domingo, 29 de setembro de 2019

Ratatatá !!

Aos pés de um pequeno balcão meio púlpito, meio palanque, permanece Clarisse. A cara pintada, mas não é palhaça, ao menos ela pensou que não fosse. Diante dela uma multidão branca, enfurecida, permanece Clarisse. Brados de pessoas que só gritam e nada ouvem, permanece Clarisse.
E fala em vão.
Espera por uma brecha para ir até o banheiro prantear na privada.
Não há intervalo.
Eu quero ir pra Dubai! eles bradam. Clarisse reza às 3 da manhã para que o salário caia logo logo, enquanto o escroto cliente a enraba  por trás na frente das duas crianças. Clarisse levada à desalfabetização funcional para respeitar todos os pedidos da companhia aérea e todos os direitos aos clientes. Até  onde vão os vouchers  distribuídos por Clarisse? Até  quando ela vai doar a alma para o bem estar da clientela? E os homens  de direitos e deveres que a circundam e sorriem com ironia dizem: você vai perder o emprego, se não me garantir um voucher e um táxi. Clarisse arrombada. Dubai, Paris, Londres, qualquer nome desse é  mais importante que o seu. Todos eles vão esquecer quando baterem uma selfie na Torre Eiffel, no Big Ben ou em qualquer símbolo que justifique enrabar e empalar Clarisse dia após dia, dando o nome disso de trabalho e dignidade. Charles ou Clarisse... os mesmos pedaços de carne que escafederam-se ao sabor do capital. Porque minha conexão para se batizar no Rio Jordão é sagrada, minha filha! Clarisse sendo esfolada pela selfie mal tirada e que muito provavelmente, dentro de horas será  completamente esquecida num cartão de memória qualquer. Clarisse fudida pelos direitos de quem defeca a indigestão de tudo que engoliu de um sistema podre!
Clarisse indigesta. Traquitanas que giram a engrenagem movida à mão de obra humana, um moedor de cana onde jogam todos os dias homens e mulheres... Em nome do caldo que alimenta a tradicional família dos quintos dos infernos! Mal deglutida é Clarisse pelas camisas da cbf, e  por quem brada  que aeroporto é  igual rodoviária e que a democracia causou tudo isso. Ela mesma, empalada Clarice, levada a acreditar que podia decidir, decidiu também por um número qualquer naquele dia fatídico. Papai, papai, escandaliza o pequeno Rubens! Quero chegar logo na Disney! Quero o Mickey, papai! Enquanto o pai vermelho como um pimentão, fode Clarisse sem dó nem piedade! Chame o gerente sua puta! Um número qualquer de protocolo e a própria Clarisse decide também, sem assim saber que fodia a si mesma, e Rubens, o Mickey e o papai também escolhiam por se autosabotarem, numa espécie de voyerismo na frente da plateia, que agora resolve colocar a mão na massa dos seus fetiches particulares, mas chamam isso de trabalho, dinheiro e dignidade. Quando os dois filhos de Clarisse, que nem sei o nome, porque também já fui engolido e deglutido por essa narrativa, enfim, quando eles iriam a Disney? Com essa pergunta na cabeça  ela engaveta as etiquetas, sorri aos mesmos putos que desfilam chamando isso de direitos do consumidor, mas amanhã  eles embarcam em paz e pra ela só mais um dia de trabalho normal. Seu chefe bate nas suas costas. Assustada como uma égua domada, ela olha para trás e ouve com medo: "Clarisse , hoje não há  mais atraso!"

Por Jayme Mathias e Júlio Cesar

domingo, 22 de setembro de 2019

O lar de Fransquinha.

A poeira vem com o vento, às vezes com o carro que passa.
É sertão, interior do ceará. Nas pedras, rastros da minha infância. Nas árvores, rastros de menino. Nas cadeiras, rastros de conversas, se for de balanço, o rastro é mais velho.
A placa da estrada sinaliza Itapeim. Pra mim, Cruzeiro.
Na entrada, a casa de forró de frente para o cemitério, do sagrado ao profano.
Após a curva um outro mundo se abre, distante da civilização e próximo do peito.
Ao centro desse universo a pequena igreja acolhe a vida seca.
Em mim, até hoje, tudo se resume ao centro cortado por dois desvios, o da volta e o do rio.
Minha imagem do sertão dá uma volta de 360° graus em torno da igreja.
Vixe! De lá virei bicho, risquei o chão, corri de abelha, joguei bola e bila.
Eu vi o tempo parar, se arrastar entre as horas.
Ao chegar a noite vinham as histórias misteriosas nas rodas de conversa.
A Cruzeiro noturna é outra cidade, habita meus sonhos.

Essa noite voltamos. Para mim o tempo não parou, tenho idade, mas Cruzeiro, não tem tempo.
Retornamos à igreja, mais tarde, ao cemitério. Hoje não terá forró.
Em frente a estrada está a casa de minha tia Fransquinha, dando boas vindas ao seu mundo. Por muito nos acolheu com toda a calma, sempre tinha uma cadeira à mão.
Da cadeira, assistíamos o filme da vida narrado por minhas tias e tios, o cenário, Cruzeiro.
Família reunida, muita comida, lembranças, boas risadas e lágrimas.
Nesse dia o centro da viela não é mais a igreja, é o caixão.
Dentro dele, o fragilizado corpo narra no silêncio o que de nossas vidas carrega.
Cruzeiro que tanto me ensinou sobre a vida, agora me revela a morte.
Talvez sempre tivesse me falando sobre isso na entrada, da poeira do forró ao pó do cemitério.
Antigamente, o misterioso Cruzeiro era para mim uma morada de sonhos. Hoje tem outro rosto, falta tia Fransquinha.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 15 de setembro de 2019

Luiz

Ah Luiz, se eles soubessem,
o quanto a vitória significa pra nós,
se conosco estivessem, engodados nos cegos nós,
debaixo do fogo na trincheira,
se subissem a ladeira,
descalços no sol do meio dia.

Ah se eles soubessem,
o quanto quisemos não ser quem somos,
para só então descobrirmos que não queremos ser mais ninguém além de nós mesmos.

Porque hoje, diante da ocasião, percebo que não existe esmo no êxito
e a persistência trata de ser apenas  mais uma tentativa,
De resistência a loucura, de uma responsabilidade a qual não se opta, que se incuta nas costas de quem ainda não cuida nem de si.
E de repente carrega várias vidas na mochila, junto aos livros.

Ah Luiz se soubessem que a vida não escolhe, que ela não alisa,
que engole quem se encolhe, que não suaviza,
Que só há guisa de conclusão se for por meio da peleja
que de vez em quando, tomar uma boa cerveja é desafogar da pressão.

Que não há cereja no bolo
que não há perda sem dolo,
ainda que de um fim de semana de luxo da aldeia,
se antes não estiver na "pêia" de um UFC, onde os adversários são hidráulica e química,
se não correr na vêia a vontade de mandar a fitopatologia para o escambal.

Talvez, se eles soubessem Luiz, seriam gratos, gratos por tudo,
até pelo ossobuco, pelo feijão com gorgulho, pelo que se acha no meio do entulho,
talvez entendessem que o que importa não é o embrulho, mas o presente,
de viver com saúde  e milagrosamente sorrindo de contente,
no final de um dia de cão.

Ah Luiz se se pudesse medir a luz que irradiava dos olhos de uma mãe, refletidos numa sala cheia de doutos e bacanas, pessoas de primeira, com vida ganha,
Em plena segunda feira de fim de semestre regular.
Se pudessem ver além da foto tirada do celular
o que se esconde por trás do diploma

Se se pudesse pesar as noites mal dormidas, os penares da vida, nenhum papel jamais obteria tal gramatura.

Talvez se eles soubessem, entendessem meu choro bobo,
ao soar da leitura da ata,
do Soares que realizou o sonho da mãe,
de falar bonito igual professor,
palavras complicadas que creio eu, talvez, a maioria ela não entenda,
mas que soavam mais belas que o poema que ensaio agora nessas linhas poucas.
De ver o "seu menino" transformar em páginas toda a dor em um projeto que mede o labor de quem tá no pé do morro, onde uma vez esteve e transformar toda dor em indicador de um caminho para viver melhor.

Como um farol que "alumia" a cumieira do morro é que morro de orgulho de ver o Luiz transformar linha de costura e algodão doce em sonho realizado, como se fosse mágica, só que não.

É Luiz quem diria, que a tal da "filusufia" daria as caras no final das contas, que faria mais uma vez meu dia melhor, só de ver a felicidade e o rasgo de elogios à "IDEA"  de quem subiu comigo descalço a ladeira.

Por Júlio César

domingo, 8 de setembro de 2019

Erro gramatical

Sobre a má fala e má escrita, prefiro. Um texto sem defeito, só texto é. Sem pessoa. Texto intacto, duro, bem feito, é terrível. E do contrário, a maior delícia é ver um texto interessante que escorrega num erro gramatical. Ah! ali constatamos: "tem alguém, talvez". Não falo dos erros reproduzidos. Falo do erro genuíno, do erro bem feito. Esse é delicioso. O "foi sem querer" de alguém que escreve bem e escreve coisas interessantes. Um escorregar de uma letra a mais ou a menos, uma vírgula, um erro de concordância, uma repetição desnecessária, tão natural quanto o redemoinho que se infiltra no vento. Ele causa até surpresas, quem está lendo, ou ouvindo de repente desperta. Eu mesmo, quase dormindo, quando vejo isso, acordo, e, por isso, agora acordei de verdade para isso. Pois quero mesmo é que escorregue o artífice da gramática com suas regras. Vão para bem longe as traças de lupas que caçam tudo tristes nos textos. No fundo, sinto pena de um texto sem defeitos. E da fala, ave maria a pobezinha, como é chato ouvir alguém ouvindo tudo corretamente, bem de acordo, é impossível até acompanhá-lo até o fim, impossível até de conectar o raciocínio. Isso soaria bem para alguns pseudo-contentes, de ouvidos que não digerem bem e uma boca que vomita tudo, e diriam que ao menos isso saberíamos fazer bem, desobedecer, ele complemetaria, risonho, esse novo brasileiro nascente, patriota, verde verdadeiríssimo e de riso amarelo! Soaria bem para ele, mas nem se engane. Quem sabe fomos levados a separar as coisas, a produzir essa ideia, pois toda ideia é produzida, mas na maioria daz vezes reproduzida: aquele que fala bem é bem educado e faz coisas boas e puras e só ele tem mérito, ao passo que aquele outro que fala mal é ruim, pobre, misturado. Está aqui o cerne da coisa e isso vai até nossa ação. O pobre, mal educado, mal sucedido financeiramente e que fala errado são todos sinônimos. Se um rico, branco, bem educado, bem sucedido tropeça, trona-se doente, por que será? Apenas sei dizer inicialmente que o fato é que há capatazes na língua portuguesa. E eles têm nojo de quem escreve ou fala errado, claro, eles são lacaios, suas lanças com pontas de veneno estão apontadas contra nossa pobre liberdade – pobre, preta, indígena, trans, nova, sem nome, sem título e nesse veneno há muito da língua. Eu lá quero saber se é certo ou errado o jeito que falo ou escrevo. Há algo mais imbecil que caçar isso nos outros? Há algo mais incoveniente que essa tarefa de capataz gramatical a favor da escravidão latente em nós? Um erro gramatical é tomado também no meio acadêmico e educacional ou qualquer outro canto dito de alto nível uma falta de caráter, uma pobreza de espírito, uma descrença na capacidade intelectual tanto mais initeligível ele é. A que ponto chegou nossa escravatura, não querem deixar espaço para nada! Até em nossa fala e escrita, elas são reproduzidas para bem aprisionar. Por isso é que repito, é coisa triste falar e escrever correto e bem encadeado, em cada texto bem escrito vejo algemas, contratos de compras e vendas de escravos, chicotes, ferro em brasa, castigos, para que, embrutecidos e adestrados, não falem nem escrevam direito, porque não podem ter direito algum.

Por Jayme Mathias Netto

domingo, 1 de setembro de 2019

Teu olhar.


Tenho vários sentidos, entenda-os como quiser.
Vários deles eu domo, mas um se desfez.
Logo aquele que me faz enxergar, que no fim de mim, repousa teu olhar.
Quando errante, vaga, ascende à superfície, longe do ninho.
Mas teu olho é âncora, mergulha em mim.
Durante a aurora renasço, no crepúsculo re-enlaço.
No jogo do silêncio ele é o único que fala,
Diz sentir o que no olho brilha.
Sempre que há desgosto, chuva. Se for primavera, rega-me.
Teu olhar me consola, nele deito e descarrego o peso do dia.
Em tua íris me envolvo, encontro o cobertor que é tua pele.
Possuído pelos teus braços tenho os olhos como testemunha do que sinto.
Para mim é fácil dizer que te amo, pois me sai da boca.
Tu me pagas com a moeda da janela da alma, a mesma que o barqueiro aguarda nas portas do submundo.
Contrariando o desfiladeiro do rio, antecipo-me ao destino, acompanhando-te no veleiro da vida.
Rogo aos céus para que até o fim de nossa jornada toda riqueza, que recebo diariamente dos teus olhos, seja convertida no passaporte da tua companhia,
Pois no meu submundo já abri as portas para que tragas minha felicidade.
Da gratidão em ser visto pelo seu interior, ao querer te pagar na mesma moeda, prontamente Antunes me faz recordar,
Que é teu o meu olhar.
Paulo Victor de Albuquerque Silva.

P.S. O texto é dedicado a minha esposa Ana Suely em homenagem ao nosso aniversário de casamento.