéria,
mas somente seus limiares.

Por Paulo Victor de Albuquerque
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 28 de maio de 2017

Oculi speculum animae sunt

Ah o olhar! O olhar reluz, conduz, condiz e apraz.

Seduz, simula, dissimula e ludibria.

Eis que é astuto e seu intuito é muitas vezes voraz!

O que satisfaz a fome do olhar?

Somente a concretização daquilo que está lá no fundo, escondido no coração e deixa nos espelhos da alma brilhar.

Olhar de verniz, prediz no que as palavras se enrolam.

Transmitem os passos que muitas vezes se engodam
e desatam os laços nos quais nos deixamos emaranhar.

Engendra-se para onde ninguém mais vai.

Faz-nos tropeçar onde ninguém mais cai.

O olhar pode ser terno
ou tenso,
resignado
ou propenso.

E tal como se olha para fora, se faz para dentro,
para o centro
da alma do poeta.
Feito seta
o olhar que afeta
também se deixa afetar.

O olhar de inúmeras faces, de inúmeros instantes,  inúmeras almas.
O olhar da calma, o olhar da chance, do alcance ou do simples olhar para o mar.

Sim, pois, para dentro ou para fora, o olhar não demora, não tem hora, nem lugar para se mirar.

Seja o olhar que chora ou o olhar que espera.
O que odeia ou o que venera.
Nada escapa ao seu universo de significar.

É fascinante a multiplicidade que nos invade ao contemplar e perceber
que o olhar que absolve
pode ser o que condena
e o que acolhe
o que envenena.

Dos tolos que não percebem, só resta a pena de
não notar
que a comunicação pelo olhar
é notória demais para se deixar passar,
pois quem olha sabe o significado e é sempre para um resultado que se lança
essa dança,
que não precisa proferir uma palavra ou som,
para significar
para alguém,
um alento,
um intento,
um lugar,

seja ele de paz, ou de guerra,
no inferno,
ou na terra,
ou em tantos lugares quantos se possa imaginar.

Quantos poemas nos dizem do olhar?

Em quantas músicas a nossa bossa,em verso, ou prosa tentou nos mostrar
que olhar é privilégio
e fechar os olhos um sacrilégio
digno de quem quer se matar?

Seja quem for, valorize seus olhos,
os espólios
que eles lhes proporcionam,
sempre emocionam
aqueles que com eles não podem enxergar.

E que sejam quantas forem as músicas,
quantos sejam os versos,
ainda que se escreva o inverso,
deles haverá o que dizer.

Pois já dizia aquele velho ditado,
daquele pobre que sofreu um bocado, porque não sabia do outro,
porque ria ao ver o sol nascer. 

Àqueles que agora perdem tempo lendo esse projeto de poesia,
que possam sentir a alegria
do entardecer e que estejam cientes
de que não há lente
que limite o que os olhos falam à vida.

Não importa o que essa gente metida
a interpretar o que sente diga
o que dos olhos se deve dizer,
nunca ninguém em parte alguma jamais traduzirá, por completo, a essência do olhar.

Júlio César Barbosa Dantas
vivisseccao.blogspot.com

terça-feira, 23 de maio de 2017

Julho do leitor

Estamos fazendo a chamada de textos dos leitores do nosso blog Vivissecção.

A ideia é que no mês de julho, aos domingos, postaremos um novo texto dos nossos leitores.

Como alguns leitores se interessaram pela nossa escrita, pelo conteúdo do blog e querem também espaço para suas ideias e sentimentos, a gente decidiu abrir esse espaço de produção de pensamentos dos leitores. Uma​ forma de interagir com novas ideias e questionamentos.

O conteúdo dos textos são experiências singulares, poéticas e filosóficas, são vivências de recortes de intensidade que nos trazem de volta à vida, que nos fazem sentir de outra forma e também questionamentos viscerais.

Caso você queira postar seu texto, envie para : jaymemathias@gmail.com ou, na aba direita do nosso blog, está, a partir de hoje, disponível a opção de nos enviar uma mensagem com seu texto. Envie seu texto com seu nome(nome do pseudônimo caso queira), e-mail para contato e suas redes sociais (Instagram, Facebook etc.)

Enviar textos até 30 de junho. Posteriormente abriremos novas chamadas.

Jayme Mathias
Júlio César Dantas
Paulo Victor de Albuquerque

domingo, 21 de maio de 2017

Destino e Adaptação

Ajustado e adaptado à forma de minha vida vulgar e inapta, de prontidão e em sufoco na contramão.
Eu sufoco para enformar com a minha vida aquilo que julgo sem.
Será só isso sem vida ou eu também?

Quantas vezes eu inadaptado e posto a me adaptar?
Quantas vezes adaptando-se não me adapto?
Quantas mais vezes não me adapto menos vida tenho?

Sou eu mesmo ajustado e adaptado à minha forma de vida vulgar e inapta, sufocado, sufocando a mim mesmo para enformar de mim aquilo que julgo sem.

Mas será só isso sem mim ou eu também?
Quantas vezes sem mim estou?
Quantas vezes tão comigo e não consigo?
Quão mais vezes sem mim estou comigo?

O destino pai de qualquer desatino. Será ele fruto de meu desejo?

Se sim como posso saber o que quero, se meu querer pode ser tão profundo, deixando outros quereres menores, que não posso de lado deixar? Eu desespero!
E eu os desejo mais que aquele no fundo de minha alma a planejar? E quero!

O desejo e a adaptação quando entram de dadas as mãos, para prever não dá.
Menos ainda quando estão separados, parecem mais duas palavras inventadas, para se adaptar.
Ou ainda, que sufoca quem as usa, sem ser torta, para a alma melhorar.
Nunca se ajusta à minha forma inapta e de prontidão também!
Sempre na contramão das palavras falar.

Mas basta as modificar para na vida mudar o sufoco que não convém.
Essa é a esperança daquele que amansa.
Com destinos e palavras na balança.
No sufoco que convém à liberdade que se lança!

Trecho de Outrora: crônica de uns dias perdidos
Por Jayme Mathias
Outrora.net

domingo, 14 de maio de 2017

O estômago

Platão não foi o primeiro a pensar em formas variadas de alma, para alguns povos antigos os mais variados órgãos do corpo também possuíam alma, já que cada um deles detêm movimentos próprios. É sobre isso que o filósofo fala. Existe uma entidade dentro de “seu corpo”, que vive. Ela vive, mas agora foi possuída pela consciência que fala. Em cada ponto da consciência. O órgão não para. E se somente podemos falar sobre aquilo que pode ser dito, o estômago fala. Encontramos uma aporia: tudo que perpassa o tempo tem necessariamente memória? Será que para a efetivação da memória faz-se forçoso uma consciência? A consciência da memória já não pressupõe a existência, na própria matéria, da abertura à reminiscência?
O estômago perpassa o tempo, ele tem memória sua. Independente da consciência do filósofo o seu estômago reage às intervenções daquilo que encontra-se com ele, gerando cicatrizes que são as marcas do passado. A consciência filosófica pensa as cicatrizes, as marcas do tempo do estômago, tudo já estava lá. Para o estômago nada disso é resposta, muito menos dúvida.
Nós, almas penadas procuramos corpos para poder possuí-los como uma possessão profana, então falamos por sua boca, mas não é ele quem diz. Nós somos seres possessores, já diria Wittgenstein, falamos por meio da consciência o que o corpo-boca nunca poderia dizer. Neste sentido, a linguagem nunca passa de uma possessão de corpos. A memória nunca diz, ela sempre está lá, na matéria, em suas marcas, nos seus rastros. Mas para que se preocupar se no final das contas o estômago não passa de um filósofo...

Por Paulo Victor de Albuquerque Silva
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 7 de maio de 2017

The Road to Nihilism

O que você absorve? Ou, mais importante, o que absorve você? O que o afeta?

Talvez não possamos controlar como o que é externo nos mostra, mas sim controlar a representação daquilo que se mostrou em nosso ser.

O significado surge da relevância dada à afecção sentida.
Origem-Jayme Mathias
Hipocrisias à parte, o copo cheio e o copo vazio são mais do que a forma como você observa as coisas. São a função que a água contida no copo vai desempenhar no seu corpo.

De que forma você se permitirá afetar por aquele meio copo de água? Sentirá certa saciedade e dará graças, ou acharia melhor não ter experimentado tão pouca quantidade para que então lhe despertasse mais ainda a sede?

Trata-se de muito mais do que de aparência. É sensação, além, introspecção, reflexão.

Ora, se a vida é como dizem "feita de escolhas", é a razão quem deve mediá-las.

Em um mundo em que a digestão das "coisas como são" é inversamente proporcional ao "que sabemos dessas coisas e desse mundo", deliberar acerca de algo simplesmente pelo que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos, só poderá nos conduzir frente à enorme muralha do equívoco. Obrigando-nos a viver numa eterna fantasia superficial digna de jornaletes e revistas de fofoca.

Ao tentar significar a filosofia do cogito, Descartes afirma que a verdade das coisas exteriores são diferentes de como as concebemos. Isso é o que, de fato, nos caracteriza como não dimensionadores da verdade.

Mas então o que é?

O que em essência nos possibilita conhecer, contemplar, vislumbrar um pequeno feixe, mínimo que seja, da luz da qual se referia Platão? Será que a verdade reside no fracasso de sua indeterminação tal como queria Pirro?

Será a razão uma brincadeira de mau gosto a fim de complicar aquilo que é simples? Um esforço mental que tal como areia, se acumula em volume, mas nada mais representa do que microscópicos fragmentos de incompletude?

Diante das "catástrofe" da subjetividade nos perguntamos: o que é real? Quando mesmo a pedra secular que caracteriza o início da história humana, a linguagem, hoje, encontra entraves que mostram sua incompletude, sua maldita subjetividade.

Será então a vida dos sentidos que deve ser levada?

Seria o Logos um erro? Uma espécie de bug de um sistema? Uma doença? Que nos conduz à infelicidade e à constante aporia, como em um loop eterno?

Pois, tal como Sócrates ao se deparar com a imensidão do saber, temos a certeza não apenas de seu tamanho, mas também de sua impossibilidade.

Por Júlio Cesar
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 30 de abril de 2017

Daimon

Pensando nos textos anteriores, ia publicar uma poesia, mas desisti. Fui tocado por algumas ideias, fui tocado pelo próprio corpo que se expressou em textos de Paulo e Júlio. Se somos mônadas, nossas janelas estão escancaradas. Saltou-me um júbilo expressivo. De repente eu estava fértil, parindo, brotando. Coisas escapuliam, palavras, imagens, ideias, memórias... Um sentimento. De repente soou meu daimon: “na imanência não há um fora”. Se pensarmos, a ideia, de fato, brota de dentro. Para onde? Para dentro, para adentrarmos no vivo. E o vivo quase nunca aparece em vida, quando aparece somos finalmente tocados, instigados ao “mais”. A vida ímpar pulsa e sai do banal. Mas não sai como uma ilusão da linguagem que picota, transcende, encaixota o espírito num fora qualquer que comprime nosso corpo e pára nossa ideia dia após dia, pensando em mundos possíveis, negando o único que vive. Ilusão. Baixo. Trivial. O Não. O que me ocorreu foi o contrário. O Sim. O próprio corpo pare porque acompanha a mente em uma ideia e transfere para um corpo que é texto nesse momento. Através de outros partos também em texto. O texto vivo é uma ideia que do próprio texto escapa, mas ao próprio texto volta. Faz ideia e é ideia enquanto corpo num movimento único. Saída e entrada sem rumo, em si, juntos, leve. A imanência é chapada e altamente fértil. É a conexão de tudo, cheia de buracos, forças que desconhecemos. Puxa a filosofia para dentro. Desencaixa o dentro para fora na medida em que é expressão. Um texto escrito ou dito é a palavra que força e é forçada por ideias. Só há fora porque sai de um externo vazio triste e adentra nas forças que se comprimem para dizer e criar potencialmente. Exprimir e ter uma ideia é expandir possibilidades de novas ideias. Jamais excludente, o que brota é multíplice, para parirmos de novo. Algo que se abre cada vez que diz sim à vida. E foi esse próprio texto que fez-se como um gozo de um momento vivo!

Por Jayme Mathias Netto
Outrora.net
jaymemathiasnetto.blogspot.com

domingo, 23 de abril de 2017

O Parto

"É próprio da literatura filosófica o ter de confrontar-se a cada passo com a questão da representação"
(Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão)

"No início era o Caos..." (Hesíodo, Cosmogonia)

Primeiro a explosão... depois, potência...
Ou seria uma implosão, pois não podemos afirmar um fora? A vida engendra implosões dentro dos fragmentos do existir. A implosão dos fragmentos da matéria geram ideias que são paridas pelo estouro. O parto da ideia nunca é um aborto, um vômito, um alastrar-se. Antes disso ele é uma absorção, uma inalação, uma assimilação. Agora ela (a ideia) está lá. Um organismo vivo, agindo, intervindo, interferindo. O agir da ideia não é explosão, é representação, é potência do pensar. O útero da ideia é o ser humano, que nunca é uma morada já que este útero sofre de histeria, gerando o aborto da ideia. A representação é uma histeria.

Por Paulo Victor de Albuquerque Silva
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 16 de abril de 2017

Telófase

Vagueio. Percorro espaços amorfos, mofados da sala que se desenha morta. Finjo um interesse em algo que realmente não me importa, mas é breve. Me perco no tempo que se alonga estendendo seu "tic-tac" como tentáculos, oráculos de um futuro encriptado. Genética, probabilidade. Que habilidade o tempo tem de guardar o que ainda não foi? Escapo, mas não demora estou de volta, com a apatia de olhar a hora e o tempo que chora em não passar. Segundos  estagnados e um cérebro cansado de absorver. Meus olhos percorrem uma sequência de rostos dispersos, que tais como os meus buscam versos em um ou outro universo qualquer. Encontro os dela, rapidamente se cruzam tal como os pólos opostos de um ímã, inconveniente, proveniente de um inconsequente que a todos grita que o passado morreu. E o assunto, presumo saber do que se trata, besteira! Uma piada que se solta do tédio, do sério. Espero, mas o momento não passa, a paciência escassa lixiviada pelos "porquês" que ninguém quer responder. Realizo. Poesia bruta que não tem verso nem prosa, fruto do maldito momento, que podia ser como o vento e levar a melancolia até o próximo assunto.

Por: Júlio César Barbosa Dantas
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 9 de abril de 2017

Diga antes

Chego de volta em Paris. Máquinas e guichês para comprar o ticket que me levará para casa. Prefiro comprar no guichê onde tem um humano.

- Um ticket, por favor.

A moça do guichê prepara o troco.

- Não, desculpe, acho melhor o cupom de dez tickets porque é menos caro.

- Ah senhor, você devia ter me dito antes.

Fico com cara de babaca, mas ela me dá os dez tickets mais um que eu já havia comprado.

Chego em casa cansado. Nada para comer. Vou à Padaria na minha rua.

- Dois baguetes, por favor.

A moça põe os baguetes no saco. Ao mesmo tempo ela me passa o valor.

- Você poderia cortá-los ao meio? – Estava frio e queria que eles coubessem no saco, para que não chegasse em casa com os pães congelando.

- Ah senhor, você devia ter dito antes.

Fico com cara de babaca, mas ela me dá os pães cortados e dispostos no saco.

Dia seguinte, vou ao 16 arrondissement. É uma tradutora que havia marcado para fazer a tradução da minha certidão de nascimento. Entro em seu escritório. Ela verifica minha certidão, aceita o serviço e pede para que eu aguarde sete dias. Fecha um envelope com minha certidão dentro e pede que eu pague metade do valor. Dei-lhe.

- Ótimo, tenha um bom dia.

- Ah uma coisa, lembrei. Eu sou casado e não consta na certidão.

- Ah senhor, você devia ter dito antes. Tem que ligar ao cartório brasileiro.

- Fico com cara de babaca, mas ela cede o telefone para ligar para o Brasil. – Achei seu ato cordial e digno de respeito.

Ligo para o Cartório. Explico a situação. A moça do cartório:

- Ah senhor você devia ter ligado antes.

Tem que falar com a notária.

Fico com cara de babaca, mas ela me avisa para retornar em 30 minutos. Espero com cara de babaca na sala de espera da tradutora. Trinta minutos depois, ligo. Consigo falar com a notária. Explico a situação. Ela, em contrapartida explica que o cartório de casamento e nascimento não são os mesmos:

- Ah senhor, você devia ter visto com o cartório de casamento antes.

Ligo para o cartório de casamento.

Explico a situação. A secretária lamenta:

- Ah senhor você devia ter visto isso antes. O outro cartório é muito lento.

Fico com ouvido de babaca sem saber o que fazer. Ligo novamente ao cartório de nascimento. A secretária diz algo sincero sobre as datas que constam no registro:

- Ah senhor, você devia ter nascido antes.

Por Jayme Mathias
jaymemathiasnetto.blogspot.com

sábado, 8 de abril de 2017

Certa vez, eu, Julio Cesar e Paulo Victor nos reunimos e começamos a pensar em coisas de signo. Desvendamos que haveria em Júlio certa autenticidade em suas habilidades artísticas de contar estórias e narrar fatos, notícias e situações. Paulo, soubemos nós, tinha certa influência obscura e manipuladora ao desabrochar suas ideias. Já eu tinha muito perigo de me perder nos desfiladeiros ficcionais que a arte poderia me proporcionar... Foi assim que desenvolvemos a ideia de fazer esse blog, com a expressão singular desses três filósofos (talvez esse seja o título mais social que podemos atribuir a nós mesmos).