domingo, 16 de dezembro de 2018

Diferença e repetição.

Cheguei à casa de Dolores numa manhã chuvosa de abril. Quando ela abriu a porta me deparei com seu semblante estupefato. Confesso minha apreensão com este momento - o primeiro encontro com o ser que faz parte de minhas memórias mais antigas. As lágrimas da chuva que se misturavam ao choro do seu rosto me trouxeram lembranças dos vinte e quatro anos que vivemos juntos em nosso lar. Jamais esquecerei a explosão de sentimentos pulsantes em mim naquele instante. Num sobressalto cognitivo a dúvida se instaura: posso considerar aquele abraço de Dolores, que me queima, mais real do que todos os outros que guardo na memória?
Vivo, pela primeira vez, uma vida que já vivi. Sei que para Dolores todo o processo é muito angustiante, ela ainda convivia com as dores do luto quando cheguei. Quanto a mim, não escondi a alegria do nosso encontro, já que a última lembrança que tinha era das seções de quimioterapia, com seus enjoos, decadências e fragilidades. Durante o tratamento, enquanto a morte me consumia, imaginava o que seria de minha bela esposa e nossos filhos com minha ausência. Hoje experimento o amor que momentos antes de minha chegada apenas repousava nas reminiscências do meu eu.
Já se passaram dez anos desde aquele primeiro encontro. Muita coisa mudou. Um de nossos filhos está morto. Dolores conseguiu um novo emprego com um excelente salário. Muita coisa mudou. Dolores mudou. Ela me disse que somente o céu ainda permanece igual, mas o que está abaixo dele se transforma como um rio que corre banhado pelas lágrimas da chuva. O problema é que não fui programado para uma nova dor, para a mudança de emprego ou a procura de um outro amor. Dolores mudou. Disse que dentro dos vinte anos iniciais que convivemos eu me transformei, fui moldado pela vida, mas que agora sobrevivo enclausurado nos canteiros da mesma memória. Não tenho culpa, fui duplicado para viver ao lado de Dolores, e o que reproduzo são lembranças do meu eu. Para minha esposa eu não possuo singularidade, sou uma cópia de uma parte de mim: não me construo, sou um produto. Ela só não percebe que ao menos eu conservo aquilo que os humanos tanto procuram: o eu.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

Um comentário:

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