domingo, 30 de dezembro de 2018

C'est fini

Já faz um tempo agora...mas é mal de ser humano (incluindo eu) entender que tem hora pra começo e hora para o fim.
É mal de ser humano se apegar à finitude do supérfluo. E, ao mesmo tempo, negar aquilo em que reside a amplitude da nossa medida, aquilo que a priori causou inveja aos moradores do Olimpo e agora tem tornado a vida egoísta, diminuta, um garimpo cada vez mais destituído de beleza singular. A liquidez do tempo escorre desapercebida pelas mãos do devir, enquanto se derrama no balde imaginário que sustenta as recompensas da transcendência. Fé e virtude conduzem a humanidade às promessas de uma suposta eternidade .
E cada vez mais nos esquecemos de sentir o hoje, de viver a brevidade do instante humano, escorados em uma criação mental, um "porvir", um "amanhã" unicamente metafísico. Nessa espécie de Matrix não há um Neo, senão nós mesmos. Nessa "realidade" enxuta, versão beta, aquilo que é de importância complexa passa para uma espécie de plano diferente deste, "onde teremos entendimento sobre todas as coisas", restando-nos voltar a atenção no plano corrente, a atualização do Android, aos pixels da câmera frontal e se o "carango" tem injeção eletrônica, airbags laterais e câmera de ré. E, assim, o cimento passa a valer mais que o ar, tal como o rotor lateral assume maior valia que a vida de Charles "escafedida" em pedaços enquanto mexia na bomba helicoidal.
Se é clichê clamar pelo Carpe Diem com o qual se riem os leitores que neste ponto se deparam e pensam: "de novo essa baboseira!", que de fato se encontra a torto e a direita nos status de "WhatsApp" e nas tatuagens dos "influencers", então é válido que entendamos o que a sentença simboliza. Também não é como se devêssemos  seguir à risca o código de Epicuro, mas se hoje nos é possível orar e pedir por algo, interessante seria se, ao invés de uma vida eterna, ou de 500 virgens para nos aguardar no além, pedíssemos por discernimento, para seguir o conselho do mago cinzento que certa vez, sabiamente proferiu a um pequeno grande, que aquilo que nos cabe  é "decidir o que fazer com o tempo que nos é dado", para que então compreendamos que o fim não se lamenta, simplesmente chega e se acaba. Para que possamos lamentar menos pela finitude da vida e principalmente das coisas materiais, tal como fazemos com o fim de um capítulo, de um semestre letivo, ou do ano que agora se encerra...
Que lamentemos menos nossa finitude e a vivamos mais, porque cedo ou tarde o fim chegará e quando ele se for...
C'est Fini.

Por Júlio César
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domingo, 23 de dezembro de 2018

Amarelos empambados sem coletes

Basta abrir o olho e ver. Os novos poetas estão aqui. Os novos poetas já nasceram e morreram, mas estão sempre vivos. Poetas de uma linguagem carcomida, cheia de ferrugens de cérebros ácidos. Ciência, ciência? Eu quero é o belo! Basta. Besta! Desprezível bata! Anseio! E toda arte se repete imune aos desvios e desfiladeiros que o medo quis inventar. A repetição de toda tarde em uma única maneira de viver como possível, contemplando o nada, desprezível que se tornara. E Glauber trepa às três da manhã exigindo estourar uma gosma quente nas pernas de Sua Anfitriã para esquecer. E eu só sei lembrar. O dia todo resgata o momento de uma prosódia pré-pronta, rotineira da qual sou espectador. Uma camada do epitélio terrestre que nunca entendi e sempre foi em vão. O gozo absurdo de tardes infindas como a de Paris no entardecer. Milhares de possibilidades e angústias dos seres que nascem e morrem. O medo bate na porta camarada de um dia que não sei se termino, porque exijo da minha carapaça falsa e infame as mais duras e cruéis agonias para o gozo. Aquele mesmo de Glauber, o pedreiro, meu vizinho que come sua mulher antes do trabalho duro. Desço o elevador e, não basta estar assim carcomido, lhe encontro. Desejo-lhe bom dia. Mas Glauber está verde turvo como a penumbra das árvores de uma chuva que ameaça vir. Turvo é um entremeio, o lamaçal que não identifico nem nele nem no sorriso de sua esposa que ainda deve está de quatro, caricata tosca de um brutamonte que a consumiu. Sai cheia de delicadeza logo em seguida, embora sintia-se prostituída, mas algo a erguia em uma pose bem vista nas tarefas sociais de sua função pública. Etiqueta travestida em delicadeza santificada na religião do dia-a-dia. A moça que suporta Glauber, suporta qualquer anseio da vida. Mas amanhã ela sonha de novo como seu sonho e Glauber sonha em dias onde a felicidade reside. Ele senta à mesa do café da manhã por bem mais que apenas um momento são. Coça a barba e cospe no chão quando lembra de Astor, o filho da puta do mestre de obras que acha que sabe mais que ele a envergadura do parapeito que teve que desfazer ontem. “Eu falei até com o Satanás para não trucidar a cabeça daquele verme!”. Isso é o que escuto, já faz um tempo, com o ranger dos passos dados de manhã cedo. E a morte vulgar, traiçoeira sorri em cada esquina que o tédio culmina nas mentes dessa manhã. Vou na padaria e volto sem qualquer poeira abençoada que dê o ar da graça em um bom dia, sem qualquer graça ou sorriso. Volto como quem nunca foi. Numa cidade vazia de sentido. Volto como quem nunca antes havia visto o por que uma memória só pertence ao lá e nunca ao cá. A memória de quem vai é totalmente igual a de quem volta, e os parafusos tortuosos, os esquemas dos fortes, as fronteiras, os mitos sociais, os desejos coletivos, as transações financeiras e qualquer coisa inútil num conglomerado vôo de Fortaleza para Paris, que trouxera não só eu, mas também esse delírio matinal na bagagem, não me faz outra coisa que reter a capacidade de resgatar memórias. E Glauber fode mais uma vez pensando em Astor e quando Deus permitirá que ele desça a mão de porrada. Goza estupefato e Sua Delicadeza pequenina que ele acaricia sem entender o que sente e ela muito menos. É a força onde é possível não matar os seus chefes, os seus mandantes. Sacrificam o trabalho para se encontrar a noite e catucar o meu teto no ranger do amor. E eu só tenho essa merda de vida! Não a minha ou a de qualquer outro, a vida que agora tenho! E não lembro um momento de que um dia vivi outra coisa que não a que lembro. E não prometo senão o que naquele momento me cabe. Volto como quem volta da padaria junto com o sorriso das inúmeras manhãs que cumprimento Glauber e em seguida a Sua Delicadeza. Pude observar, anteontem, a felicidade traduzida no espanto. Pareciam crianças. Um homem inocente e tabernoso que matara sua preza e trouxera para casa a graça da vida consumada. Glauber ria para se acabar e agora estava vermelho de felicidade como a pele de Sua Delizadeza nos arrebatos do gozo que desde que se casaram ele admirava. Meu Deus, ela parecia uma princesa escultural dos primórdios do tempo! Era como se o Neandertal encontrasse de imediato a Venus de Milo. Seus corpos transmitiam uma nudez caricata da inocência vã de uma criança lambuzada de vida. E ele dizia coisas como “esmaguei o filho da puta como quem pisa num pinscher e ele latia e gritava e esperniava”. Sua Delizadeza ria e eles se abraçavam. “Eu cuspi no meu chefe e mandei ele tomar no cu!”. Nem sabia que Sua Delizadeza era capaz de falar coisas do tipo. Eles pareciam delirar. Mas um delírio real, pois quando eu encontrei ele novamente no elevador,  meu olhar dizia num palpitar do coração. Eu fui consumido repentinamente por um choro de verdadeira alegria. Como se eu sentisse suas felicidades reverberar sobre a minha. Meu choro alegre dizia: “Glauber, Glauber, assim você vai longe meu bravo camarada!”. Eles eram as pessoas mais belas que eu havia visto ultimamente. Eles fazem questão de dizer que sou possível poeta, porque enxergo no não visto uma vida feliz. Mas eu retruco dizendo que basta abrir o olho e ver.

Por Jayme Mathias Netto
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domingo, 16 de dezembro de 2018

Diferença e repetição.

Cheguei à casa de Dolores numa manhã chuvosa de abril. Quando ela abriu a porta me deparei com seu semblante estupefato. Confesso minha apreensão com este momento - o primeiro encontro com o ser que faz parte de minhas memórias mais antigas. As lágrimas da chuva que se misturavam ao choro do seu rosto me trouxeram lembranças dos vinte e quatro anos que vivemos juntos em nosso lar. Jamais esquecerei a explosão de sentimentos pulsantes em mim naquele instante. Num sobressalto cognitivo a dúvida se instaura: posso considerar aquele abraço de Dolores, que me queima, mais real do que todos os outros que guardo na memória?
Vivo, pela primeira vez, uma vida que já vivi. Sei que para Dolores todo o processo é muito angustiante, ela ainda convivia com as dores do luto quando cheguei. Quanto a mim, não escondi a alegria do nosso encontro, já que a última lembrança que tinha era das seções de quimioterapia, com seus enjoos, decadências e fragilidades. Durante o tratamento, enquanto a morte me consumia, imaginava o que seria de minha bela esposa e nossos filhos com minha ausência. Hoje experimento o amor que momentos antes de minha chegada apenas repousava nas reminiscências do meu eu.
Já se passaram dez anos desde aquele primeiro encontro. Muita coisa mudou. Um de nossos filhos está morto. Dolores conseguiu um novo emprego com um excelente salário. Muita coisa mudou. Dolores mudou. Ela me disse que somente o céu ainda permanece igual, mas o que está abaixo dele se transforma como um rio que corre banhado pelas lágrimas da chuva. O problema é que não fui programado para uma nova dor, para a mudança de emprego ou a procura de um outro amor. Dolores mudou. Disse que dentro dos vinte anos iniciais que convivemos eu me transformei, fui moldado pela vida, mas que agora sobrevivo enclausurado nos canteiros da mesma memória. Não tenho culpa, fui duplicado para viver ao lado de Dolores, e o que reproduzo são lembranças do meu eu. Para minha esposa eu não possuo singularidade, sou uma cópia de uma parte de mim: não me construo, sou um produto. Ela só não percebe que ao menos eu conservo aquilo que os humanos tanto procuram: o eu.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 9 de dezembro de 2018

O desafio de Truman

Em face aos problemas que enfrento, de um desejo sangrento por saber, me parece próprio e bem oportuno denotar o quão contraditório é que busquemos hoje em dia pela real sabedoria. Isso porque a própria filosofia, como negação de si mesma, atua como força oriunda unicamente do ser.
Nessa onda de "hei de ser resistência", resistente mesmo é quem persevera na busca constante pela verdade.
Pois que, apesar da vontade, o Deus mercado diz que não, e quando não, esse que hoje rege a vida de 99% dos seres "pensantes", o tempo, as estruturas, a burocracia, os prazos, os erros e mesmo os acertos dizem não, de modo que "a filosofia torna-se um saber rarefeito que não convém ao nosso tempo."
Nessas horas procuro lembrar de Frederico. Amigo meu, muito eloquente que de vez em quando me vem à mente dizendo que, se eu apenas reagir, serei engolido pelo sistema. Sistema esse que é "todo armado para reprodução da tristeza."
A chave não é REagir, mas agir, tal como disse Frederico. "Promover a potência e ser a solução pelo valor artístico" ou pela vivissecção de tudo que foi dito como verdade e nunca posto à prova. Só assim a lâmina da verdade alcança a rigidez do diamante. Só assim se trespassa o mercado, o tempo, as estruturas, a moral, a burocracia, os prazos, os erros e acertos com um golpe único e letal. Só assim se cortam as cordas que amarram os membros de Truman e lhe é conferida a verdadeira liberdade.

Por Júlio César
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domingo, 2 de dezembro de 2018

Uma conversa síncope

Criatividade: Não faça isso comigo. Não me deixe cair.

Ego: Eu sei. Tenho eu de ir mais um pouco nessa vasta terra infértil.

Criatividade: Não suporto mais sua falta de atenção. Não me deixe cair.

Ego: Eu sei. Eu tenho de regular aos moldes dos outros, senão não falo a ninguém.

Criatividade: Merda! Sempre esse papinho de merda! Sou a doce donzela que arde e inspira
poetas e você me quer no encaixe. Nunca mais voltarei para essa merda de morada.

(Ela partiu como o sopro da manhã e calada ante a razão imperatriz.)

Razão: Ela gosta de brincar. Qualquer dia desiste de mim, essa vadia. E perambulará pela vida e pela cabeça dos outros. Pescará ideias similares. Abrupta distração de alguns. Selvageria em outros. Quantas vezes calou-me a boca. Quantas vezes fez-me ousar. Já já ela volta, amançada, amordaçada pelas correntes dominadoras da falta de gosto pela vida. Atraída por tudo que é humano, mas distante deles, achando em mim consolo livre. Vai-te. Vai-te perambular. E namora com o Entusiasmo que está no canto. Mal deixa-me organizar um pouco as coisas e já parte também com alguma raiva de suas próprias crias: o Tédio e a Preguiça.

Jayme Mathias Netto
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domingo, 25 de novembro de 2018

O Parto

"É próprio da literatura filosófica o ter de confrontar-se a cada passo com a questão da representação"
(Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão)

"No início era o Caos..." (Hesíodo, Cosmogonia)

Primeiro a explosão... depois, potência...
Ou seria uma implosão, pois não podemos afirmar um fora? A vida engendra implosões dentro dos fragmentos do existir. A implosão dos fragmentos da matéria geram ideias que são paridas pelo estouro. O parto da ideia nunca é um aborto, um vômito, um alastrar-se. Antes disso ele é uma absorção, uma inalação, uma assimilação. Agora ela (a ideia) está lá. Um organismo vivo, agindo, intervindo, interferindo. O agir da ideia não é explosão, é representação, é potência do pensar. O útero da ideia é o ser humano, que nunca é uma morada já que este útero sofre de histeria, gerando o aborto da ideia. A representação é uma histeria.

Por Paulo Victor de Albuquerque Silva
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domingo, 18 de novembro de 2018

Temporalidade do inferno

Temporalidade do inferno.
Tal definição, ouvi certa vez de um amigo, que a mente aflige ao corpo o maior castigo, quando da recusa de parar de pensar.
Da definição, não sabia, mas
a agonia de cansado, teimar em desligar, constantemente me deparo.
Inclusive, neste momento, transformo o desalento  em demasia, de contar carneiros, busco amparo em primeiras aparas, desatinos desse texto sem sono.
A mente é máquina que mente ao próprio corpo, quando diz para si mesmo que o músculo é que tem força.
O suborno do movimento faz parecer que por algum motivo estar ativo é se mexer.
Haha, delírio, de quem não sabe do martírio de ir ao Japão e voltar sem sair do lugar.
Paro, repito: "agora eu durmo!"
Pobre ignorante, animal noturno, o cérebro é senhor de si.
Sentenças taciturnas de textos misturam-se às confabulações que configuram-se quase reais, não fosse estarem presas apenas em uma mente quase lisérgica.
Disse que ia parar cinco minutos atrás. E aqui estou, dedilhando enquanto assimilo o recorrente sibilo de sequências de palavras que, senão de forma voluntária, fluem aleatórias como quem diz: "eu durmo é porra!"
Na umbra, tateio à toa até encontrar o celular. Quatro e cinquenta! Puta merda, agora é sério! Ou eu paro agora ou não durmo mais! Ameaço a mim mesmo, como se mandasse em alguma coisa na porra desse sistema nervoso central, queria que ele tivesse um rotor lateral, assim pelo menos o filha da puta do Djalma podia dar um jeito de desligar.
O relógio desperta. O som como um zunido infernal corta a linha de raciocínio. E  o sono, o qual eu tanto procurei?
Escafedeu-se!

Por Júlio César
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domingo, 11 de novembro de 2018

Título livre

O que seria essa estranha alegria? Difícil saber. Sei que ela é irrespirável na maior parte da vida. Abafada. Nunca prevemos uma criação ou o arroubo dum estremecer artístico. Por mais que traquejemos, não seremos quase nunca, nesse aspecto, donos de nossa vontade, talvez porque não deixamos nos levar suficientemente. Reagimos apenas. "Se bater, bateu", dizem alguns. Na velocidade do tempo das hiperatividades normais, é raro ver-se inerte, destampado e rachado por esses estados. Deixar-se ser poeta: deixar-se ser receptividade e afetividade do que é criado. Negar a criação. Negar a ação. O estado poético é uma fagulha da vida que realiza em nós. Impossível de prever quando seremos acolhidos. Os deuses brincam em desavisos com os poetas. E eu falo isso como quem diz que as plantas verdejam e se alegram com isso. Ou o brilho brilha e se deixa ser, se deixa alegrar. É qualquer coisa boba, não "ah meu Deus que difícil". Até um poeta alegre me disse uma vez: "é só respirar um pouco diferente e ser só vida, em vez de todo o resto".

Por Jayme Mathias Netto
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domingo, 4 de novembro de 2018

Vivissecção

Bisturi… a pele demarcada é retalhada pelas mãos do especialista. A derme se expõe, respirando o novo mundo da superfície. Elo cirúrgico na imanência perfurante entre o limiar escalpelado de uma lâmina. O corte da carne é meticuloso, isso se torna mais fácil devido a qualidade das fibras expostas. Toda delicadeza se faz necessária para que os tecidos não sofram sequelas, estamos lidando com um produto de extrema qualidade. Martelo… Estalar de ossos em profusão, território da dor encharcada de sangue nas arestas da carcaça abatida. Broca… Acessando as profundezas do corpo abrem-se as portas do submundo. Lá o Hades se revela em todos os seus planos, das aflições com seus prantos e lamentações à ilha da bem-aventurança. A broca é a moeda de troca entregue ao barqueiro. Pinça… A precisão está na remoção do invasor, guerra microrgânica permeada pelas forças do espírito humano.
Cada um dos textos são micro incisões, cirurgias pontuais carregadas de instrumentos hospitalares. Nosso tempo exige velocidade. Tempo do inferno em que nada escapa, faz da superfície da vida fenomênica um submundo exposto às bactérias da realidade. O território do poder é a carne, diria Foucault. Daí vivissecção, cortar a carne com a faca que sai da língua navalha de Belchior. O texto navega, seja nas ondas do rádio, nas páginas do irreal, nas folhas da imprensa. O que nos resta após o ferimento? Cicatrizes. Elas tatuam os mapas geográficos na pele humana. Rotas de fugas desterritorializantes, órgãos surrupiados em abduções alienígenas, construções de novos corpos inumanos. Deficiências!? Não, potências.
Seringa… As luvas já estão postas. O recipiente contém o anestésico que em breve percorrerá a artéria genealógica. Agulha… O encaixe é preciso, como se fossem feitos um para o outro. Está montada a arma do torpor. O ataque não demora, primeiro suga-se um pouco do sangue, depois injeta-se o narcótico. Pressão, pulso… A dormência se alastra.
Em que fase do procedimento ocorreu a anestesia geral? Tudo foi esquecido e somente o corpo clama à consciência recordações de suas rotas marginalizadas. O mapa da carne é o verdadeiro guardião da memória. Quem vos escreve isso é o cirurgião, não a navalha.
Paulo Victor de Albuquerque Silva
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domingo, 28 de outubro de 2018

Às portas da contemplação - A beira do abismo parte II

Manicael me olhou de volta, seus olhos denunciavam, sem foco, a busca a uma resposta que fizesse sentido. Meio acabrunhado e ainda sentindo um pouco de vergonha, com o dedo indicador direito em riste, apontou para cima e disse: "somente quem tem asas brancas como as nuvens tem esse privilégio. Minhas asas são negras e, por isso, denunciam meu lugar de direito aqui em baixo. Só me resta escalar."
Olhei novamente para o corpo divinamente esculpido de Manicael, procurei por defeitos, quaisquer imperfeições que fossem, não achei nenhum. Nenhuma simples cicatriz ou deformidade. Examinei suas asas minusciosamente, pedi humildemente que as abrisse. Deveriam ter uns cinco metros de envergadura. Eram formidáveis. As plumas internas, macias, conferiam leveza e flutuabilidade e as penas das extremidades, longas e afiadas como uma espada samurai, ostentavam aerodinâmica de uma rapina, brilhavam de um azul profundo e lustroso ao refletir os raios do sol, que reinava absoluto acima do dossel das frondosas árvores.
Tentei entender em que residia tamanha diferença do belo Manicael, além da coloração de suas penas. Ainda confuso, perguntei ensimesmado: " quem atribuiu a ti, criatura celestial, a sina de reprimir tua divindade, entregando-te o fardo da imperfeição de realizar uma tarefa tão humana?" Surpreso com minha admiração, Manicael respondeu:
"Os outros. Eles me jogaram aqui. Disseram que não sou perfeito como eles, que, portanto, não devo comer as frutas perfeitas, mas sim as defeituosas, assim como eu. Isso, segundo eles é o meu sacrifício e a justiça divina." Com a têmpora denunciando minha pulsação já acelerada perguntei-lhe, ainda: "e por que aceita de bom grado tamanha barbaridade?" Com os olhos verdes safira, agora marejados de lágrimas de cristal, Manicael respondeu: " porque nunca comi do fruto, não conheço, pois, nada sobre o bem e o mal, além do mais, eles são a maioria. Que posso eu, contra uma multidão de asas brancas?"
Em um reflexo rápido, usei uma das poucas perícias que me fora herdada, da minha vida no campo. Habituado e com uma agilidade demasiadamente humana, subi na árvore, peguei o maior fruto e o entreguei a Manicael, altivo. Nunca me senti tão útil debaixo da minha incompletude quando exclamei:  "Não seja o que dizem de você! Voe!

Seja a dinamite do firmamento!"

Por Júlio César
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domingo, 21 de outubro de 2018

Todo medo

Todo medo. Todo modo. Perigo de liberdade. Apenas quero ver. Liberdade do perigo. E te deixo livre. Como a louca borboleta esvoaçante, mãe terra quer paz.
Lagarta de traje colorido largada em cada curva-abismo. Cheiro de verde e gosto de clorofila. Ventos cortantes na proa de balançada asa e vejo a liberdade corrompida e ultrajante.
Qualquer coisa muda, muda de mudar não de que muda.
Eu ouço o sol maior da música inebriante dos metrôs. Um louco cruza o quarteirão fumando charuto descartável, plásitco e qualquer coisa vagabunda.
As molas do freio metálico do trem. A falta de força para parar o tempo. Ferrugem mantida para corroborar com a bem ordenação dos horários de abertura e fechamento dos estabelecimentos bem estabelecidos e do dinheiro enfiado em bolso mudo.
Da urbanoide fábrica de delírio pessoal e de contas para pagar. Desapercebido delírio meu de cada dia. Desencaixe.
Consumação da fábrica de cimento remota. Expele uma fumaça cuja duplicata esvoaçou até o comissariado da polícia.
O alvará de funcinamento permaneceu intacto.
E ninguém fez nada. "A fábrica funciona amanhã".
Chorava ele quando ainda achava que era livre. Triste pesar de uma segunda-feira.
Deu-me o último abraço antes de dormir e fui triste voltando.
Pressenti a dor vinda, que nada faz, o cimento é mais importante que o ar respirado.
E as nuvens negras permeiam uma manhã de calor.
Charles mete sua cara na manutenção do rotor lateral cíclico.
"Não fosse o alvará, puta merda!"
Ele tinha decorado o manual para passar no teste antes que a sogra jogasse de novo um balde de água fria todo dia para ele arrumar emprego.
"Bombas helicoidais e eixos de suporte",
falava disso dia e noite, sorrindo gordo de que teria futuro.
Disse que ia dar tudo certo agora que era homem de não se conformar, mas ser uma resitência viva.
Agora é pó! Meu deus, é pó! Que dor!
Ele queria o mundo artístico, a vagabundagem não permitida, mas a transição prima dos astros havia esquecido. Sol em gêmeos ou câncer. Dispensou.
Quando o cimento explodiu de puro pó em sua cara, a trepidação do eixo central expeliu como esperma queimado na fusão dos novecentos graus de calcário puro.
Reclamava seu supervisor que deveria evacuar em mil graus antes que a merda toda encerrasse. E o que adiantava?
Eu ouvi o papouco de longe e logo pensei na morte do peçonhento. Mas os melhores morrem primeiro.
Na mesma hora em que sua mulher exprimia pimenta no whisky, na fábrica de pimenta e molhos Mexicana.
Pensara em sacar-lhe no bolso um sachê para o marido que nunca mais viu.
O pó deixado sequer vale algo que se diga corpo. Os padrinhos de casamento de Charles e Ester, enquanto isso, chutavam os cachorros da porta principal do almoço voluntário aos presidiários de segurança máxima, amançados pela fuga geral que tramavam.
Quando souberam, olhavam frios a desgraça de serem sabotadores.
Deixavam escancarar a algazarra.
Os comissários de vôo da Catar saboreavam no céu de dor o champanhe borbulhante.
Enquanto filhas de shakes eram disvirginadas pelo ânus em nome da bendita fé e aclamados pela safadeza geral.
O fato é que o mundo expelia qualquer coisa de si.
Não tinha mais suporte nem grito. Nem reza nem lenda, nem o que mentir nem verdade.
E eu servia à comunidade cavando o buraco desigual da cova onde havia guardado uma carta do passado na minha cidade de infância.
Qualquer coisa me dava esperança de não ser. Ameaçavam-me os olhares vivos e prontos para apanhar-me cavando.
Cheiro de terra molhada e nada. Quente como suor que esquecia de evaporar.
Eu comia terra, barro, vapor e gases borbulhantes. O estouro pré-pronto nunca antes tinha sido coveiro de tão próximo olhar.
Cadê o filho da puta do Dijalma? "Metia seu pênis em qualquer lugar uma hora dessa". E quanto mais eu cavava mais lembrava disso tudo. Até que o abismo anteveio. Não era o outro lado. Era o nada.
O buraco se abriu sobre a terra e uma grande escuridão sacudiu o alarido. Qualquer coisa viria dali. Chamaram polícia, bombeiros, forças de segurança máxima e o verde cheiro do buraco, combatido desde quando o homem é homem e guardado.
Cheiro de guardado era o sentimento empoeirado. Virgem. Não tinha voz, não tinha cor, forma ou qualquer coisa.
Alguns perceberam a ameaça e implantaram sobre ele o fator central da vida.
Lágrimas e suor faziam combinações infindas. Mas era só a porra de um buraco. Esqueceram de enterrar Charles, irreconhecível. E eu chorava a dor de não ter onde cair morto.
Toupeira! Merda! Era o supervisor que eu enterrara. O tempo nunca volta,  mas eu já começava a me sentir criança. Negando na carcaça adulta do triste dia em que o conheci. E Charles escafedeu-se no ar.
A única coisa que eu fazia bem feito na vida, não fiz para ele. Ele deve ter pensado nisso. Susto puro de esperança. Fuga. Sem tempo. Escafedeu-se. Como a borboleta esvoaçante. Como o cheiro verde dessa joça, onde estão todos menos ele.

Por Jayme Mathias Netto
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domingo, 14 de outubro de 2018

A beira do abismo

Manicael estava sentado junto ao tronco da árvore. Olhava para a densa floresta e suas copas cheias de frutos. Ofegante, não aguentava mais tentar subir o bloco vertical de madeira maciça onipotente a sua frente. Quem aprendia a escalar comia os melhores frutos, frescos, suculentos. Esses últimos viam a vida de cima, flutuavam sobre o abismo. Diziam que o fruto das árvores lhes dera o conhecimento do bem e do mal.
Aos pés de Manicael cai mais uma fruta mordida, ele come. Ouviu dizer que as frutas que caem de maduras ou que são lançadas ao chão não possuem o mesmo sabor. Seus dias eram assim, procurava no solo as frutas remanescentes do céu. Carregava consigo um paninho para retirar a terra que restava nos seus alimentos. O fruto dos deuses - pensava o decadente enquanto olhava agradecido para o outro abismo acima das árvores.
Quando eu entrei na floresta me deparei com Manicael com seus incessantes esforços tentando subir as árvores. Ele era belo como um belo dia. Veio a mim, tentou se explicar para não parecer um louco, afinal tudo aquilo deveria possuir sentido. Estou atrás dos frutos, falou. E porquê não recolhe os frutos da terra?, indaguei. Faço isso pois esses alimentos estão sujos de terra, não pertencem mais ao céu, não nos oferecem o bem e o mal… Olhei para Manicael com espanto, vi seu corpo, sua potência. Em minha mente a dúvida se implantava como as sementes das árvores. Por que ele acreditava que as frutas vinham do céu se elas estavam na árvore? Por que a terra faria com que elas perdessem seu sabor? Por que o bem e o mal estariam no fruto? Toda essa curiosidade tomou conta de mim. Parado eu refletia observando aquele quadro que se pintava a minha frente, então decidi questionar. Manicael, se você é um anjo por que não usa suas asas?

Paulo Victor de Albuquerque Silva
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domingo, 7 de outubro de 2018

Vox Populi

Eis que é chegada minha vez  e hei de ser, logo hoje, nesse dia cinza e cheio de insensatez, o rei que com o dedo declara a queda no tabuleiro de xadrez.

No jogo de hoje, no entanto, todos perdem, pretos ou brancos, ledo engano!
Os pinos serão colocados dentro da caixa de madeira. Eu e vocês! Segue o plano! Onde amontoados, estaremos lado a lado, no escuro da impotência.

E logo eu, que não sou lá muito fã da raça humana, logo a mim foi legada a missão insana, de deixar a mensagem poética que intentava falar de algo que nos valesse.
Da ética ou da polidez de um povo que na busca pela sobriedade, só encontrou embriaguez.
Embriaguez do espírito, consumindo para si algo muito pior que álcool líquido, o veneno que escorre da mordida da víbora sorrateira, que com a língua bífida profere ser temente a Deus, enquanto aperta a presa indefesa que não concorda com os seus...

Queria chorar, mas não consigo. Queria abrigo. Onde não tivesse que escolher entre flutuar sobre um pato amarelo, no mar  vermelho do sangue de trabalhadores enganados, ou dos menosprezados, pretos, pobres, minorias que pra os nobres "tem mais é que morrer!"

Difícil acreditar em tamanha fantasia, mas se olho de um lado vejo Franciscos e Marias depositando suas esperanças e alegrias em um falso Messias, que da palavra sagrada só levou em conta o apocalipse.

E, se viro a face, vejo de dentro do cárcere nove dedos regendo a orquestra da perpetuação de uma laia que esqueceu que, à parte de todos os malotes, tem sob os ombros a luz de todos os holofotes, apontando à espada de Dâmocles, que pendula sob a tensão de um fio de cabelo.

É gritante e, além, no mínimo paranóico. Que da polarização do povo heróico, o brado retumbante que se ouve é: "vai pra cuba! Vai pra Venezuela!"

Saudade daquele povo que só se preocupava com novela, pois, pelo menos nela, a ficção não saia nas ruas batendo panela, acreditando, vã, no fim da corrupção.

E a inteligência, hoje, nos põe em definitivo, na previdência da providência, vira burrice em sua essência e de nada nos impediu à chegada deste triste fim.

Ele sim,
          ele não,
                   no final,
                            tanto faz!

Aqui jaz um pátria chamada Brasil.

Por Júlio César
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 30 de setembro de 2018

Texto sem pretexto

O texto de hoje é sem pretexto. Política. Qualquer coisa, nem leia. Uma expressão multíplice de várias partes que querem virar texto. Um amontoado de retalhos que digo ser um “eu” no espelho. Vejo o velho Aristóteles em sua Política, li e reli, tinha muito a falar sobre sua Ética, li e reli sobre os demagogos, militares e tiranos. Tinha tanto a acrescentar, palavras belas a dizer, argumentos concisos para convencer, entender, refazer e como era belo, oh Deus! Mas afoguei-me no pensamento. Por isso o texto não fala de política nenhuma. “Que pena!” diz um leitor de dentro de mim, ardendo para se alegrar se a sua verdade fosse igual a minha ou para me destruir se não fosse, e, principalmente, ardendo para falar mal, discutir, caluniar, xingar e querer me matar. Afinal, não falar, não ter nada a dizer é como se tivesse faltando um braço ou uma perna hoje em dia. Não ter opinião é como se fôssemos doentes dos olhos ou sem ouvidos. “Burro, alienado, idiota” - utilizam palavras bonitas esses meus fantasmas, explicam a etimologia greco-latina das duas últimas. “O texto é assim mesmo, desconexo e por se fazer. Barroco.” Explica outro a tal da parte estética. “Orgulho-me de não ter posição, sequer opinião”, sussurrou o próprio texto no meu ouvido. As teclas anunciaram: “Covarde e ignorante”. Uma voz qualquer que dizia ser da consciência grita: “quantas vezes devo te dizer que tu pode mudar e fazer a diferença”. Diante de tantas cabeças célebres e pensantes dentro de mim mesmo, perguntava: “que sou eu?” Diante desses príncipes vaidosos, “que sei eu dessas doxas e ortodoxas?”; “E como ousa tudo isso ainda querer resposta e ainda digitar um texto?”; “algo que faz dentro de mim achar que é como um homem de filia e sofia?” Uma dessas partes toma parte e diz que não tenho certeza de nada, que não se prevê nunca o futuro, que não sigo a estrutura da lógica, mesmo duvidando de tudo. Como se a lógica não devesse nada à parte que palpita no peito e também não fosse só mais uma que quisesse a vez na orquestra. “Se isso, então aquilo!”; “Se ele, então não ele”, brinda outros no canto. Por essas coisas já se amou e se odiou e tantas outros entre esses dois sentimentos. Um amigo anarquista reverbera dentro de mim: “contra as estruturas”, outro vai e assume a posição sócio-crítica mais atual, com mais dados atuais, com mais atualidade que os dados atuais, pois ele antecipa o futuro, o vidente. “Se isso, então aquilo” e conta  suas razões e diz suas verdades e calunia os outros por não entenderam nada sobre a verdade, acusa-o de estar ludibriado: “Se isso, então isso”, clama pelos cálculos monetários e pelas paredes sólidas da corrupção, anuncia um novo país. Outro pedaço de mim, quase morto: “ainda tem olhos de criança?”. Outro acusa que esse negócio é cristão, outro diz que é melhor matar e comer capim pela raíz. “Todo mundo tem a porra da razão e ninguém se resolve”. Uma parte de mim chora, outra ri, uma ama e a outra odeia. Fragmentado como o maquinário de moer carnes, como teria eu qualquer certeza se a carne em que habito sequer sei como funciona? E ainda assim tenho estômago, olhos, bocas, braços, pernas, cu. E atrás de mim toda a histeria histórica como exemplo, mas continuo tendo uma parafernália que funciona mas nunca compreendo. Banhado de certezas estão todos saindo de casa, banhados de vômitos uns dos outros, comendo os dejetos putrefatos. Cada qual vomita sua verdade, mastiga, engole. E eu que nem sei qual merda sou, qual dejeto tem aderência melhor, seria eu quem deles? Qual desses fragmentos de mim me agarro para ser amigo ou inimigo? E eu que nunca soube o que saber ou sequer sei o que é saber algo, será eu o que? Vai longe essa parte de mim que chamo de razão e vai longe tudo que ela propôs de forma tão racional, tão previsível, monótona e inútil. Todos os argumentos são racionais, belos e "para o bem de todos". No entanto, num tenho nem a certeza do próximo passo dado. Ninguém chega ao consenso, mas os dados são todos reveladores e que que isso muda? E que que alguém ganha com isso? Porra nenhuma! Um pedaço finalmente conclui: "Que inveja tenho eu das plantas!"

Por Jayme Mathias Netto
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domingo, 23 de setembro de 2018

Uma nova ideia velha

    Decidi escrever um texto partindo de uma ideia que tive. Antes eu carregava uns blocos de anotações - isso por influência do Nietzsche que tinha nos bolsos de seu paletó vários destes companheiros da memória. Hoje anoto minhas elucubrações em folhas virtuais do meu e-mail, tal qual este relato.
    Anoto pois não recordo. Anoto pois os espaços que habito se tornaram opacos aos lembretes que apregoo neles. Nada se fixa no mundo de pelúcia que criamos. Sempre nos forçando a uma adequação do eterno retorno do mesmo.
    Anoto pois o fluxo entre os mundos que criamos não possui parada ou limites, quando durmo ele continua nos meus sonhos. Nele tudo é presente, onde aquilo que posso ser é o agora. Sempre tenho a sensação que já vivi, que já escrevi. Não há tempo que me faça ter, não há espaço que me faça ficar. As ideias transbordam na mesma velocidade que nos escapam, por isso sempre tenho pensamentos que já vivi.
Não podia deixar essa ideia escapar, tinha que capturá-la. Agora a exponho nas vitrines do igual. Como Morfeu, a transfiguro entre os mundos possíveis do subconsciente, passageira do expresso que sempre esteve lá.
O que falta é somente o seu nome, o título do texto, da ideia. Claro que ainda não sei como escreverei sobre a anotação de um pensamento igual que tive. Acho que deveria se chamar “Uma nova ideia velha”, mas depois eu escrevo.
Por Paulo Victor de Albuquerque Silva
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domingo, 16 de setembro de 2018

A morte de Acteon

Somente aquele que teve o infeliz acaso de encontrar-se com a evanescente sensação da perda de si, acometer um ente próximo, consegue ver os pormenores semelhantes ao momento histórico que vivemos. Sim, porque nada mais somos que uma grande catarse coletiva que destrói a si.
Vivo no país do Alzheimer e vos direi o porquê.

O enfermo que apresenta tal moléstia perde-se, por vezes, entre a infantilidade e a incapacidade. Os dias, alternos, por vezes, são de manutenção de uma falsa estabilidade, outrora, de total regressão.
A sombra de quem um dia foi traduz-se em um vulto cada vez mais distópico.

Aos poucos, volta-se ao momento do infante e tudo parece novo de novo. O simples abriga a graça da descoberta. A inocência se mistura com a incompreensão de cometer os mesmos erros, que de alguma forma gritam de um lugar ermo no inconsciente e que "já foram cometidos". O conflito de "quem é" com "quem era" provoca choques turbulentos, que submergem o acometido em um torpor cada vez mais intenso e os dias bons tornam-se cada vez mais escassos.
Progressivamente, esquece-se de quem é, das necessidades fisiológicas, de respirar e, por fim, de sobreviver.

Pois, se lhes parece triste a sina ao tratar-se de um ente querido acometido por esse mal, imaginem o quão desesperador seria descobrir que somos nós também a massa cinzenta que a cada dia se autodestrói!?
Pois, se para Hegel a história tem um espírito, vos digo: ele tem Alzheimer.

Somos nós brasileiros, ou mundiais, a prova viva da regressão e transgressão primeira para tudo o que é torpe. Ora, se não somos a inversão de valores, o discurso de ódio, a "fake" news, então o que somos? Se não é a "memetização" do "politicamente correto", a brincadeira "inocente" do Alzheimer com tudo o que demanda seriedade?

E assim somos e vamos, acometidos por uma corrupção metafísica, incorrendo nos mesmo erros, elegendo os mesmos inaptos e nos isolando cada vez mais em nossas ilhas digitais de indignação. Cercados pelas tsunamis do ultraconservadorismo, sofremos continuamente a plasmólise da vida social, buscamos pelo bote esclarecido da salvação que nunca vem. A autorreflexão torna-se ilusão de grandeza e opinião e razão viram sinônimos.

E os que pensavam ser Ágora, eram senão mais uma multidão doidivana a clamar por sangue no anfiteatro Flaviano. Torcendo para que Acteon seja devorado por seus próprios cães. Abrigamos o lobo e atiramos na chapeuzinho, enquanto as cadelas, das quais nos alertara Brecht, continuam a esgueirar-se impacientes, seduzindo os ébrios que cruzam seu caminho.

E o que se entende por reviravolta do absurdo,  tratam-se dos "glóbulos brancos" no cérebro enfermo, atacando repetidamente a si. Na esfera macro ou naquilo que se entende por estado, estas mesmas partículas denominadas "bolsominons" ou, ainda genialmente definidos por Albuquerque (2018) como frutos de uma "ontologia do progresso", atacam o próprio organismo pensando estar poupando-o de um stress maior, enquanto empurram-no incessantemente ao colapso.

Autoimunes, resta-nos agarrarmos à leve sensação de alegria das descobertas já feitas e não lembradas, enquanto voltamos a engatinhar sem entender bem por quê.

Que possamos então aproveitar nossos dias bons, até que não reste nada mais e voltemos a ser poeira cósmica.

Por Júlio César Barbosa
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domingo, 9 de setembro de 2018

domingo, 2 de setembro de 2018

Pontos de luz ancorados.

O sol morria lá fora engolido pela imensidão
Caminhei sobre os passos marcados do sempre igual
Encontrei em minha mesa amarguras e alegrias do destino
Mas você estava lá
Sob a abóbada celeste se despia o alpendre de nossas vidas
Na outra ponta do mundo você sorria para algo além de mim
Separados por vales e montanhas, copos e talheres
E você estava lá
No momento derradeiro ergueu o seu farol
Iluminou em mim sua despedida
A brevidade de cada suspiro repousava no leito do meu olhar
Enquanto você estava lá
A voz que é minha devora o amanhã, dirá
Sem amarras ao mastro meu som é, para ti, sereia
Proclamo ao mar o cântico ouvido por Odisseu, mergulha
Pois você estava lá
A partida não se fez em mim sentida
Continuo contigo na vastidão do oceano que habito
Rogo as musas para, outra vez, cantarolar ao teu ouvido todo amor que sinto
Já que você está cá, comigo
PS: Homenagem a minha esposa Ana Suely e nosso aniversário de casamento.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 26 de agosto de 2018

Releituras (a)gosto: Oculi speculum animae sunt

Ah o olhar! O olhar reluz, conduz, condiz e apraz.

Seduz, simula, dissimula e ludibria.

Eis que é astuto e seu intuito é muitas vezes voraz!

O que satisfaz a fome do olhar?

Somente a concretização daquilo que está lá no fundo, escondido no coração e deixa nos espelhos da alma brilhar.

Olhar de verniz, prediz no que as palavras se enrolam.

Transmitem os passos que muitas vezes se engodam
e desatam os laços nos quais nos deixamos emaranhar.

Engendra-se para onde ninguém mais vai.

Faz-nos tropeçar onde ninguém mais cai.

O olhar pode ser terno
ou tenso,
resignado
ou propenso.

E tal como se olha para fora, se faz para dentro,
para o centro
da alma do poeta.
Feito seta
o olhar que afeta
também se deixa afetar.

O olhar de inúmeras faces, de inúmeros instantes,  inúmeras almas.
O olhar da calma, o olhar da chance, do alcance ou do simples olhar para o mar.

Sim, pois, para dentro ou para fora, o olhar não demora, não tem hora, nem lugar para se mirar.

Seja o olhar que chora ou o olhar que espera.
O que odeia ou o que venera.
Nada escapa ao seu universo de significar.

É fascinante a multiplicidade que nos invade ao contemplar e perceber
que o olhar que absolve
pode ser o que condena
e o que acolhe
o que envenena.

Dos tolos que não percebem, só resta a pena de
não notar
que a comunicação pelo olhar
é notória demais para se deixar passar,
pois quem olha sabe o significado e é sempre para um resultado que se lança
essa dança,
que não precisa proferir uma palavra ou som,
para significar
para alguém,
um alento,
um intento,
um lugar,

seja ele de paz, ou de guerra,
no inferno,
ou na terra,
ou em tantos lugares quantos se possa imaginar.

Quantos poemas nos dizem do olhar?

Em quantas músicas a nossa bossa,em verso, ou prosa tentou nos mostrar
que olhar é privilégio
e fechar os olhos um sacrilégio
digno de quem quer se matar?

Seja quem for, valorize seus olhos,
os espólios
que eles lhes proporcionam,
sempre emocionam
aqueles que com eles não podem enxergar.

E que sejam quantas forem as músicas,
quantos sejam os versos,
ainda que se escreva o inverso,
deles haverá o que dizer.

Pois já dizia aquele velho ditado,
daquele pobre que sofreu um bocado, porque não sabia do outro,
porque ria ao ver o sol nascer. 

Àqueles que agora perdem tempo lendo esse projeto de poesia,
que possam sentir a alegria
do entardecer e que estejam cientes
de que não há lente
que limite o que os olhos falam à vida.

Não importa o que essa gente metida
a interpretar o que sente diga
o que dos olhos se deve dizer,
nunca ninguém em parte alguma jamais traduzirá, por completo, a essência do olhar.

Júlio César Barbosa Dantas
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domingo, 19 de agosto de 2018

Releituras (a)gosto: O plano

Antes

Durante

Depois

São planos

O antes que já foi

O durante que já passa

O depois que nunca vem 

Até que renasça 

Como antes também

Planos são fumaças

Que fogo não tem


Por Jayme Mathias 

domingo, 12 de agosto de 2018

Releituras (a)gosto: A guerra dos Fonsecas

Fonseca, general experiente de inúmeras guerras, que, como todo ser vivo, encontrou vitórias e derrotas ao longo de suas batalhas. No auge dos seus quarenta e poucos anos já passou por diversas pelejas orquestradas pelo destino: possuiu duas famílias, incontáveis amores, metros de cabelos cortados, bigode sempre afiado. De todas suas vivências nada se compara ao campo de batalha. Nele o corpo se presta a um estado limite entre sua constituição e a fissura, mutilação. Não há momento mais severo, mais engajador. A trepidação da metralhadora se propaga em suas células, repetição acelerada que lhe traz o prazer sexual. O choque do tiro, da luz, da bomba, do inimigo inesperado, tudo pulsa num campo de tensões.
Aí você lendo esse texto, criando as imagens do Fonseca em sua mente dentro do lugar de combate, relacionando sua imaginação com algum filme que já assistiu ou coisa semelhante. Você consegue envolver seu corpo com esse texto mais do que o Fonseca com o campo de batalha? Não. O empenho do corpo dentro do combate é completo, a tensão dos músculos, o estalo dos ossos, o ranger dos dentes, o estômago virado.
Acho que foi na primeira quinta-feira do ano passado: Fonseca estava em um novo conflito, tudo normal, corpos dilacerados, córregos de sangue, o velho cheiro de suor e morte, mas algo estava estranho, o nosso general assistia todo o espetáculo da técnica do mesmo modo como presenciava o jantar em casa, as reuniões no quartel, o coito com seus amores. Sabe o que é isso Fonseca? O tédio. Agora sim leitor, não há mais diferença entre sua imaginação e o campo de batalha do novo Fonseca, entre o seu dia, sua vida, e a de mais ninguém. Se o prazer de viver está na luta, e se tudo agora é mais do mesmo, por que continuar na guerra? É na ausência do prazer que a falta de sentido do existir nos aparece. E haverá um dia em sua vida que eu retornarei para narrar o seu desespero também.

Paulo Victor Albuquerque
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domingo, 5 de agosto de 2018

Julho do Leitor: O indigno (PARTE 2) - 2/2

... continuação...

No fim da tarde, quando a meia lua branca estava no céu limpo, o velho pedro contou as moedas que tinha conseguido naquele dia, somou com outras tantas que tinha no bolso e percebeu que eram bastantes. Levantou a cabeça, mas somente o suficiente para que pudesse ver o caminho que tinha que andar – “A vergonha”, pensou o velho, “é como as sacas de feijão que um dia já carreguei no lombo: pesa tanto sobre a cabeça que não consigo dobrar o pescoço no rumo de cima”. Caminhou rápido, com pressa, a ponto de conseguir chegar ao armazém da cidade quando ainda estava aberto. “Senhor, quanto de madeira consigo com esse dinheiro?”, disse pedro ao dono da venda. Ele lhe mostrou, pesando na balança, o tantinho de caibros sujos que correspondia àquelas moedas. “Servem. Muito obrigado”, disse ele, preenchendo o vazio que se fazia presente naquele saco de pano. Dali, o velho pedro tomou a direção do lugar onde a sua derradeira tarefa havia de se cumprir. Andou, e andou mais, até que saiu da cidade. Tomou estrada de terra, contornou as curvas que entortavam o caminho, até que caminhou pela vereda que lhe levaria, finalmente, ao lugar. 
Chegou ao cemitério. No cemitério há ruas, há esquinas, há endereços. Mas, ali não andam carros, só há o vale de lágrimas dos transeuntes desconsolados, sem pressa em prestar suas homenagens desaceleradas naquele espaço despregado do tempo: em cemitérios só há eternidades. O velho pedro tomou seu rumo, que era certo, e dobrou as esquinas que precisava, até que chegou ao seu endereço. Olhou para o chão e viu a cruz de madeira, tão conhecida sua, enfiada na terra. A cruz era feita de duas varetas simples, imperfeitamente sinuosas, envolvidas em folhas de carnaúba no lugar onde se cruzavam. Pedro pegou a cruz com a mão e a arremessou o mais longe que podia – a força que havia feito no movimento foi tanta que, logo após fazê-lo, ofegou por alguns segundos. O homem olhou para o saco de pano, pegou-o pelos fundos e virou-o de cabeça para baixo, derramando sobre o chão os pedaços de madeira que ali havia. Percebeu, então, que precisava de pedras, algo para amarrar, algo para martelar, algo para cobrir. Recolheu tudo o que precisava na mata que havia ao redor e começou a trabalhar. Cortou, amarrou, fincou na terra, ajustou, testou a resistência – corria a noite e o homem trabalhava. Na meia noite, quando era certo o dois de novembro, uma pequena procissão entrou pelo cemitério, sendo possível escutar o canto lúgubre das cinco ou seis senhoras que procuravam o seu endereço na floresta de lápides e jazigos. As senhoras passaram pelo homem e viram-no trabalhar. Uma delas segurou o passo, quando finalmente parou e deixou que seu cortejo seguisse. “O que o senhor faz, a essa hora? Veio homenagear parente?”, perguntou ela curiosa. “Vim, sim senhora”, disse ele sem parar o trabalho. A senhora olhou mais um pouco, viu o disparate e não se aguentou, “Mas, não deveria rezar, ao invés de cortar madeira?”, disse, incrédula, ao que o homem respondeu, “Senhora, eu errei com ela e faço o que tenho que fazer”, disse ele, olhando para a velha mulher com os olhos cheios d’água. “Todos erramos, senhor, somos pó e pecado. Todos que estão aqui, os vivos e os mortos, erraram, e erraram muito. Jesus Cristo tenha piedade da tua alma e que Nossa Senhora te acuda. Conta o teu erro, e alivia a tua alma”.
Pedro vivera naquela cidade por muito tempo. Ali, tivera uma família, era esposo de Maria Cleonice e pai de Helena. O homem batia na sua filha, maltratava muito ela. Sem motivos para tanto, sacava o cinto do cós da calça e marcava as pernas da menina sem abrir mão da força de homem que lhe era disponível. Ele bebia e farreava bastante. Não batia na mulher, mas lhe machucava de outras maneiras, pois todos sabiam o quão mulherengo era pedro. Certa noite, o homem fora para o forró, conhecera uma mulher e por ela se apaixonara. Um mês depois, Pedro fora embora com a nova companheira para o sul, tentar vida nova. A mulher e a menina ficaram sozinhas. Quando a seca chegara, passaram fome e sede. Um dia, a filha reclamara tanto da garganta seca que a mãe a levara para o açude, pegara a lama barrenta de uma poça com a mão e espremera, deixando derramar o líquido preto na boca da criança. Na nova terra, pedro não fora feliz. Não arranjara emprego e a mulher o deixara para ficar com outro homem. Regressara. Fora para a sua antiga casa e encontrara apenas estranhos. Os vizinhos lhe disseram que a menina, Helena, morrera na seca, e Maria fora embora, não se sabendo mais notícias dela. O homem chorara e se desesperara, sentira culpa, sentira vontade de morrer. Desconsolado, fora ao cemitério procurar pelo sepulcro da filha, sem sucesso. O homem que cuidava do cemitério guiara pedro até o lugar onde uma menina que morrera na seca havia sido sepultada. Ele vira apenas a cruz de madeira, nada mais. Não havia identificação, não havia lápide, não havia sequer um papel, que uma boa alma poderia ter pregado naquelas varetas, com o nome da menina. “Uma criança não merece esse abandono”, pensara ele, no auge da culpa. Ali, fizera promessa e dissera que não iria descansar enquanto não construísse sepulcro decente para Helena. Procurara emprego, e não conseguira. Colocara-se, então, a mendigar. Passaram-se anos, décadas, e das moedas de todos os dias, separava uma parte para a sua promessa e gastava o resto com comida.
 Pedro contou esta mesma história para a senhora e terminou dizendo, “Aqui estou, tentando cumprir minha promessa. Sou indigno, porque abandonei minha família e vim me redimir, se possível for”. Pedro percebeu, quando terminou, que a senhora vestia um manto azul sobre a cabeça, que escorria pelos ombros até chegar à cintura. Na parte imediatamente circunscrita à cabeça, havia um círculo bordado em dourado. “Homem és, feito de pó e pecado. Acalma a tua alma, porque foste feito para errar. Que os anjos te guardem e que o Senhor abençoe tua obra. Quando terminar teu trabalho, ajoelha-te e reza um Pai Nosso e um Ave Maria. Assim sendo, ficarás em paz”. A senhora virou as costas e voltou a caminhar, indo em direção à procissão. Pedro, como lhe fora mandado, voltou a trabalhar, e, quando terminou, ajoelhou-se e pôs-se a dizer as palavras santas. Ao fim da reza, uma luz alva desceu dos céus, iluminando todo o cemitério. A luz repousou sobre aquele pobre amontoado de madeira, posto em forma de sepulcro por Pedro e tudo o que era madeira virou pedra; um lindo jazigo, adornado em mármore branco, ali se formou, como numa mágica. A obra estava pronta e o Velho Pedro teve paz.


Por Willem Carneiro
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domingo, 29 de julho de 2018

Julho do Leitor: O indigno (PARTE 1) - 1/2

O homem era velho. Era difícil saber sua idade com exatidão, mas sua barba grande e suja, que passava por tons de cores do cinza escuro ao branco e as rugas bastante demarcadas, acusavam que aquele senhor já passava dos sessenta, de certo. Mas, como iríamos saber quantos anos tinha, se ninguém perguntava sequer o seu nome? O nome, este já o sabemos. As outras pessoas da rua o chamavam de velho pedro e diziam que ele não falava muito, que era tímido, era infeliz, mas era andador e sabia trabalhar. O velho vestia um trapo de calça preta, bem manchada e suja, uma camisa de botão que, um dia, já foi branca, mas que, hoje, mais caminhava para aquele tom encardido que só as roupas muito usadas, imundiçadas e nunca lavadas alcançam. Era a muda de roupa que tinha e nada mais. Como sabia trabalhar com madeira, juntou pedaços de caibro que um dono qualquer de mercearia por onde passou lhe deu, cortou, amarrou, armou e conseguiu preparar a estrutura do que viria a receber a cobertura daquele plástico preto em que se põe lixo. Estava feita a sua casa. Era feia, mas os outros da rua tinham inveja, pois, além de não precisar correr quando chovesse, pedro poderia até levar visitas íntimas para o seu particular. Não era necessário inveja: há muito não chovia e há muito, mas muito, pedro não levava ninguém para qualquer particular. 

Era primeiro de novembro. O dia não tinha surgido e o sol só iria dar as caras dali a uma hora.  O velho pedro se levantou, subiu o fecho-éclair da calça e a abotoou, vestiu a camisa, pôs o chapéu preto e saiu com um saco de pano vazio nas costas. Foi à esquina, dobrou à esquerda, andou três quarteirões, dobrou de novo, mais três quarteirões. Chegou. Quando parou, pensou, “É aqui. Aqui passam muitas pessoas”. Sentou ao chão e pôs-se a esperar. O dia chegou e os carros começaram a passar, as pessoas a andar e o sol a aquecer. Quando a primeira pessoa apontou na esquina, o velho pedro a observou, respirou fundo e estendeu a mão. A pessoa passou e não desenhou reação com relação a pedro. Era a primeira a fazer isso, mas não seria a última. Quando o sol apontou no cimo do céu, não havia mais sombra e o dia estava quente. O concreto da calçada fervia e pedro resolveu levantar. Aquele que estava ao chão, de mão estendida com a palma para cima e com os dedos arcados a fazer uma curva côncava, agora estava de pé e fazia-se mais visível. Visível só se for para o sol, que não o perdoava, porque, para aquelas pessoas que passavam, pedro e o poste, pedro e a placa, pedro e a calçada, eram a mesma coisa, eram cenário urbano. Juntava, por aquela altura do dia, um par de moedas. “Tenho que conseguir”, pensou ele, “mas é melhor que eu ande, pra que prestem atenção em mim”. O couro grosso daqueles pés descalços sentia apenas uma parte do calor escaldante do chão de concreto e pedra. Quando um homem vinha, pedro apontou em sua direção, meio sem jeito, como quem não quer ir, e disse, “...”, desculpem, mas, mesmo eu, que sou narrador onisciente e  onipresente, que tudo sei, que estou em todo lugar, não pude ouvir coisa da boca daquele senhor. O homem que vinha percebeu aquela figura, olhou e, à medida que passava, virando o pescoço, disse, “Desculpe, o que disse?”, e continuou o seu caminho. Pedro sentiu vergonha de estar naquela condição – pedir era difícil. Percebeu, quando escorou-se na parede a pensar, que não conseguia falar na altura para que o ouvissem. Não por timidez, era dignidade que faltava. “Como vou conseguir falar a outra pessoa se minha barriga dói de fome, se não há borracha entre meus pés e o concreto quente do chão duro?”, pensou ele, chegando às conclusões. O velho pedia, mas não queria pedir. Duas coisas o seguravam naquela posição: a primeira, o fato material, sensível e simples de que, se não pedisse, morreria. Pedia, também porque precisava de algum dinheiro necessário para cumprir um dever auto imposto. O homem pediu e pediu outras vezes naquele dia, pediu até conseguir o que precisava. Era invisível o velho e era igual a outros objetos da rua, mas, como todo objeto, que tem sua função definida, a daquele senhor era a de ser mendigo. Mendigos recebem moedas de pessoas. Afinal, não são mendigos as coisas para as quais damos moedas, com a intenção de descarregarmos a consciência de suas culpas? Mendigos são como cofres, e à medida que neles depositamos moedas, acumulamos qualidade para um sono cínico e passos dados para o alcance de um paraíso desejado...

continua... (próxima postagem: domingo 05/08)

Por Willem Carneiro

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domingo, 22 de julho de 2018

Julho do leitor: O enterro

Apenas outro anjo. Anjo, anjinho, era assim que os adultos designavam as criancinhas que morriam. Fui naquele dia ao enterro do filhinho de Zé Pereira, o empregado do seu Freitas. O caboclo era forte, parecia não ter medo de nada, mas na ocasião estava desfeito, arrasado, quebrado, humilhado por aquelas lágrimas que não lhe caiam nada bem. Mas tinha-se que compreender, o homem estava enterrando seu terceiro filho.
    O sol já se punha e o calor, finalmente diminuía. As pessoas em volta da pequena cova faziam um reverente silêncio, somente a mulher de Zé Pereira o interrompia com soluços e gemidos. A mim, incomodava ver o anjinho receber terra no rosto. Por que não tinham feito uma tampa para aquele caixão? Será que Zé Pereira não tinha dinheiro suficiente para o homem da marcenaria? Talvez aquela situação trouxesse ainda mais tristeza ao coração da mãe.
    Quando a cova foi finalmente coberta, Zé ajoelhou-se e pôs uma cruz na terra fofa. Neste momento imaginei a ponta da madeira indo de encontro ao rosto murcho do anjo. Maldade! Deviam ter mandado fazer uma tampa para aquele caixão.
Areia no rosto do morto.
    As pessoas começaram a sair e eu fiquei para trás para conduzir os meninos. Chamei cada um pelo nome, puxei pela mão de alguns. Seguimos pelo meio das cruzes, com cuidado para não pisar e afundar nas covas rasas. “Não perturbe os mortos”, dissera Jacinto, o coveiro. O homem que todas as crianças temiam, inclusive eu. Ele era poderoso, só podia ser; há muito que convivia com os defuntos, os túmulos; zelava pelo cemitério, era senhor de tudo. Eu era apenas um intruso, as crianças ameaçavam desorganizar tudo por ali, estava receoso. Continuei reconduzindo os meninos, invadindo canteiros, pisando em restos de flores e sobressaltando ao fazer isso. Medo! Aquele era o lugar dos mortos e os mortos, segundo minha avó e outros adultos, tinham grande poder. Assustavam, faziam arrepiar, colocavam para correr homens valentes, detinham os segredos da morte, eram os donos das noites escuras, não temiam nem ladrões, nem coronéis; alguns chegavam mesmo a virar santos e serem transformados em imagens de gesso para serem reverenciados nos domingos, nas novenas.
    Fui ficando impaciente com aqueles moleques. Tive que correr algumas vezes, afundar os pés naquele chão imundo, contaminado por restos de gente. Outras vezes brincar, contra a vontade, de esconde-esconde por detrás daqueles túmulos e roseiras.
    - Passa, ô infeliz!
    Dava vontade de deixar aquela meninada lá. Virar-se-iam com as almas dos falecidos. Tinha certeza de que iam chorar de medo dos fantasmas. Já estava farto daquilo, eram-me suficientes os pensamentos que certamente me tomariam de assalto à noite. Pesadelos! Sentia desejo de chorar. Depois de ameaças, consegui fazê-los seguir a trilha certa. Agora o cortejo seguia longe. Tínhamos que andar um longo trecho sozinhos. Lá foi eu caminhar por entre tumbas e covas abertas. Em dado momento nos deparamos com gatos. Muitos deles: pretos, brancos, amarelos, cegos, mancos. Para mim todos demônios em forma de animais. Foi um dos meninos se agarrar a um deles e eu gritei exasperado. Como não podiam ter respeito, temor? Já não eram tão pequenos assim. Sabiam sobre mortos, histórias de almas penadas e diabos no corpo de gatos pretos.
    Aos poucos fomos nos aproximando dos adultos. Para meu alívio, deixamos para trás aquele lugar assustador e imundo onde pequenas construções com cruzes no topo apareciam esporadicamente. A maior parte do terreno era mesmo dominada por pequenos túmulos de crianças onde não havia muito o que pôr. Tinha a consciência de que aquele era o destino de todos, reverenciava a morte mesmo acreditando que estava longe de mim.
Mas o quanto longe?
    Naquela noite demorei a pegar no sono. Na minha cabeça só havia espaço para uma coisa: os medos, imensos e incompreensíveis daquele cemitério, enorme, sua paisagem, seus mortos e todo o seu fascínio.

Por Jorge Raskolnikov
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domingo, 15 de julho de 2018

Julho do Leitor: um surto poético em meio ao enfadonho cotidiano

Basta...!

Dizia o homem de meia idade em demasiada inquietação...
Uma cidade não pode ser tranquila e interessante ao mesmo tempo?
Ah, inconcebível dignidade humana, derradeira importância política... 
Não se iluda, não nos iludamos, esgotamo-nos dia a dia em desprazeres.

Ô, mediocridade...!

Escapemos do óbvio, da pressa e do ganho a qualquer custo.
Não sucumbais à vida... Ei-la aí, experimentai sem grilhões.
Mas o que é a vida? – dizia um provocador. Talvez eu decidirei e ponto.
Certamente não será labor, nem imitação, tão pouco a companhia dos homens parvos.
Quero extravasar ainda que em solidão, principalmente nessa bendita solidão. 
Para que a vida não me escorra pelos dedos, feito água se esvaindo pelo muito pingar, secando prematuramente. Pois a vida pinga e seca e não a sentimos passar por estarmos em extrema atenção a outros afazeres que não são a vida, que só preocupa e a azeda.
A vida tornou-se incoadunável e, por isso insuportável, insustentável, lamentável...
Trabalho, confinamento, assédio, violência, congestionamento, miséria, poluição, concorrência extremada, aborrecimento, o sonho do outro, e nada de originalmente meu próprio?! É justo que o outro seja em mim?! É natural que eu queira ser, tão somente ser, ao meu jeito... Do outro só aproveitarei aquilo que me interessar. Ao inferno todos aqueles que dizem que devemos seguir o sistema determinado, a mim só importa o viver autômato, eu gasto o meu tempo da maneira que me apraz, chamem isso do que quiser.
Sim estou indignado, mas lúcido!Não notaram ainda que querem sugar a nossa vida com tudo que não nos interessa!Tirarei a tipoia de impossibilidade, os óculos de cego, abandonarei as muletas convencionais e seguirei tateando sozinho... Isso não pode ficar assim... Não irei me render, a rendição é para os que não encontram saída, eu ao contrário criei a minha própria saída...

Por Valterlan Tomaz Correia
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 8 de julho de 2018

Julho do leitor: Amor e palavras proibidas

O efeito do ópio começou no instante da consciência começar a fantasiar sobre sua boceta, jogada ao lado de sua cama, contendo instrumentos abundantes. Toda minha concepção de belo começou a se refazer. Minha crença desfeita. Meu rosto sem expressões e logo deduzo: a linguagem é errônea ao tentar entender a beleza. A linguagem não cumpre a significação da benevolência dessa súcuba. Se, porventura, viro na direção de seus olhos, percebo uma harmonia nos seus lábios excitantes e avermelhados, nos seus olhos em êxtase quando chocam com os meus e no calor em que nenhuma criatura sabe medir ou reter. Quando me vê, não sabe sobre seu poder perante meu corpo. Um mero homem perturbado. Loucura ocasionada pela beleza transcendental dessa moça catita. Traço planos e ideias para seus regaços. Nunca ouvira palavras descritas tão convenientes a esta moça. Quando me adentro na sua parte mais poderosa e íntima, onde tudo acontece, entrego-me ao turbilhão dos prazeres divinos e exuberantes, cobiço por mais, desejo tê-la no meu membro mais sutil e apetecível, julgo cada movimento de sua boceta único e conduzindo objetos de diversos tipos. Últimos suspiros prazerosos. Chamo-o assim. Deleite humano, gozo angelical. Eis o ponto em que tocamos o céu, recuperando nossas asas e elevando-se a um andar superior à imanência humana.

Por Eric Vieira
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 1 de julho de 2018

Julho do leitor: Podemos dizer que o amor existe ou ele é só uma palavra?

Podemos dizer que o amor existe ou ele é só uma palavra?

Uma vez, ao começar uma aula de Filosofia, perguntei aos alunos: “O que é o amor? ”. Um aluno de uns dez anos respondeu: “O amor é um substantivo abstrato. ” Esta fala daquele aluno me faz pensar até hoje. Será que podemos dizer que o amor existe ou ele seria apenas um nome? No segundo filme da trilogia Matrix, um personagem fala a Neo que o amor é uma palavra que possibilita uma conexão.  “E o verbo se fez carne e habitou entre nós”. A questão que se coloca para mim é que a nossa linguagem determina o nosso modo de enxergar o mundo, criando, também, um mundo artificial no qual vivemos como se fosse natural. A cultura - criação humana – nos faz dizer o que é certo e o que é errado, nos faz adquirir formas de ser e estar no mundo. Nesse contexto, como podemos dizer que encontramos um amor? Não seria o amor mais uma idealização criada na cultura para permitir relações sociais diferenciadas? Não seria o amor a nostalgia da alma que busca a plenitude na vida? Seria o sonho que preenche as carências emocionais que cada um possui? Podemos dizer que o amor existe ou ele é só uma palavra? O que significa um “Eu te amo”? Talvez o amor seja apenas uma palavra bonita no romance da existência. Talvez o amor seja uma palavra que permite um alívio para a condição humana de desamparo.

link do trecho de Matrix citado: https://www.youtube.com/watch?v=NQawiwYuLK0

Por Renan Soares Esteves
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 24 de junho de 2018

Mr. Nobody

Quando as luzes se apagam...
Ouço minha própria voz, chamando de um lugar sombrio.
"Há algo lá, mas nunca lá!" Diz ela sobre tudo.
Conduz-se uma espécie de "desorganon" que decompõe minusciosamente tudo o que se aparece completo, encerrado, objetivo.
"Piece by piece", examino os propósitos de cada "razão de ser", cada nome, cada porquê.
A mente borbulha. Temendo um colapso, ignoro a voz. Não importa!
"Há algo lá, mas nunca lá!".
No dia seguinte, a sentença persiste.
De modo que percebo que a voz não teme a luz.
Está "lá, mas nunca lá!".
Quando olha-se "Tudo" de muito perto, é possível ver o quão repleto de "Nada" ele é.
A pergunta primeira, do porquê de tudo, é uma Nau que navega ao redor de uma ilha esférica.
O "Nada" é o "zero grau" e o "trezentos e sessenta" que sempre surge da mesma pergunta. "Por que tomei esse caminho?" E assim inicia-se uma nova volta.
A filosofia, a qual usei como bengala para me sustentar, estava lá, mas nunca lá. Trezentos e sessenta graus, para notar que se voltou ao zero.
E para onde quer que eu olhe, só o que vejo é nada.
A realidade me chama de volta: "é preciso ir agora! É preciso!"
É preciso? Ir aonde? Dar mais uma volta na ilha. Tentando chegar à Índia nunca descoberta por Cristóvão.
Anoitece. A voz retorna: " eu avisei!" debocha.
Não lembro ao certo quando a ouvi a primeira vez. Mas depois que começou, nunca mais parou.
Desde então, percorre todo meu ser como a peçonha de uma víbora, que, travestida de coruja, seduz prometendo sonhos de grandeza e sabedoria.
Diz vender a "verdade", mas "esquece" de dizer o quão amarga ela é.
No início, tentei resistir. Como John Nash, ignorava a presença esquizofrênica daquela voz que se confundia com a minha.
Até que, feito Sísifo, cansado de ver a pedra rolar montanha abaixo, após todo o esforço para erguê-la ao topo, aceitei-a.
Depois, passei a Prometeu. Vendo todos os dias a águia do Real arrancar pedaços do meu fígado aos gritos.
Hoje, já não me abalo com isso. Na verdade, dificilmente com quaisquer coisas outras.
O que porém ainda me assusta é que, ultimamente, passei a gostar da voz.
Por um instante, acho estar brigando com minha própria sombra, como "Peter".
Antes de me entregar por completo, ainda reluto, me dou conta de que posso estar sofrendo do mal de Estocolmo. Apaixonei-me por meu captor.
E tudo o que ele sussurra é

NADA!

Júlio César Barbosa
vivisseccao.blosgpot.com

domingo, 17 de junho de 2018

Entre cães e pães

Os cachorros, dizem, sentem cheiro do medo. Esses que aqui latem todo dia fogem da regra. Porque se assim fossem me devorariam por inteiro. Mas eu vivo. Vivo e sinto antes de pensar. Sinto até livre, porém responsável. Sem compromisso, mas o tendo. Sem liberdade, mas a tendo. Querendo o ritmo do dever, mas sem querer. Exigente com o que faço. Livre para exigir. Como se tivesse aberto em mim a possibilidade de se abrir. Florescer. E não o fosse por completo. Nunca. No mínimo de soltura, tensão. Na abertura, prisão. Prender como quem escapa da jornada com que meu dever fizera livremente. Prender como quem escapa do próprio ritual criado. Hábitos breves, dos quais os leves não sinto poder. Exigência do querer ou não querer. Como se no momento do ápice liberto, gastasse em demasia a energia para me prender. Condenado ao ato livre. Condenado a não poder. O infinito delírio do ter que fazer. Os olhares me demonstram um tempo que com nada disso se importa. Eu poeta, solto e aberto, fechado e manifesto do ter que ter, do ter que fazer. Mas é isso que fazem os pedreiros erguerem as colunas do nosso tempo. Os papéis assinados dos grandes negócios! Os pães, até os pães diários e seu cheiro de tensão! Dos pães aos especialistas! Dos piores aos recordistas! No meu caso é prisão e preguiça!

Por Jayme Mathias Netto
vivisseccao.blogspot.com

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Julho do Leitor

Estamos fazendo novamente a chamada de textos dos leitores do nosso blog Vivissecção.

A ideia é que no mês de julho, aos domingos, postaremos um novo texto dos nossos leitores.



Como alguns leitores se interessaram pela nossa escrita, pelo conteúdo do blog e querem também espaço para suas ideias e sentimentos, a gente decidiu abrir esse espaço de produção de pensamentos dos leitores. Uma​ forma de interagir com novas ideias e questionamentos.

O conteúdo dos textos são experiências singulares, poéticas e filosóficas, são vivências de recortes de intensidade que nos trazem de volta à vida, que nos fazem sentir de outra forma e também questionamentos viscerais.

Caso você queira postar seu texto, envie para : jaymemathias@gmail.com ou, na aba direita do nosso blog, está disponível a opção de nos enviar uma mensagem com seu texto. Envie seu texto com seu nome(nome do pseudônimo caso queira), e-mail para contato e suas redes sociais (Instagram, Facebook etc.)

Enviar textos até 30 de junho. Posteriormente abriremos novas chamadas.

Jayme Mathias
Júlio César Dantas
Paulo Victor de Albuquerque


domingo, 10 de junho de 2018

Poeira cósmica.

“Uma das lições que a era hitlerista nos ensinou é a de como é estúpido ser inteligente”, afirmaram Adorno e Horkheimer no texto “Contra os que têm respostas para tudo”. Com isso queriam sugerir o quanto alguns intelectuais, com sua extrema inteligência, não foram capazes de perceber a iminente ascensão do governo hitlerista ao poder. O ocidente e sua soberba intelectual, com a crença na exatidão de suas ciências humanas, evocava os grandes estudiosos da época para garantir a impossibilidade do fascismo na europa. As certezas intelectuais de nosso tempo são cegas, pondo à margem tudo aquilo que escapa aos seus planos como sendo inumano, afinal as rotas estão claras como a luz do dia, Aufklarung!

Há latente nos “espíritos superiores” a crença numa objetivação de suas abstrações racionais e lógicas que arrastam a materialidade de sua concretude à projeções-fantasmas. O espírito altera a natureza, deixa sua marca, rastros humanos de nossa perdição. O que eles esquecem é que, como um filho, a matéria tem seus caprichos, suas nuances e singularidades. A crença na evolução do espírito se entrelaça a ideia de que o universo também encontra-se em um processo de evolução. A crença no progresso da natureza manifesta a fé num Espírito superior que guia a história universal.

Para que ninguém fique triste preferimos assegurar que todas as explosões cósmicas, energias radioativas, choques planetários, o vácuo espacial, conspiraram de forma engajada para a formação planejada de sujeitos de espírito superior que iriam trazer ao mundo a magnífica civilização européia, mais um exemplo de evolução espacial. “Hitler era contra o espírito e anti-humano. Mas há um espírito que é também anti-humano: sua marca é a superioridade bem informada.” Afirmam os autores judeus que sofreram as atrocidades cósmicas evolutivas do nazismo alemão. No Brasil, o progresso ontológico de milhares de anos produziu seres que deixam a via-láctea e o grande Espírito extasiados: os bolsominions. Eles são o novo suspiro do itinerário fascista europeu. 

Por Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 3 de junho de 2018

Pablo Fracasso

Hoje, o texto não tem contexto.
Pautado no que foi dito: " o mundo permanece tal e qual" sempre foi, com ele ou sem.
A poesia não tem rima, o clima não é de sol.
Me agarro ao texto e só a ele.
Porque escrevo não "para os afortunados planadores dos confins...", mas para mim mesmo.
Como "munífico homem" que não sou, anoiteço na sombra do medíocre.
E não vejo nele incômodo algum.
Há nele algo de familiar, que não me deixa sair...para baixo ou para cima.
O anonimato me permite apenas respirar e com ele vou...
Me agarrando à escrita como reflexão e justificativa para o meu sentido.
Sou, no momento, um peixe ladrão, que, da boca dos tubarões junta o que cai e dos restos vai sobrevivendo.
Nado no "bucho da serpente", ao mesmo tempo que "nas entranhas do meu Ser".
Transformo esse texto, não em interseção, mas em reflexo. Vivissecção de mim.
Junto os pequenos pedaços de incoerência e transformo aqui em algo que faça sentido para o plural que sou.
"Escrever sem objetar." Para bastar a si.
Pedaço a pedaço monto meu Franknstein tirando dos braços da "donzela dos lutos", vislumbres ainda úteis de redefinição.
Pois que sem graça seria a poesia estática, onde o preto é sempre preto e não ausência, onde o branco é sempre branco e não essência de qualquer atribuição moral.
Que seria de mim se não atribuísse?
Quem sabe algo melhor.
Remendo a remendo, apronto minha colcha de retalhos, nela os metralhos do general Fonseca ditam o ritmo da minha máquina de costura.
Ponto a ponto, apronto meu mosaico poético, como um Picasso um tanto patético, sem ânsia de criar.
Junto para mim um estandarte sem pé, nem cabeça, esperando que mais uma vez anoiteça e o amanhã me traga uma nova imagem dessa reciclagem, sem propósito outro que não me despir de mim para me vestir em outro eu com novos farrapos adicionados.

Por Júlio César Barbosa
Vivisseccao.blogspot.com

sábado, 26 de maio de 2018

Exercícios de desimportância

Sem mim ou comigo o mundo permanece tal e qual. Mantra da desimportância exercitada. Há um fundo cristão na caridade desapercebida e que persegue a humanidade. Fazer o bem sem que seja feito honra. Exercício de toupeira onde há pouco oxigênio quando se distancia da
superfície. Na superfície eu não sou ninguém. Desígnio filosófico-artístico da atração pelo nada. O que você tem? Nada. Não tenho nada a acrescentar e viva a alegria dos não-acrescentadores! Como dizia Bartebly eu simplesmente prefiro não fazer. Da preguiça surgiram
as maiores invenções da humanidade. Viva a preguiça da vida! O nada fazer. Respirar Basta! Esse texto mesmo não é nada que pedaços de Cioran, de ideias já feitas por qualquer um. Não me esforço para nada com ele. Ele é apenas um como qualquer outro diário escrito. Talvez sua vida seja flutuar como música. Mas se ele não quer ser nada, que não seja. Há algo interessante na percepção que se alarga na preguiça. Detalhes nunca antes visto. Vi uma traça carcomer meu livro. Eu deixei: "Coma tudo! Coma todos! Com eles ou sem eles o mundo permenece tal e qual." Bocejo para a traça. Ela talvez tenha algo a dizer da tinta preta que
consome, mas queria que ela não tivesse nada. Como eu não tenho senão o ar que respiro. "Mais um casamento da família real" diz o jornal e nele não há traça nenhuma. O que concluir disso? O que fazer com isso? Nada. "Míssil russo. "Atentado em Paris." "Jerusalém ou Israel͟". O que fazer com isso? Nada. Que sentido tenho para defender x ou y? Nada. Tudo é em vão e o mundo permanece tal e qual. "Direitos dos trabalhadores͟" diz a outra notícia. O que acrescentar? Nada. Ou melhor porra nenhuma. "Inteligência artificial: contribuímos para um grande cérebro do Google͟." Meu deus! Vamos ter robores domando nossa vida! Será nossa Matrix, seremos alimento das novas inteligências! Acaso eles terão esse
sentimento de nada? Valia a pena um robô nadificador mas não niilista. Seria engraçado um robô que soubesse que nada tem a acrescentar, com desejo de nada e que não fosse para salvar nada, nem ninguém. Simplesmente fosse triste. Mas que que isso acrescentaria? Nada,
ou melhor porra nenhuma. O meu teto tá cheio de mosquito em volta da luz. O que isso acrescenta? Nada. Elas tariam aqui ou em outro canto. O oxigênio taria em outros pulmões que não o meu. Ser imprestável é meu desafio ético. É o que tento fazer. Eu não tenho nada
que um nome para que possam me chamar e se referir a mim, mas no fundo sou nada. E persisto na desimportância de tê-lo. No fundo, o máximo que serei é um nome que uns ou outros vão dizer: "͞Ah! Eu o conhecia!͟" Até que ninguém mais lembre. O que isso acrescenta?
Nada. Ou melhor porra nenhuma. O mundo permanece tal e qual e apesar de tudo. O que isso tudo quer dizer? Nada, ou melhor porra nenhuma! Essa é a minha imprestabilidade, esse é o meu texto de hoje, ou melhor porra nenhuma!

Por Jayme Mathias Netto
vivissecção.blogspot.com