domingo, 29 de abril de 2018

Resposta para Heidegger

Esse texto vai para um grupo seleto de pessoas que, assim como eu, se depararam com a metade da vida ou, de maneira mais positiva, encontram-se na metade do caminho de encontro com a donzela dos lutos, a morte. Sabem aqueles casamentos arranjados que os pais conseguiam para seus filhos? Talvez tenham se espelhado no inevitável projeto do nosso destino para com o óbito. Não existe união mais fiel. Fonte de inspiração para a ideia de eternidade conjugal.
A morte não carrega uma foice, ela arrasta consigo um véu e sua grinalda. Odeia quando alguns afirmam repetidamente “até que a morte os separe”, pois ela sempre fora a noiva prometida que aguarda pacientemente seu cônjuge. Chega apenas para levar aquilo que sempre foi seu de direito. Pansexual, não faz distinção entre seus pretendentes. Qualquer coisa viva é sua fonte de desejo. O inorgânico é sua constituição. É a isso que o leitor deve voltar sua atenção. A morte não é metafísica. Ela está entre nós, atravessando-nos com tudo aquilo que é inorgânico. Percebemos a morte não quando o falecimento se consuma, mas em tudo aquilo que não possui vida, no inorgânico. O morto nos rodeia. Olho ao redor e vejo a morte em todos os lugares, nos objetos em minha volta, nas minhas roupas, no ar que respiro.
O homem não é um “ser para a morte”. Antes, somos seres em meio à morte. Ela não está no futuro. Majestosa, ela nos cerca, envolvendo-nos no seu silêncio. Agora percebo que não me encontro na metade do caminho da minha vida, encontro-me na metade do meu caminhar com a senhora morte. E no final, simplesmente deitarei em seus braços.
Por Paulo Victor Albuquerque
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 22 de abril de 2018

Rota de fuga

Em mais um percurso diário, ele olhava pela janela do ônibus enquanto as imagens que passavam fora distorciam-se, na medida em que a velocidade aumentava. Pensava: " a simples maneira de olhar as coisas muda tudo sobre elas. Será que as olho da maneira correta? Será que há maneira "correta" de olhar?" Sempre propunha a si esse tipo de exercício. Com os fones no ouvido, transportava-se para os mais inóspitos lugares do mundo e povoava-os com milhares de possibilidades. Certa vez encarnara o James Bond que virou bandido e fugiu sem rumo frustando a MI6, na outra fora o coringa que tomou juízo, desistiu de Gotham e saiu a distribuir sopas para os necessitados passando a se sustentar de shows de humor. Não havia limites para o aberto que se erigia diante da trilha sonora da mente. A cada parada convencia-se mais e mais de que a vida não precisa ser uma via de mão única e de que todo "ismo" era redução. Já havia refletido sobre isso inúmeras vezes antes de ouvir o pensamento traduzido na simples verdade de que "tentar explicar tudo é coisa de ser humano."
Chegou ao ponto de decida, tirou os fones voltou a viver no seu autorama de gesso.
Tão abrupto quanto o começo  foi o fim.
Gradativamente, enquanto caminhava para casa, tornou a si.
Certo de que no dia seguinte voltaria a voar por entre os prédios como um pinguim com asas de condor.
Certo de que a vida é um truque de luz.

Por Júlio César Barbosa
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 15 de abril de 2018

Filosofia do tudo

Antes da decadência, havia tudo. O tudo era mudança inclusive e necessariamente. Heráclito brincava no rio que sabia não ser o mesmo, sequer ele também não o seria. Tudo é transformação. E satisfeitos, tanto o rio como Heráclito saiam mais inteiros e
rindo da sua inexplicável relação. Ele chamava isso de brincadeira e o ser para ele era uma criança. Um jogo leve e alegre onde a própria decadência era triunfo. Um tropeço que nosso corpo sara logo. O que queriam os amantes da sabedoria? Saber sobre o tudo. As surpresas do estranho eram motivos de oferendas, banquetes e filosofavam sobre o tudo. Antes da
feiúra socrática chegar e apequenar o pensamento. Antes do moribundo não entender nada do trágico da vida. Antes da tragédia ser posta de lado como uma ilusão. Antes de Platão expulsar os artistas da república, pelo mais puro medo já conhecido. Antes, havia uma
constante mudança, havia o perigo como toda mudança e havia o medo também, com a qual uma população inteira brincava com os deuses. Depois, com esse filósofo, o pensamento virou
rédeas de cavalos indomáveis. Os decadentes chamariam a mudança agora de corrupção da matéria e começariam a proclamar: do nada, nada vem.Tamanha revolta, porque todo medo gera raiva. Eles então começariam a louvar a criação e o tudo era o corruptível, o múltiplo era negligenciado, a mudança era feia e falsa. Tomaram o rio e Heráclito e fizeram dialética, como a última palavra de que colocaríamos rodas na carruagem do tempo. Mas, em seguida, transformaram o tudo em nada. O nada começou a falsear o tudo. Esse mundo não era digno do ideal. Ele era decaído como adão e seus pecados, era decaído como o cristo e seu amor. E, em vez de nos libertarmos, esse mundo agora tinha uma dívida eterna: devia ser outro, devia ser o paraíso. Enalteceram até as últimas entranhas o dever-ser e utilizaram
figuras caricatas para tal. Pouco tempo depois, o cansaço criou o eu como o novo deus quando esse também decaiu. Hoje, batem no peito com suas certezas os nossos sábios contemporâneos! Hoje, somos qualquer coisa que valoriza o nada e a decadência que está travestida bem
na nossa frente, ali mesmo no espelho da ciência, da filosofia, da arte. Sequer percebemos os ganchos e as travas que nos acorretam para a negação do tudo e seguimos ideais, vazios e nadificadores.
Por Jayme Mathias Netto
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 8 de abril de 2018

Cartografia da vida adaptada


Em que instância poderíamos nos considerar livres? Corriqueiramente nos deparamos com duas principais teorias que defendem a existência da liberdade. Para a primeira, ser livre significa interagir espacialmente com a coisa extensa obedecendo os limites fisiológicos da carne, na outra, liberdade seria a realização de um ato que parte da minha vontade, não dependendo de um terceiro que me obrigue.
Antes de mais nada devo admitir a possibilidade de que a liberdade não passa de uma mera ilusão humana. Acreditamos que somos livres. Creio que posso agir de acordo com minha vontade decidindo os rumos de minha existência. Contra isso, alguém poderia me questionar se o que eu decido realmente parte de minha vontade livre, se não existem forças externas, as quais não conheço, me obrigando a agir de modo determinado. Em relação a locomoção livre no espaço também cabe outro questionamento: o ambiente onde vivo não delimita de todas as formas minhas ações, seja na locomoção, o lugar onde nasci, a língua que falo, os limites do meu corpo?
Se quisermos levar a sério a questão da liberdade temos que pensá-la sob esses dois aspectos, tanto a volição de nossas escolhas como nossa inserção em meio às possibilidades do espaço. Se pensarmos bem, somente podemos existir dentro de um espaço preenchido com coisas, pois o vazio não está ocupado. Ele (o espaço) paradoxalmente exerce uma dupla função: ao mesmo tempo que delimita nossos atos é também o único que nos permite agir, já que somente existimos dentro dele.
Ainda poderiam nos questionar se o libertar-se não seria semelhante a uma fuga, um desprender-se. O ato de sair de um lugar ou deixá-lo é antes de mais nada a pressuposição da ocupação de um outro lugar, pois não existe um fora absoluto do espaço, um além-lugar. A cartografia de nós mesmos delineia não somente os espaços do nosso corpo mas também os da nossa mente. O que seria liberdade então? Talvez seja aquele momento em que abrimos o mapa da vida e desvendamos os tesouros que encontram-se em meio a ela, ou talvez eu simplesmente me esqueça de olhar o mapa.

Paulo Victor Albuquerque
Vivissecção.blogspot.com

domingo, 1 de abril de 2018

Poema da sexta série

Tanto falei, que calei
Tanto verti, que dobrei
O prumo torto tomei
E já não posso mudar

Tanto lembrei que esqueci
De um jeito preso, soltei
O choro, como quem ri
E do desfecho não sei

Tanto desfiz, que reergui,
Tanto escondi, que mostrei,
O que era solto tangi
E do motivo lembrei

Tantas histórias que ouvi,
De tantas voltas que dei,
Das tantas coisas que vi,
Tanto escrevi...

                             que sequei.

Por Júlio César Barbosa
Vivisseccao.blogspot.com