domingo, 25 de abril de 2021

Onírica

  Estamira está a caminho de casa carregando o seu carrinho de supermercado. Eram 23 horas e o dia tinha lhe proporcionado grandes resgates de objetos valiosos à humanidade. Andava na contramão da história sobre a ciclofaixa, sem desviar sequer uma única vez do choque ciclístico que seguia o caminho indicado nas placas. Já perto da esquina de sua casa, lugar constantemente frequentado por baratas e ratos, enfiou a mão no saco azul anil encostado na calçada que, como cápsula do tempo, lhe trouxe o sonhado celular A 40 da Siemens de 2005, “16 anos de desejo e finalmente o encontro”, fala consigo Estamira após contar nos dedos quantos anos haviam se passado até o derradeiro encontro. Empolgada, adentra em seu lar, cumprimenta seu companheiro Jorge e caminha à estante dos celulares abrindo espaço para o seu mais novo aparelho, proveniente do mundo onírico de sua juventude. Com ele, soma-se o quadragésimo quinto telefone de sua coleção, número há muito esquecido por Estamira que já superou a fase de calcular a quantidade de seus objetos.

Na manhã seguinte ela é acordada por um fiscal da prefeitura que recebera uma denúncia de poluição urbana. “Poluição? Poluição num é coisa de lixo? Quem trabalha com lixo é meu marido e leva pra reciclage, eu pego tesôro, coisas valiosa, importante”. Atrás do entulho de máquinas de escrever sai Jorge aborrecido, “eu disse que ia dá merda, eu disse que só a porra. Senhô se preocupe não, hoje mermo já jogo tudo isso fora. Levo lá pá reciclage, fica a uns três quarterão daqui”. “Não, num leva não. Nem a pau. Aqui num tem lixo não. Isso aqui senhô é um A 40, cum ele você fala cum qualquer outro de longe, a distância mesmo, é uma invenção moderna, um luxo. Essas máquina aqui, escreve sem precisá de caneta, direto no papel, tem até umas pilha de papel alí pra escrevê. Tudo invenção da  modernidade senhô, tudinha. Pra quê jogar fora? Tô rodeada de progresso senhô, do futuro, de lembrança da ciência e da gente. Qual é a diferença da minha casa pro shoppim?”. Jorge, ainda raivoso, se vira para o fiscal e retruca Estamira, “Ela é laudada senhô, toda vida fala isso, ela acha que é moderna, num sei o quê”. “Ai é Jorge!? A modernidade é lixo agora? A tecnologia é lixo? Os sentimento, as memória são lixo? As mercadoria são lixo? Tu que é um lixo”! Enquanto isso, máquinas pesadas estacionam sobre a rua de mão única e se preparam para a limpeza urbana. Estamira, com os olhos esbugalhados e assustados, observa suas mercadorias, toda tecnologia empregada, toda ideia criada, os sonhos materializados, todo o progresso humano acumulado quando, de súbito, desaba sobre os escombros somente desejando que seus restos sejam depositados na caçamba de lixo.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.


domingo, 18 de abril de 2021

Metaplasia Neuronal




Metaplasia é definida como uma modificação a nível celular, reversível, encontrada em superfícies epiteliais, ou mesenquimais, machucadas repetidamente e que, de tanto incorrerem no processo de restauração, entram em confusão durante a diferenciação celular, sendo substituídas por células de mesma linhagem. A Metaplasia também é compreendida como uma etapa da cascata carcinogênica, estando um nível de gravidade acima da atrofia, e um nível abaixo da displasia, que, por sua vez, é irreversível.

Neuronal é um termo definido no dicionário como aquilo que está relacionado aos neurônios. Byung-Chul Han, descreve em seu super "in voga"  " A sociedade do cansaço", o século XXI  como um período neuronal, no qual, diferentemente dos períodos bacteriológicos, ou virais precedentes, caracterizados pela reação imunossupressora do organismo, de mobilização e combate a um corpo estranho, não há mais estranhamento, mas inclusão.

Apesar de todo o jargão inicialmente biológico, todos esses conceitos não são entendidos como restritos unicamente a esse aspecto. Eles se estendem por toda a malha social, afetando todas as relações humanas modernas de maneira imprevisível.

Isso porque, estranho e diferente não são sinônimos. Ao primeiro há reação imune, ao segundo não. Então, de repente, o diferente se torna igual e tudo se transforma  no mesmo, a negação do que deveria ser diferente, passa a ser a negação de si.

A falta dessa capacidade de resposta imune decorre do que Byung denomina de violência da positividade, que desencadeia síndromes e transtornos psicológicos como Burnout e Tdah.

Esse excesso de positividade retira progressivamente a negação como processo de filtragem daquilo que possivelmente se tornará nocivo à psiquê e leva à ausência de alteridade.

Essa violência, de origem virtual e viral, é o que se verifica hoje por todas as redes sociais as quais temos acesso.

Desta maneira, o inimigo Baudrillardiano, que primeiramente nos aparece na figura de lobo, se transforma em rato, em seguida em besouro diminuindo cada vez mais, até transmutar-se em um vírus, não apenas biológico, mas virtual, na forma de vídeo, posicionamento, discurso político viral, que adentra nossas defesas cognoscíveis sem que nem nos apercebamos, em determinado momento, o entendemos como parte componente nossa e inicia-se o processo de autoflagelação.

Há, portanto, "um parentesco entre virtualidade e viralidade".


Para o artista, esse processo inicia  quando passa-se a observar a vida e deixa de viver.

Assim como quando o abismo te olha de volta.

Ele se torna o abismo.

E nesse momento em que a vida é tão triste e descabida é que a arte entra em parafuso.

Tornando cada respiração na compressão de uma prensa hidráulica de 200 toneladas.

A existência se torna intragável como dizia Clarice.

Não suporto a mim mesmo, aos meus trejeitos. Nem creio que, tão cedo, algo vá mudar.

Esse é o desespero artístico.

A inspiração inconsciente responde com um grito de socorro.

E começa a questionar a si mesma:

Quantas vezes ainda? Tem de ser dito?

Que o caminho é para além da reprodução?

Quantas vezes ainda ter de ouvir o mesmo refrão?

De que o estranho é necessário e ainda assim, fazer o igual?

O limítrofe em cada estrofe.

Viver passa a ser uma série de movimentos mecânicos orgânicos e repetitivos, que causam a lesão de novo e de novo e consequentemente a metaplasia neuronal.

Subitamente, não sei mais dizer o que faz ou não parte da minha personalidade.

É peremptório a necessidade de reconhecer o estranho. E de dizer não a ele. Se a resposta para tudo for encontrada na diferença, tudo se tornará verdade e quando menos percebermos, passaremos a displasia e ao câncer, subitamente, sem notar, estaremos gritando coisas do tipo: "mito", em uma esquina qualquer.


Júlio César

domingo, 11 de abril de 2021

Passa que todo dia passa


Dia

            a

                        dia

Adia

            o dia

que

            via

a

            via

 

Há dias

Dei

            as costas

ao dia

 

Já era noite

                        quando me virei

de frente

 

Dei                

as costas                  

                                   à noite                                  

 

Já era dia     

tão                             

de repente    



Jayme Mathias Netto

domingo, 4 de abril de 2021

Mercadoria Barroca

Andei mais dois quarteirões até chegar à praça do Ferreira. Sentei num banco da praça perto de alguns conhecidos. Tínhamos acabado de almoçar e o grande relógio da praça tocava a mesma ferrugem desgastada, como no dia em que meu pai me apresentou ao centro da cidade. Sol a pico, até os pombos buscavam abrigo, estavam enfileirados no letreiro do Cine São Luiz, que anunciava mais um filme do Almodóvar. Ao lado do cinema fica o lugar mais fresco nesse horário, e André estava lá com seu saco cheio de latinhas. Me aproximei dele, dei um beijo em sua testa, sorri e sentei. André me disse que tinha trago um presente, era uma luva prateada. Ele sempre se lembrava de mim, demonstrava seu afeto através dessas pequenas lembrancinhas que me avivavam em sua memória. Trouxe-me as luvas pois sabia do meu apreço pela moda clássica francesa e seus cabarés, queria fazer de mim sua mulher. Faltava-me as maquiagens, os apliques, as unhas postiças, silicones, mas não faltavam as luvas. À noite, quando fazíamos amor escondidos dos transeuntes debaixo do edredom, ele me prometia um novo lar, onde eu jamais seria expulsa de casa.

A vida noturna no centro é muito aterradora. Cada morador das ruelas, que cortam os prédios históricos do século XIX e XX, carregam consigo o instinto animalesco das selvas primitivas rochosas, todos portam suas armas brancas: canivetes, facas de cozinha, estiletes, navalhas, etc. Não é preciso muito, uma arma, roupas, crack, papelão, álcool, cola. O bicho demasiadamente desumanizado reside em tais seres que tanto se unem quanto se matam passionalmente. Semana passada Jorge assassinou a facadas Henrique por conta de um resto de quentinha furtada no sono da tarde. São um tipo de humano que não possui os meios de produção ou propriedade privada, nem mesmo uma força de trabalho, não são sujeitos históricos, desvelam o inumano, somente são donos de um corpo que come e mata. Eu moro na Travessa Severiano Ribeiro, logo ao lado do Cine São Luiz que nunca entrei, mas que me sustenta com o dinheiro de seus frequentadores, eu peço, para não ter que me prostituir. André não gosta de dividir meu corpo com o de outros homens, antes eu vendia minha carcaça como uma máquina industrial com várias funções bem pró-ativas, usava a boca, ou a mão, o pênis, o ânus, etc. Perto da Praça das Crianças sempre apareciam alguns tarados drogados à procura de partes do meu corpo.

Hoje não sou mais adépta da prostituição, mas gostaria de aperfeiçoar meu maquinário sexual para satisfazer o único homem que me valoriza como mulher, André. Junto às vitrines das grandes lojas e seus suvenires, as várias clínicas clandestinas, as lojas de sapatos, perfumes, bijuterias, lingeries, sonho com meus peitos, minha bunda, minha vagina, tudo à mão, como promessa, no templo da mercadoria. Afinal, tantas mulheres com seus corpos de mulheres, e eu? Sonho com meu corpo.

Decidi fazer uma oferenda de uma parte do meu corpo, escolhi a mão, uma só, como fazia o Michael Jackson, venerei a mão direita com a luva azul. Andava pela praça do Ferreira com a mão estendida, como se ela fosse um autômato prateado que recebia moedas de mesma cor. Com o tempo minha mão fez sucesso na praça, no bairro, até aparecer uma repórter para entrevistar a portadora da mão. Três dias depois estava ela estampada na capa do principal jornal da cidade, tinha se banhado para que ficasse reluzindo a luz do sol, cintilante, ao fundo meu rosto. A matéria falava sobre mim, minha história, a ideia da mão. Engraçado como quando lemos sobre a fome à tornamos plasticamente sofrida, uma espécie de romantização do vazio no bucho. A repórter me pagou comida e por um tempo, de barriga cheia, eu pude sonhar, contei dos meus planos, sobre o meu corpo e ela me disse que talvez, com a publicação da matéria, eu poderia ser redimida, recebendo o corpo que ainda não fui.

Paulo Victor de Albuquerque Silva