segunda-feira, 28 de março de 2022

Ouroboros uma última vez

 


    Pompeu, antes de tomar qualquer decisão, sempre levanta-se de seu trono e, com o cetro na mão, anuncia sua decisão. Comandante dos destinos, senhor do reino da história. Foi abandonado por Deus para julgar seus súditos. Isso não evita que ainda rogue aos céus clamando por socorro ao decretar suas sentenças. Por vezes, revolta-se, chinga o divino, cospe no símbolo sagrado, mas rapidamente se arrepende e retoma as súplicas quando se vê perdido tendo que tomar uma decisão, pobre ser finito que reina. Está fadado ao acaso, seja para criá-lo ou mesmo para cumpri-lo.

    No que diz respeito a sua vida, acredita que a coisa é completamente diferente. Toma suas próprias decisões. Comanda seu destino e é senhor de sua história. Mesmo quando abandonado por Deus, acolhe as rédeas do porvir e guia seu caminho. Quando se percebe só, implora por intervenções celestiais à procura de alento, chora como todo sujeito moderno detentor de consciência de sua sina. Foi lançado ao mundo completamente nu e sozinho, uma criatura pequena coberta com roupas monárquicas que está fadada ao destino, seja para destruí-lo ou mesmo rejeitá-lo.

    A corte representa seu mundo em miniaturas, onde as criaturas jogam acreditando brincar. Na verdade, Pompeu tem o cetro preso às suas mãos quando acredita o segurar. No fim do espetáculo as luzes se apagam, a cortina se fecha, os personagens são recolhidos do palco e Pompeu, arrastado pelas cordas amarradas em suas extremidades, é guardado na caixa de bonecos.

Não tenho tanta certeza se já não escrevi esse texto antes.


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 20 de março de 2022

Réu primário do marasmo

 


Tenho lutado contra a retórica em meu favor.
No processo sou eu o juíz,
advogado, réu e promotor.

A acusação entra.
Os crimes: procrastinação, fracasso. Ter se fechado ao espaço que se abre para o pensar.
Introjeção e ocultação de reflexão. 
Falsidade ideológica.
Receptação de tudo. Emissão de nada.
Homicídio qualificado da leitura.

Ao testemunho, no banco dos reus, relato:
Que aos céus tenho rogado, apesar de não crer na total benevolência do divino
Que alguma força me devolva o fascínio, traga de volta o tino para arte.
Que apague do peito a letra escarlate que salga a semeadura da estrofe.
Além disso não tenho muito que dizer em meu favor.
Pois note, que por tanto tempo fui aluno e agora me recuso a ser professor.
Professar sobre a certeza que nem eu mesmo tenho.
Seria inútil empenho em vender o que não se compra, nem mesmo para si.
Desesperançoso, resta deixar que a defesa entre em cena.
E aponte algo que valha a pena salvar
No meio do lixão em que não mais tenho sido capaz de me encontrar.

A defesa inicia:
Ora se até o nada, tem sobre si uma vasta filosofia 
Onde as conclusões sobre o "não ser" se bicam como galos numa rinha,
Que linha reta essa defesa poderia seguir senão uma curva?
Quando até a própria mente se turva de tal modo a não poder se enxergar no horizonte distante.
A defesa poderia chamar a depor várias testemunhas, para invalidar as acusações nesse instante.
Vivissecções já feitas.
Elocubrações constantes nos autos do processo da vida.
Seriam provas concretas e lavradas.
Porém a inocência ficaria clara apenas aos outros. 
E nada disso inválida o presente julgamento, que nesse momento é de si.
Como, no entanto, demonstrar ao juiz a inocência de alguém que quer ser incriminado?
Ou pelo menos desistiu de se declarar inocente?
A defesa apela portanto que se atente a verdadeira culpada dos crimes apontados. Depressão.
Ora, pois que nada mais ela é, que se colocar além de qualquer salvação.
Empurrar para si o irremediável rótulo de invalidez.
Sem clamor, sem amor, sem perdão.
Pois ainda que todas as autodefesas, "autoestimativas" tenham sido dribladas, a defesa foca a narrativa no argumento de que permanece acima de tudo, o julgo da razão. Ao que dizia Sêneca: " a adversidade é exercício. Não importa o que você suporta, mas como você suporta."
E este indivíduo caro juiz, segue suportando. Fez disso um vício ano após ano, depois de todas as quedas que levou.
Como um indivíduo que berra aos 4 cantos, que desistiu de si e ainda assim, segue escrevendo esse texto, a defesa encerra pedindo absolução deste, por cegueira do ser causada pela "desvontade" da vida

A sentença:
Todos de pé!
Com a palavra vossa excelência, inteligência máxima residente neste amâgo:
Das acusações feitas e argumentações apresentadas, este que autolegisla entende, que este julgamento é a maior prova de que ainda se processa no réu tentativa de ir contra tudo aquilo de que fora acusado. Tendo em vista que intenção não exime culpa, a justiça determina que o réu peça desculpa a si mesmo pela sua autosupressão constante, caso assim não consiga, que busque ajuda profissional externa.
Para concluir um conselho da jurisprudência para o comitê de essência do réu, que baniu de si a alegria.
Um excerto, de uma mensagem certa vez capturada, despropositada, a esmo, mas nunca realmente em vão, nos arquivos do inconsciente:
"Você tem que acreditar na poesia. Porque tudo na sua vida vai deixar você na mão. Inclusive você mesmo."

Júlio César


domingo, 13 de março de 2022

Cuspe

 Sim, título bizarro!

É que só a poesia liberta!

Entre emoções que esfriaram

Entre panoramas que se igualaram

A vida quando parece 

Não dizer nada de importante

É só a poesia que salva!

E o cuspe, claro!

O cuspe punk que trouxe 

Pra ter um tom de rebeldia

E meu poema não existe

Se não como alguém

Que cochicha

Falo também de poeta

Não só de poesia

Da música

Como quem samba

E se veste 

De felicidade

Com ritmo da terra mãe

Que se não tivesse

Ainda Beethoven se ouvia

Não que Beethoven não seja excelente

Mas é do ritmo que falo

Dança e tambor

Não que todo o resto não seja lindo

Mas falo de música com a beleza do batuque

Não que as fenders não sejam surpreendentes

Mas falo de solo de guitarra com violão, pandeiro

e cuica

“E alguma coisa acontece no meu coração..." 

Pra substituir qualquer ra-ta-ta e exercício nuclear

Pois logo cedo já escolho morrer bêbado de poesia, música e não de medo

Aquele abraço!


Jayme Mathias 

domingo, 6 de março de 2022

Sacro Santo



    Laica é uma jovem moça de família temida e poderosa, os Fonsecas. Linhagem respeitada de militares que utilizam de todas as estratégias para manterem seu status quo, ações que vão desde sonegação de impostos à criação de empresas para lavagem de dinheiro, fruto do eficiente trabalho miliciano. Ao centro do núcleo parental, Laica representa todo o esforço familiar concentrado em sua figura como a neta mais querida que carrega consigo a marca da eficiência educativa dos Fonseca. Quanto maior a docilidade e a passividade da garota mais larga seria a capilaridade do poder patriarcal da família falicamente egóica.

    Laica Fonseca sabia costurar, cuidar da casa e dos possíveis filhos. Era virgem, mas já fantasiava sua vida sexual, principalmente quando ouvia escondida a narrativa das aventuras de seus primos com as jovens do bairro. Imaginava sua cama revirada de orgarmos múltiplos na companhia de meninos e meninas. Masturbava-se sempre que se percebia sozinha em casa. Adorava ir ao confessionário da igreja ver a silhueta do padre atrás dos basculantes de madeira e idealizar seu corpo nu em pecado. Vingativa, perdia-se em pensamentos nefastos planejando qual a melhor maneira de matar seu vizinho que colocou veneno para sua gata de estimação. Na biblioteca pública, procurava livros com temáticas eróticas e romances investigativos. Resistia à moralidade falocêntrica de seu pai criando um mundo majoritariamente profano com libertinagens carnais e cadavéricas.

    Na quarta-feira de cinzas, após vasculhar as ruas da cidade à procura de coitos públicos prestativos no aprimoramento de suas fantasias, decide retirar suas sandálias e entrar com os pés descalços em casa, para não ser percebida. Do lado de fora, na calçada, uma mulher embriagada dorme ao chão, ela possui somente um dos calçados. Laica aproveita a ocasião e lhe oferece seu par novo de chinelas. De súbito, ao abrir os olhos, a mulher indigente vê uma luz vinda do céu a iluminar Laica num sinal divino como que enviado pelo próprio Deus dos cristãos. Ela chora copiosamente enquanto beija as mãos de Laica reconhecendo a figura santa que lhe ajudara. Os primeiros raios do dia traziam os moradores à rua indagando o que havia ocorrido. “Ela é uma santa enviada dos céus” afirmava a mulher, Laica negava enquanto rapidamente se encaminhava à sua casa com medo de ser descoberta por sua mãe.

    No mesmo dia, a história corria por todos os becos e calçadas. "A melhor neta dos Fonseca é uma santa”, a “Santa Laica”. Depois disso, Laica passou a receber pães de graça na padaria, visitas particulares na sacristia, rosas surgiam na porta de sua casa. Não conseguia ficar sozinha para suas leituras na biblioteca, as visitas constantes lhe retiraram sua masturbação matinal. Ela odiava tudo isso e só pensava em socar todas aquelas pessoas até banhá-las em sangue, ao invés disso sorria e agradecia, como fora educada. Logo compreendeu que toda essa blasfêmia sobre sua vida iria lhe roubar os possíveis pretendentes para suas orgias imaginárias, afinal ninguém mais a perceberia como vulgar. Os dias passaram, depois meses. Relatos de milagres surgiram, alguns envolviam até mesmo as sandálias que estavam com a indigente. O ser de Laica, que tanto lutara para ser seu, tinha agora como inimigo um grande falo, um moralmente coletivo. 

No fim, vieram roupas longas, procissões, admiradores, missas diárias e castidade. Ao compreender a fatalidade da vida miraculosa conclui ao avistar seu rebanho de cima do altar, “sou uma Santa”, e acreditou nisso.

Paulo Victor de Albuquerque Silva