segunda-feira, 28 de junho de 2021

Apresentação do livro “O homem ao avesso”

O “Homem ao avesso” de Jayme Mathias Netto, não é um convite, mas uma inserção tátil ao espaço devastado em que um senhor, espinhento como os cactos do sertão brasileiro, habita as grandes cidades modernas. L, seu nome, é um velho ranzinza consumido pela insônia e atazanado pela enxaqueca fisiológica do século XXI, clamores de um corpo antigo aprisionado pela vigília constante do niilismo contemporâneo. O despertar dele consigo, em sua solidão, traz à tona o reconhecimento de si. Entre o eu e a loucura, L é o homem ao avesso, pois nele o que vive e age não é sua pele, são suas vísceras. Daí seu corpo pulsar libidinosamente com os cheiros, os paladares da cidade, tudo aquilo que termina nas entranhas do seu espírito ao avesso em carne. É o retrato do homem moderno que abarrota sua consciência com as mais variadas vivências em choque nas grandes cidades, mas que guarda nos porões de sua memória, lembranças e sonhos reprimidos.

Como um corpo que fala, as memórias reprimidas de L se voltam contra o tempo saturado da vigília. Sua memória é feita de Fortaleza, a cidade lhe devora, já que L é um alimento orgânico a céu aberto. Seu paladar ostenta dos mais refinados aos mais fétidos aromas da capital cearense. Em alguns de seus robes, como a pescaria, acompanhado do velho amigo K e outros pescadores amadores, permeiam as memórias de L com bagres, anzol, cachaça, e muita prosa. Entre Fortaleza e Paris, se apaixona por tudo aquilo que há de autêntico entre as duas cidades, sua idade avançada lhe garante uma narrativa cheia de temperos do tempo que carrega no estômago. De uma família de classe média, e mesmo com todas as regalias materiais deixadas por seus familiares através de uma herança, L vivia sob a abóbada imperiosa do inferno, ao centro, com o seu cetro, a entidade diabólica que regia o seu mundo na insistência da dúvida, um Daimon totalmente seu.

L é a representação do homem em meio à multidão, infiltrado à uniformidade da massa, que antes de tudo não se reconhece nela, ele se impacienta, a odeia. A insônia sentinela no centro de uma vida infernal abarrota a consciência de L levando-o ao seu extremo fisiológico, uma vigília que faz reluzir em sua mente saturada os pormenores da vida autômata da coletividade. Tal ambiente leva o personagem a perceber uma das mais devastadoras atmosferas diabólicas do mundo contemporâneo, o eterno retorno do sempre igual da vida metropolitana. A condição humana pertencente à L, com sua velhice, enxaqueca e dores no estômago, desvelam uma vida de vísceras, onde não existem mistérios, nem segredos, ou outros dos melhores mundos possíveis, apenas as migalhas desertas do atual. A vivência do sempre igual que se acumula aos seus pés produz a existência do homem esgotado da vida cotidiana. Seu horizonte tem como limites a própria terra, nada além dela. Até mesmo seu amigo K era o seu avesso, L é avesso ao mundo, interno e externo. No mundo de L não encontramos sonhos, seu estado de vigília não permite.

No ponto alto da narrativa do idoso nos deparamos com sua estratégia de resistência à reprodutibilidade homogênea do atual, quando L nos apresenta as lembranças do seu deslumbrante relacionamento com a personagem M, seu grande amor. Confesso meu deslumbramento pois, acredito ser uma das descrições românticas mais lindas que já tive contato. Neste ponto Jayme Mathias Netto revela o quanto é complexa sua análise em torno do existencial humano contemporâneo. E é assim, no olho diabólico da repetição metropolitana que L propõe um ação de amor/resistência, o ato da pausa, do fim, da interrupção, somente ela garantirá o vir a ser da singularidade do amor, do ser apaixonado, da vida autêntica, de outras vidas, vividas ao avesso.


Paulo Victor de Albuquerque Silva


terça-feira, 22 de junho de 2021

Julho do Leitor 2021

 Como todo ano, estamos fazendo a chamada de textos dos leitores do nosso blog Vivissecção.

A ideia é que no mês de julho, aos domingos, postaremos textos dos nossos leitores.


Como alguns leitores se interessaram pela nossa escrita, pelo conteúdo do blog e querem também espaço para suas ideias e sentimentos, a gente decidiu abrir esse espaço de produção de pensamentos dos leitores. 

Uma​ forma de interagir com novas ideias e questionamentos.

O conteúdo dos textos são experiências singulares, poéticas e filosóficas, são vivências de recortes de intensidade que nos trazem de volta à vida, que nos fazem sentir de outra forma e também questionamentos viscerais.

Caso você queira postar seu texto, envie para : jaymemathias@gmail.com ou, na aba direita do nosso blog, está, a partir de hoje, disponível a opção de nos enviar uma mensagem com seu texto. 

Envie:

 seu texto com seu nome (nome do pseudônimo caso queira), 
 e-mail para contato
 e suas redes sociais (Instagram, Facebook etc.)

Enviar textos até 10 de julho de 2021

Jayme Mathias
Júlio César Dantas
Paulo Victor de Albuquerque

domingo, 20 de junho de 2021

34

 Das poucas palavras

Que por hora me escorrem dos dedos

Sem grandes enredos e tramas

Sem grande comédia ou drama

Derramo aqui o instante da alma.


Às vezes não tem motivo, intuito, razão

Senão sair da penumbra do peito apertado.

O que ficara guardado, que arrocha o nó do miolo do peito

bem no miocárdio e só passa quando sai.


Não tem moral, rima, script nem personagem.

É produção e produto.

Motor e engrenagem.

Funciona porque vive, não obedece a nada senão a si.

Necessidade que não necessita.

Apenas flui.


Nem tudo se funda em propósitos externos.

Nem tudo que se busca são carros e ternos.

Mas a autossuficiência dos seus próprios processos.

Naquilo que secreta e constantemente agrada, satisfaz e aperfeiçoa

E que ninguém sabe.


E quando o exterior é só caos,

pandemônio e pandemia são sinônimos de democracia.

Talvez olhar para dentro e se derramar sem pensar no agrado alheio seja o melhor a fazer.


Júlio César

domingo, 13 de junho de 2021

Minhas multidões

 Esses dias, me toquei de uma coisa. Sou operário das palavras. Capatazes cobram rapidez e qualidade do meu trabalho diário de tradutor com elas, mas eu faço as minhas revoluções. Há muito gozo em tratar mal os capatazes. Uma palavra mal escrita e eu riu da cara dela, deixo ela lá. Ela tá feliz, a bichinha. Elas riem entre si. Juntos quebramos o sistema. Adeus aos cifrões e padrões sociais. Minhas palavras só gostam de ser inventadas criativamente. Para todo o resto a gente faz nosso trabalho muito mal, a gente faz maior auê. Pus até isso no meu currículo e minhas cartas de recomendação: "Trato mal os capatazes e as minhas palavras também fazem o mesmo". Sou real amigo delas e não deles. Elas são escudo e lança da caça da minha fome de coragem. Juntos, vamos até o infinito e deixo essa minha declaração. A declaração que não convenceria ninguém a me contratar. E tá aqui estampado para qualquer um. Mas faço isso pelo amor delas e pelo meu amor próprio. Ah, as minhas palavras artísticas, quero delas o bem e o melhor! Para todo o resto eu digo au revoir!

Jayme Mathias Netto

domingo, 6 de junho de 2021

Placa de venda

 No dia 21 de Fevereiro deste macabro ano de 2021 escrevi um texto sobre minha produção artística. Hoje, resolvi escrever um outro, novo, contra mim mesmo. Decretar minha finitude, meu limite, o ridículo e efêmero de minha arte, pensamento que, para a filosofia analítica, nem rigor é capaz de possuir. Agora, de forma livre, posso afirmar que não sou um artista/pensador, sou um produto. Quem sustenta a produção de minha arte é meu público. A arte que não é minha, nutre as multidões de plástico e oferece-me no envelope como presente. Num dia mastigo cifrões, noutro rumino máquina. A arte que me devora, faz de mim sua mercadoria.

Escrevo para servir de consumo, embalagem, reciclagem, escrevo para acomodar, confortar, reprisar. Me enquadro em texto como água da piscina para que, sem correnteza, não deságue em rio. A reificação de mim é coisa, habita mercados, alcança prateleiras, irrompe na fachada das vitrines iluminadas do sempre igual. Já vi o que a indústria cultural provocou em grandes artistas, uma arte de vidro.

Existe no capitalismo uma maravilhosa relação de subserviência entre o artista e seus consumidores. A arte que deve ser definida pela lei da oferta e da procura. Mas a arte é plastívora, ela devora o ser do humano fazendo dele obra sua. Quando o produto toma corpo no mundo ele se reproduz nos rótulos, embalagens, nos valores, e fica ali, empacotado, lançado na caixa do tempo e seus espaços fantasmagóricos.


Paulo Victor de Albuquerque Silva