domingo, 25 de outubro de 2020

À Hilda

As horas chuvosas que trazem essas manhãs tardias são as melhores. Eu não sou poeta se o dia não me vem com essa brisa passageira. Não bastasse a embriaguez matinal que sinto 
apenas por ser manhã, ainda ouvi os gritos de Gaspar e sua amada ao gemerem hoje cedo. Fiquei a imaginar um pornô explícito. Um pornô francês do tipo “Ah Putain! Vas-y, Vas-y.” A língua francesa nasceu para o chuchoter e para o sexo sussurrado, Rousseau notou bem isso numa de suas cartas. Basta ouvir de onde vem os tons e fonemas dessa língua que Gaspar admitia ouvir gemidos e sobrevoos de orgasmos na esteira do tempo. Uma sensualidade nas cordas vocais é o que Gaspar já tinha ouvido de uma puta nas suas primeiras aventuras. Nunca tinha ouvido a palavra ‘cu’ sendo dita de maneira tão poética. Logo Gaspar, que aprendeu logo cedo a exprimir essa palavra como a primeira de seu vocabulário. “Papai”, “mamãe”, não! Foi “cu” a primeira palavra que disse! E anos depois uma puta falava cu no seu ouvido e ele percebia pela primeira vez o poder que as palavras têm! As cordas vocais são provenientes das entranhas sexuais. Chuchoter já é uma palavra sexual aos ouvidos de uma tara perturbadora como a de Gaspar. Ontem eles gritavam, um grito abafado pela vergonha repentina. Um travesseiro ou qualquer coisa do tipo abafou a gozada. Primavera, souberam eles, todas as janelas escancaradas e logo quiseram distrair o gozo tão belo que eu ouvia. Sei lá se tinha a ver com cu, mas ela gritou enquanto ele gemia. Dava para escutar de qualquer lugar ou queriam eles serem escutados. Vai ver que o cu queria expressão! Os órgãos têm vida própria! Deve ficar puto o cu que se exprime quando peida e todos riem! Fazer coisas que as pessoas só riem todo tempo deve ser um saco, enjoa ser bobo da corte! Gaspar estava numa de expressão abstrata nos últimos quadros que tinha pintado. Era mandala oval. Sabia que havia algo de tudo menos vaginal na sua tara expressiva. Ele queria transpor o chakra base em formas de mandalas. No fim, o cu de alguém queria dizer algo! Quando fui hoje no indiano que vende jornais aqui no bairro, vi que os jornais não diziam nada demais, mas a paz que esse cara me trouxe valia mais que qualquer dia de notícias boas. É raro o dia que vivenciamos nós mesmos. Ele trouxe o tempo igual ao que o tempo era no infinito. Ou seja, tudo parou. A paz. Tudo cabia no lugar adequado e o ritmo das pessoas entrou em harmonia no serviço que ele prestava ao tirar xerox e liberar telefonemas nas cabines. Ele previa a orquestra matinal e ritmava cada um em seu tempo certo. Se alguém queria adquirir algo de sua lojinha ou de seus serviços, ele conversava e abençoava cada um com reflexões do tipo: “vale mesmo a pena gastar seu tempo com isso?” Quando o vi pela primeira vez, fiquei estarrecido. Eu permanecia em sua frente, atrapalhando a fila de pessoas que já tinha se formado, apenas para ouvir suas palavras claras. E ele sorria com um conjunto de belos dentes brancos, bem organizados como tudo que ele transparecia. E foi justamente ontem que Gaspar me perguntava o que tinha a ver o cu com o indiano. Eu lhe disse que ambos estão na base de nossa conexão com a terra. No chakra base. Falei-lhe sobre a kundaline e as meditações. Ele, peludo como um boi, levantava sua caneca de triple blonde e voltava o olhar para mim como seu pai fez na época que ele repetia a palavra cu tomando a mamadeira: “Ha ha pobrezinho! Num sabe nem o que fala!” E, até hoje, ele gagueja em qualquer coisa obscena. Mas aí o indiano chegou em seguida no bar. Tomou um gole com a gente e tentava harmonizar para os astros, que é de onde parecia ter acabado de chegar, o sabor do álcool, como se telegrafasse uma mensagem ao além. Ele ensinava aos deuses coisas humanas! E Gaspar finalmente entendeu a espiritualidade do sexo e a sexualidade das coisas espirituais! A vida é mais simples quando o indiano chega em um ambiente! Ele carrega a paz! E Gaspar só susurrava sem que saísse de sua boca a palavra cu! A paz e o cu sempre querem dizer algo.

Jayme Mathias Netto 

domingo, 18 de outubro de 2020

Máquina de moer bois


Eu não passo simplesmente pela Osório de Paiva, eu corro sobre ela. No volante, minha atenção está direcionada ao sinal, ciclista, carro, buraco, meio fio, cooper, pisca, moto, freio, ônibus. A avenida Osório de Paiva, para quem dirige o automóvel, não é a mesma para quem caminha. Quando nela ando vejo o carrinho de doces do Dé, cachorro morto no meio fio, roupas de ginástica emolduradas em corpos que correm, sinal, plantas, mato, ciclistas, churrasco, rachaduras na calçada. Eu simplesmente passo sobre a Osório compondo seu quadro.
Em tantas idas e vindas sempre me deparo com ele. Vem andando sobre o lado direito do meio fio respeitando a direção do fluxo do trânsito. Quando chega no desvio, retorna, ainda em respeito ao novo fluxo que não é uma volta mas somente o outro lado do meio fio. Tem o ombro direito mais elevado que o esquerdo, fazendo com que seus passos respeitem a velocidade de seu desvio corporal. Blusa marrom, não sei se devido ao tempo, calça cinza e empoeirada pelos agoras da calçada. Nunca olhei para os seus pés, não sei se usa sandálias, se caminha descalço, se percebe o chão. No rosto, nenhum sorriso, nenhuma lágrima ou dúvida, apenas a certeza do caminho, a avenida do sempre igual. A pele suja e a cabeleira amontoada em grandes blocos de cabelos concentrados de oleosidade, numa espécie de colmeia capilar, anunciam os longos anos de cuidado com sua trajetória.
Ele caminha. Em meio a tantas incertezas, desejos, procuras, atrasos e disputas, entre acidentes de vida e morte, ele caminha na certeza do seu lugar. Anda sobre o meio fio como o equilibrista sobre a corda no abismo que paira a Osório de Paiva. Nunca o vi parado conversando, observando, cheirando, contemplando, respirando, nunca o vi parado.
O homem que caminha sobre a Osório nunca é percebido, logo, não é interrompido. Seu perímetro é um fragmento da avenida. Ele circula um trecho de vida. Ele movimenta-se não como o Flâneur, não observa a vivência das ruas, antes, ele é o ser pulsador na artéria aberta transitória da periferia de Fortaleza. Sua casa é o passo, a jornada para chegar no mesmo lugar.
Em uma cena do filme de Walter Salles “Abril Despedaçado”, o “menino” questiona seu irmão se a vida de sua família não seria semelhante a dos bois que fazem a máquina de moer funcionar devido ao seu movimento eternamente circular. Pergunto-me o quanto nossa vida é maior do que a atmosfera da Osório de Paiva e se, afinal, o homem que caminha sobre a Osório realmente seria o boi.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 11 de outubro de 2020

Tempo esguio

Dia a mais, dia a menos.
Amenos, já não são os minutos
Que diminutos se transformam em horas flutuando com o vento.
Advento da apatia, advance da monotonia, traduz-se num funk: sequência de dia e noite, sequência de noite e dia.
Esguio, o tempo escorre como num haikai escrito tempos atrás
Fazendo parecê-lo muito mais lento o tempo ali descrito, quando escrito, que hoje.
Embrolho, o abrir e fechar de olhos aproximar-se vertoginosamente do passar dos dias.
Vertigem em nossa mente transitando no piscar.
Pisco é dia, pisco é noite.
De modo que falar sobre tristezas e alegrias do presente é árdua tarefa, antes que o agora vire ontem.
Nem sei mais o que, quando e quanto sinto, apenas que o sentimento existe no instante que sou.
Absinto da alma é ser livre e voar
estando preso.
A única certeza que me resta é o tempo...

   ele 
         tá 
             rolando
                          escada 
                                      abaixo.

Júlio César 

domingo, 4 de outubro de 2020

É o novo!

Um segredo:
o
novo...
repete 

A Repetição virtude?
Repetir 
repetição.

Abecedário da vida,
aprender um modo outro: 
possível.

Como não? 

«Colocar em movimento a matéria pensamento!» 
Deleuze

Escutar gente besta, 
viver a vida besta é
aprender algo para não sê-lo!

Devagar e constante até que algo «velocita»
é um porvir.

Encontro necessário: 
filosofia
atraso, 
retardo, 
latência 
do pensamento
e ...
PLIM: o novo abre fissuras!

Jayme Mathias Netto