domingo, 30 de maio de 2021

Central do Brasil

 

Fulano furou a fila da vacina.

Forjou o atestado, se fez de abestado para melhor passar. Olha a sina!

Mas a quem ele enganou além de si?

Quem ele lesou? 


Morreram 28 na última chacina, entre as vítimas, meninos e meninas sem nome, sem dó.

"Normal, imagina! Morador de comunidade, se não for bandido, viciado, no mínimo envolvido com gente errada era." Diz Vera, após ingerir sua ritalina adquirida sem receita.


Quantos deles você realmente conhecia?


A dor a qual sentimos, somos sujeitos por amar. Não conhecer é normalizar o brutal, seguir o fluxo, tocar a vida banal sem sentir o ardor da ferida causada a outrem.


A coisa muda de figura quando alguém que amamos toma o tiro. Quando "está a nossa altura".

Quando somos nós, a vítima e o bandido.

Quando quem eu firo reflete a dor sofrida, de volta em mim. 


O outro não é o próximo.

Há um muro espesso entre os dois.

O outro é só mais um indivíduo, sem rosto, improfícuo, sem depois posto que se morreu, foi porque "Deus quis".

Inevitável era.


O outro é alguém que morreu e tá coberto ali, no chão do mercantil há 2 horas, enquanto eu compro o meu Danone grego de amoras.

Sobra frieza, falta tudo.


Ou é alguém que para muitos, só serve de porteiro, camelô, faxineiro, que mesmo após séculos de escravidão, nunca deveria ter saído do navio negreiro.


O outro é um quadro macabro para o qual ninguém quer olhar, o da indiferença. Pois quem olha e enxerga, como racional que é, pensa, que até no adágio: "que vença o melhor", é preciso partir da mesma largada. Pois do outro pinga o mesmo suor, mas o sprint é bem mais longo.


Outro nunca cidadão, sempre marginal. Um número presente em uma página que abro do jornal da matina.No meio de tantas outras mortes, desgraças e infortúnios. 

Cova rasa na campina, defunto sem nome, sem flor, sem lápide.

Aí eu te pergunto: de que adianta nutrir a crença em uma força maior, de misericórdia infinita, quando chama de maldita a mãe que recebe o bolsa família, "sem fazer nada"? Quando chama de doença o desejar do humilde de mudar pela luta.


Ninguém quer olhar o quadro porque sentir é transformar o outro em culpa, ressentimento, lembrar do livramento de estar vivo e produtivo.

De ser cobrado a fazer o bem sem olhar a quem e, ainda assim, escolher virar a cara.


Porque furar a fila sempre vai ser mais fácil que levar a bala por alguém que você nem conhece.


Os "próximos" a quem você amou e tem amado como a si, eram outros? Ou só mais de você mesmo?


Que Dora, você foi para os milhares de Josués que circulam por aí?


Mais um dia na central do Brasil.


Júlio César

domingo, 23 de maio de 2021

2789


O ano é 2789, mil anos após a dita revolução. Há mais números no ano que na minha conta bancária. Todo mundo tem em média dois mil dinheiros na conta para viver o próximo mês no mundo todo... Marquei minha ida ao médico num App desenvolvido por um PhD em TI do MIT, hoje deve ganhar uns dois mil dinheiros. Meu médico era PhD em Harvard e pedi para ele me receitar um colírio descoberto por uma farmacêutica PhD na Sorbonne, ambos devem ganhar uns dois mil dinheiros. Encontrei antes de entrar, na calçada um PhD em Filosofia da Universidade de Heidelberg, pedindo uma grana para o almoço, ele deve ganhar um mil dinheiro e pede uma grana complementar na calçada da padaria. Fui ao mercado, o caixa era PhD em contabilidade na Universidade de Princeton deve ganhar também seus dois mil dinheiros. Preparei meu almoço em casa, mas antes, cumprimentei o dono do restaurante do lado de casa e disse que hoje não ia comer lá, ele é PhD em gastronomia em Oxford e renomado na Cordon Bleu de Paris ganhando seus dois mil dinheiros. De tarde, liguei para o pedreiro colocar meus móveis da cozinha. Ele e toda sua equipe formada na UCLA ganhando seus dois mil dinheiros. Marquei minha terapeuta, ela deve ganhar mil dinheiros e também pede na rua do supermercado uma grana para complementar seu mês. Fora isso, a rua estava cheia de mendigos, todos eles escritores e poetas que não chegam nem à metade de mil dinheiros por mês, então pedem uma grana a mais todo dia, letrados e formados com cinco idiomas ou até mais, dos clássicos aos contemporâneos. Sabem todas as filosofias, as teorias políticas, as contradições sociais, estudam a fundo as relações humanas e conhecem o humano demasiado humano como a palma da mão. Aí eu dormi com os olhos atentos numa palestra de um economista da USP que faz isso para complementar o seu mês, pois ganha também menos de mil dinheiros. Ele dizia que os multimilionários são cada vez mais minoria e aí eu soube, com isso, que todos nós trabalhadores somos cada vez mais especialistas no que menos importa, justamente por sermos incapazes de mudar nossa sociedade humana demasiada humana. Tudo o que é humano é marginal. Peguei um livro de um marginal na estante e falei para o barbudo na capa: meu caro amigo, o problema não era a alienação. E dormi... amanhã será o ano 2790, um número a mais que não tenho na minha conta bancária. Feliz ano novo, caro Carlos Marcus!

 

Jayme Mathias Netto


domingo, 16 de maio de 2021

Derrota

 


Abatido, sentado à mesa da sala eu permaneço de cabeça baixa

Lamento o peso da sorte que me guia na perdição do meu destino

Não me importa tudo o que conquistei até aqui, fui derrotado

O vazio é agora um manto abissal que me envolve por dentro

Acolhe-me na solidão, afoga-me no desespero

Imóvel, encaro o abismo de frente enquanto ele me devolve o nada

Submerso sob o mar da tormenta, esqueço-me o que sinto

O gosto amargo do fracasso entalado na garganta aguarda o prato frio

O tempo corrói as esperanças abandonadas em todos os lugares

Sei que ainda re-viverei, mas hoje não


Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 9 de maio de 2021

Cidadão do mundo

Tenho pensado muito,

avaliado prós e contras,

feito as contas de quanto é preciso para encontrar a paz.

Tenho corrido da vida

de alma ferida,

cara lavada e mão tremida,

tenho visto vários vistos negados,

embargos e maus bocados

dos que precisam pertencer a um lugar de direito,

que respeite o pleito mínimo do cidadão decente.

Tenho ouvido absurdos aplaudidos

e bons estudos banidos do hall da utilidade,

dando lugar a mentiras que de tanto repetidas viraram verdades.

Tenho inspirado vírus,

expirado cansaço,

procurado algum traço da moral da história

que só cheira a mais um dia de 4000 desencarnos.

Tenho sofrido calado as verdades contidas nos ditados de mãe

aos quais nunca dei ouvidos.

Tenho tropeçado,

caído de uma ponte elevadiça,

imerso na areia movediça

que me engole vorazmente até o peito.

Quanto mais eu me mexo, mais me rejeito,

perdendo o respeito por quem dela sai.

Tenho sentido inveja de direitos que também são meus, mas nunca me foram assistidos.

Ainda assim tenho feito tudo isso,

e ferido, tenho sido humano, angustiado, 

Tenho levantado após consecutivos nocautes, 

e agradeço, 

poderia nem estar vivo.

Nem sei se mereço.

Tenho sangrado sob o sagrado solo da meritocracia.

Andado por labirintos em um pesadelo do qual estou farto de não acordar.

Então tenho criado,

Brincado com a sorte,

Tentado a "salvação provisória das garras da morte".

Tenho dormido um sono profundo, acordado.

Tenho sido "limpo".

Tenho sido "imundo".

                    

                  Cidadão do mundo,


                                   sem sair do quarto.



Júlio César

domingo, 2 de maio de 2021

num borrar do tempo, meu amigo

 

por vias dúbias

num segundo me clarifico

num errar do tempo que é meu amigo

que faço ser mais alto que o tempo que medito


quando medito sobre o tempo 

que o tempo pára quando medito


que não há mais tempo 

que suficiente seja


que o tempo encurta quando me dilacero 

que o tempo desacelera quando acelero


que por vias curtas

num segundo me intensifico

num borrar do tempo, meu amigo

que posso ser mais alto que o tempo que medito


que o tempo passa e memória acaba

que o tempo voa e o futuro me povoa


que o tempo volta e meia me consome

que não há tempo para a preguiça


que o tempo se sente e não se tem

que a idade parece que é desse jeito também


que por vias turvas

num segundo me repito

num rio do tempo, meu ofício

que devo ser mais alto que o tempo que medito


Jayme Mathias Netto