domingo, 29 de dezembro de 2019

2020: uma odisseia na terra



Pela janela, nada de carros voadores, longe do teletransporte, só se pode contar com a sorte para chegar na hora marcada. Amarante olha pelas venezianas e do que vê só conclui regressão.
Na tv a retrospectiva do retrocesso.
Um ano inteiro, desde janeiro, resumido em miséria, tragédia e status quo. Mantido, remido e glorificado.
Mais um ano de seca no nordeste, sem que reste quase nada a quem já não tem. Segue a redundância do cabra da peste, que sofre mesmo é de fome e endurece que nem pedra. Sob o povo, jamais pairou tamanho torpor. Defronte a sucessivos causos gritantes, repercussões gigantes, começam e terminam em 140 caracteres, ou menos. Amarante pensa, pega o caderno e escreve. Depois de muito tempo. A letra demora a assentar, acostumado com o dígito, esquecera de sua tão familiar caligrafia, garranchuda, mas legível.
Nas linhas, incompreensão.
"Como nos distanciamos dos carros voadores?" Indaga. No pensamento a ideia de repetição se concretiza sem alternativas, a quebra dos paradigmas é cada vez menos alcançável. "Eu poderia ter feito diferente!" Poderia?
Se somos a semente daquilo que plantamos, provavelmente somos monocultivo e, da soja, somente soja virá. O que de daninha houver é arrancado na mão e na enxada, ou envenenado pelo herbicida que tolhe o diverso. Amarante pensa ser uma daninha indomável, resistente a tudo, a germinar no entulho, ou na lage recém batida. Pensa mais Amarante! Age mais! O jovem tenta escrever diferente, mas só sai igual. "Será que também sou soja?" Pensou em falar sobre política, desistiu. Nesse âmbito nem tinha o que escrever. "Seguimos mansamente, sendo gado perdido no próprio pasto." Pensava.
Somos gado sendo abatido um a um com a pistola de pressão, no mesmo brete.
Sai um, entra outro.
Sai um, entra outro.
Celular nas fuças.
E tome.
Tome.
TOME!
 Sem ter sobre o que escrever, o estalo do óbvio adveio. "Se somos os porcos no campo de centeio, nós é que temos que mudar e não o que nos cerca!"
"Para quê buscar solução no espaço longínquo, se aqui restamos? Que odisséia parece mais 'odissêica' que a da vida na terra?" Amarante achou! A brecha quase microscópica que o coloca no patamar de daninha. Escreveu a tarde inteira. Mais questionou do que concluiu, mas viu na poesia o adubo pra crescer mesmo contra a enxada e o arado de aiveca.
Finalizou com um aviso: "Esqueçam os carros voadores e desenhem para si mesmo asas, para que, caso daninhas forem, não sejam arrancados do chão, a não ser por si mesmos."

Júlio César 

domingo, 22 de dezembro de 2019

Gaspar

A mendicância sábia dos olhos vidrados de Gaspar dizia muito que nem tudo tá perdido nesse céu metálico. O ódio virou uma espécie de religião no peito dos homi, mas eu ainda confio no sorriso e queria mesmo era roubar de deus a beleza da verdade. E não era tão tarde da noite quando decidi voltar pra sarjeta e encontrei o véi no ônibus, não deus, mas Gaspar que é muito mais importante. Encontrei e foi do nada. Ele tava indo também pro barraco em Jaures. Ele vinha com Carlito, o cão esbofeteado, desnorteado, doido e pura a lama seca. Os dois pareciam que tinham matado um bixo e enfiado nas calças. 
- Gaspar, seu carne de pescoço, tu tá pura a mijo!
 - Num gasto mais um centavo de banho público, Zé. Os fia da puta dos seguranças num libera a gente pra num espantar turista, sabe como é né? Último banho faz um mês ou mais e foi junto com os rato que nadavam ali no canal St Martin. Eu fiquei pura a peixe.
- Sei como é, mas faz tempo marvado tu tá sumido demais...
- Ah disgramado, mas esse mal cheiro também é tu né? Achava que era o Carlito aqui peidando.
O cão tava pôde e ninguém nem via os zói do bixim. Escondia todos os tipos de carrapato e piolho na pelagem cinza. Ele me olhava sem reconhecer, mas também veio até mim com preguiça de latir roçando na minha perna. Se falasse, ele diria "vai tomar no cu, e deixa eu peidar na sua cara". 
E eu fiz um carinho nele, mas quando vejo de volta Gaspar tá de olhos vidrados, como quem tem uma alegria de repente:
- Toma um euro procê. Um procê e procê e procê - saiu dando pra cada um do ônibus, em vez de pedir. 
Eu sei lá que merda ele tinha tomado pra não pedir nosso ganha-pão, ele tava distribuindo nosso lucro pra todo mundo.
- Ei cara de bagre, que merda é essa. Tá louco de ácido é mané? Parece que tá comendo rato pra cumer...
Desajeitado, tentei falar pras pessoas: senhoras e senhores perdoem nosso mau cheiro e estragar essa noite maravilhosa, mas nos devolvam, por favor, cada centavo que nós demos, é nosso trabalho de um dia inteiro e o colega aqui não tá muito bem.
Voei nos peitos de Gaspar e empurrei o gatuno pra ele sentar e as pessoas se afastavam fácil por conta do cheiro.
- Dá aqui de volta sinhora, obrigado viu deus te abençoe... obrigado garotim, deus passe na sua frente. É que meu amigo ali tá meio doido. Sabe como é né? E eu fazia gesto com as mãos pra criancinha rir.
- Mas profeta vocês vêem poucos hoje, né? – Gargalhava Gaspar de novo olhando no fundo do olho de cada um, já em pé. Seus olhos iluminavam e ofuscavam os olhos dos outros.
- É um euro fio duma mãe, um euro, como é que a gente vai pra casa sem nada? O pessoal do barraco tá fazendo a cota pra gente se mudar antes que o verão acabe. - Eu dizia pra ele acordar daquela viagem da cabeça dele. - Tá maluco das ideia fi de puta? 
- Zé, eu lá quero saber de dinheiro, eu num sou lacaio do capital não porra. - Ele respondia de olhos ainda vidrados e sorria como quem tivesse descoberto algo - eu sou a verdade. - ele dizia arrogante como um bosta.
- Gaspar, pera porra, tu tá é com dor de barriga, truta. – Sinhô, desço na próxima. Ai não, é aqui que aperta. Pessoal num chamem a polícia não viu, já tamo indo já viu? - Eu dizia pras pessoas e cochichava baixinho pro Gaspar: - Ei zé ruela, para de gritar, porra.
Até que ele profetizou algo que me fez rir e chorar ao mesmo tempo:
- Pra cada conservador reacionário foi isso que a extrema direita investiu todo esse tempo procês votar. Um euro fias da puta. Esses fia da puta em qualquer canto do mundo só investem isso em vocês, vocês ai nesses celulares de merda nem olham pro céu. Eu escapei da armadilha e hoje tou aqui pra vos revelar a verdade.
Eu não me contive e dei-lhe um abraço rindo da sua ideia, querendo disfarçar meu choro. 
- Pessoal, desculpe viu? – Eu dizia.
- Basta cês ir pra escola e aprender a contar. Não sabiam disso? A escola não vos ensina. Eu vos ensino: vocês valem um euro não mais que isso.
Um garoto bonitim dos zoi azul disse comendo uma batata do mc lanche feliz:
- Eu sei sim meu senhor.
Eu comecei a rir. O menininho encucado não entendia. 
- A verdade tá escancarada. Foi apenas um euro ou menos, só isso já basta. Não é muito. 
Eu só conseguia rir cada vez mais e um vulcão estendeu no meu peito. Dizem que os doze profetas sentiram isso com cristo. 
- Se a escola tivesse ensinado a calcular, não tinha um euro que pagasse esse voto docês. O adestramento escolar que todos chamam de ensino é barato demais pro poder. Esses celulares aí nem se fala, é migalha. Eles querem garantir que cês num façam esse cálculo, saibam o preço de tudo, mas o valor de nada.
Saí correndo daquela porra de ônibus. Gaspar e Carlito saíram atrás mandando todo mundo ir tomar no cu. Compramos vinho barato com o resto que sobrou. Entramos no barraco. 
Ninguém falava com a gente. A lua foi brilhar noutro lugar e eu abraçava o marvado como um velho bandido. Eu fui dormir com o velho mendigo da rua e cão de botequim e só pensava em tudo que ele dizia naquela noite. Carlito, desconfiado comigo ali desistia de latir. Só eu chorava porque eles pareciam anjos dormindo. Eu nunca tinha visto anjos pelo ar, mas Gaspar me falava do amor. Dizia que aquilo que os fia da puta do estado e do capital falam não se deve jamais ouvir, e que o amor sempre vencerá o ódio... E a vida fazia muito mais sentido agora. Eu abracei Carlito pra dormir:
- Sabe Carlito? A porra do ódio dos nossos tempos é uma moda passageira que se vai tal qual fumaça. O amanhã quem sabe vai ser outro dia.

Jayme Mathias 

domingo, 15 de dezembro de 2019

O professor e a pós-verdade.

Pensar que os estudantes das escolas básicas, em uma época permeada pelo fenômeno da pós-verdade, são completamente influenciados ideologicamente por seus professores, demonstra a falta - para não dizer ignorância - de uma análise detalhada do que seria a realidade escolar por parte daqueles que defendem tal hipótese. Diariamente somos bombardeados com informações do mundo inteiro através das redes sociais. Se na origem histórica da imprensa contávamos basicamente com as notícias impressas nos jornais, agora dispomos do rádio, televisão, computadores, celulares, tablets, da internet em sua totalidade. Saímos da escassez, ou melhor dizendo, de uma realidade restrita em que a informação era privilégio de grupos específicos, para a era virtual da notícia globalizada. Hoje temos acesso à informação, somos ativos no processo de busca. Que transformações se fazem presentes no campo cognitivo dos indivíduos contemporâneos que em poucas décadas se viram deslocados de uma sociedade da informação restrita, para outra, da informação ativa, virtualmente dinâmica?
A sociedade informatizada, permeada pelo fenômeno da pós-verdade, impõe aos profissionais da educação um novo desafio: despertar nos discentes a manipulação crítica sobre as informações ininterruptamente produzidas e que são transmitidas aos mesmos. Ou seja, a nova geração de estudantes chega às escolas, não enquanto tábulas rasas em branco, mas com seu sistema cognitivo diariamente sobrecarregado ideologicamente. A mesma necessidade com o cuidado do conteúdo que se faz presente no planejamento das aulas por parte do professor, que procura tanto evitar entrar em contato quanto disseminar notícias falsas em sala, deve ser uma máxima ao alertarmos a juventude quando se deparam com o bombardeio de informações virtualmente modificadas. Mas qual seria a relação entre a notícia falsa e o virtual?
A virtualidade não é algo novo na história da humanidade. Tomemos como exemplo o amor platônico - ele é uma idealização virtual de um outro ser que habita os espaços da alma do amante. A virtualidade é um fenômeno ideal, mas que em alguns casos se pretende concreta, ou melhor dizendo, transfigura a materialidade em nome do seu ideal. Daí afirmarmos a diferença entre a mera mentira e o fenômeno pós-verdade. A primeira tem por objetivo esconder uma faceta da realidade circundante, a segunda propõe uma transmutação do real em detrimento da virtualidade, permeada e estruturada pelo cunho ideológico. Aos educadores cabe a tarefa de despertar a percepção cognoscível sobre as camadas de realidades construídas pelo mundo pós-moderno. Dizer que as escolas encontram-se atreladas a um plano doutrinário da esquerda - seja com a “ideologia de gênero”, “marxismo cultural”, “sexualidade infantil”, etc. - diz muito mais sobre o projeto de politização da virtualidade do que sobre a materialidade existencial da prática escolar. Eu, enquanto professor do ensino básico brasileiro, reconheço a importância dos aparatos técnicos digitais em nosso contexto escolar, mas devo, eticamente e politicamente alertar sobre nosso novo papel educacional na promoção da distinção cognitiva das camadas entre a virtualidade e a concretude do real.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Sucesso

Sempre mal agradecido.
Nunca notei que os pedaços do meu coração, comidos por mim, encheram meu próprio bucho.
Morrer não morri.
Aqui estou e mais uma vez regresso.
Talvez o sucesso não esteja no que dizem que está.
Sou campeão de mim mesmo, todos os dias.
Venço fantasias vãs de uma vida que nunca tive.
Será o sucesso, excesso e falta ao mesmo tempo?
Excesso de fracassos acumulados na cicatriz que mal fechou e já arranquei outro pedaço com a boca. 
Falta da vicissitude de abocanhar o outro, falta de malícia, de maldade, de achar que o mundo é dos mais espertos e não dos mais bondosos.
Fato é que me devoro e, aos poucos, sobrevivo de mim.
Já não sou o mesmo, pois o tecido que cura é novo.
E juntando minhas migalhas é que enxergo o quanto elas me salvam. 
É do verbo que se fez carne e foi devorado, que hoje sou nova folha em branco, amassada talvez, mas inteira.
E dessa maneira decidi que meu sucesso é na medida em que venço o pior de mim.
E arranco pedaço a pedaço o que me dói. Me reescrevo.
As armadilhas que nunca encontrei, foi porque tinha caído em cada uma  delas, estava só. Sobrevivi das migalhas. Do pedaço que se desprendeu em cada uma.
A elas sou grato, são meu prato principal e sobremesa.
Sou canibal de tudo que me desagrada.
Dizem que triste é quem precisa de muito. O intuito é cada vez mais deixar de precisar. Até se bastar.
Meu analista diz que talvez eu esteja com síndrome de Estocolmo, e me apaixonei pelo meu captor. No caso eu mesmo. Até perceber que também sou meu próprio analista. Seria ele uma migalha de mim?
Talvez eu o devore, se ele me encher o saco!
É provável que eu esteja com a doença da vaca louca, vai saber!
Certo é que do ponto de vista que é vista de um ponto, não sobrou pedra sobre pedra  do que me cerca.
Mas minhas migalhas permanecem aqui. São minhas.
Sucesso é encher o bucho de migalhas.
O coração, hoje, serve apenas de saco de pancadas, melhor então que esteja no meu bucho.
Minha casa é o mundo, o caminho que ficou atrás não importa mais.
Sucesso é como me despeço de tudo que dispenso.

 Adeus!?

Júlio César 

domingo, 1 de dezembro de 2019

Café

Nas inúmeras substâncias da vida, eu fui capaz de chorar como uma criança simplesmente porque tomei café. O fluxo de consciência foi tão rápido e dilacerante, logo pela manhã, na superdose que havia feito, que passei a delirar. Minhas mãos suaram frio e eu escrevia algum objeto de meu trabalho num apego intenso e verdadeiro. O meu estômago exprimia-se todo. Eu tinha alta sudorese. A respiração era ofegante e os pensamentos muito acelerados. O nervosismo da mão em estar digitando rápido produziu textos que tive que reiterar completamente, porque comi muitas letras e consoantes como a traça. Era uma ansiedade que parecia que eu estava guiando para algo bom. Como se o medo pudesse ser guiado. E tomei à frente com muito trabalho a fazer e fiz, fiz de uma forma mais conectada à própria raiz de onde me fiz como trabalhador. Eu me vi exalando o cheiro de café para todos os lados e bebia água para ver se passava logo. Cerca de duas horas depois julguei-me mais tranquilizado, quando me acometeu uma azia e uma fome ao fim da manhã e para hora do almoço. Fiz um poema ao café nesse meu delírio único. Posteriormente, quero que a água me faça assim e quem sabe mesmo o vento, o sol, a chuva, o cantar dos pássaros, eu quero delirar com qualquer coisa de forma alegre. Hoje vi uma traça andando pelo meu livro. Não matei. Depois de saber dos meus delírios ativos, deixei também a traça comer letras e consoantes, talvez ela esteja tomada pela vida. Uma alegria que ainda não fui capaz de ver, mas apenas de sentir que existe. Eu era uma traça cósmica, que consumia livros e replicava outros tantos. Ela podia estar delirando na química preta das letras e confabulando que era no cosmos um homem lendo e digitando. Acontece às vezes, e sem querer, a vida nos apresenta esses sorrisos.

Jayme Mathias