domingo, 30 de janeiro de 2022

Antoine

Certa vez, viajei até a cidade em que Van Gogh tinha falecido. Auvers-sur-Oise. Lá tinha um artista que escreveu na porta de seu atelier: "Aberto, pode entrar, não espere eu morrer para valorizar minha arte. assinado: Antoine". Eu sorri e ele me sorriu de volta. Ele deu com os ombros como quem diz "mas num é verdade?". Eu afirmei com a cabeça como quem diz "eu sei bem". Eu entrei e ele me explicou:

- É que essa valorização do passado é por causa do mal-estar. Se a gente separar, se uma arte dadaísta vinhesse primeiro que uma arte clássica, então para muita gente essa seria a verdadeira arte, boa e bela. O que eles estão negando é o mal-estar, não a arte. Quando criticam uma arte dos dias de hoje dizendo que não é arte, na verdade querem se livrar do mal-estar contemporâneo e não daquela forma de arte específica. Olham meu trabalho e dizem: "ele é como eu, é do meu tempo, ele vive toda essa merda, então não presta! A não ser que faça igual antigamente!"

Eu não tinha o que dizer e saí anotando o que ele havia dito, mas também não comprei nenhum quadro e ele sabia que não compraria. E eu sabia que ele sabia. Mais tarde, no final da tarde após ver o quarto do Van Gogh, o cemitério onde ele está enterrado e todas as pinturas de todos os ângulos que ele fez na cidade, eu voltei para o senhor Antoine com um café e uns biscoitos que comprei. Sorri pra ele novamente. Era o máximo que podia fazer, os quadros eram caros demais. Ele agradeceu gentilmente pela visita e pela conversa enquanto terminava sua mais recente obra. A noite chegou, conversei bem mais coisas, peguei o trem e fui embora atordoado. A arte faz essas coisas e não possui remédios ou preventivos. Afinal, por que simplesmente um artista contemporâneo é tão menosprezado? Por que tantas desculpas para não comprar seus quadros? Por que tão pouco valor damos? Como diz Paulo Victor: "é mesmo, tem como não!". Ou Júlio que diz com preponderância : "é mah, esse bicho". Aí pensando nisso fiquei até agora. Se num escrevesse isso acho que eu ia explodir, e o senhor Antoine deve fazer a mesma coisa para não explodir também.

Jayme Mathias Netto

domingo, 23 de janeiro de 2022

Altares profanos

 


Da matéria profana ao sagrado posto em matéria

A arte sacra é o encontro paradoxal entre o corpo mundano e a imaterialidade divina

Quanto mais próximo dos espaços religiosamente ilustrados tanto melhor experimenta-se o sobrenatural

É possível existir uma matéria sacrossanta?

Toda arte é divina na medida em que, a cada obra, se eclodem outros mundos de sentidos e emoções

A arte é o limiar entre o sagrado e o profano

Ela é o barqueiro que nos leva ao Hades

Transforma mercadorias em ruínas

Ruínas em altares

A arte evoca os mortos numa marcha necromântica pela história

Dissolve mitos

Eterniza mártires

A arte representa o que há de inumano no humano

A imaterialidade na matéria

O sagrado no que é profano

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 9 de janeiro de 2022

Tem vez...

 

Tem vez que não dá
Não adianta
Nem almoço, nem janta
Enche o bucho da inspiração.

Tem vez que engancha
E nem estribucho de criança
Faz o capulho da ideia desabrochar.

Tem vez que embaça
Num meio mundo de fumaça
De realidade 
De desgraça
Que desgasta achar o tema que não tema um, ou outro olhar
Que não trema ao titubear dos dedos de quem ajuíza.

Tem vez que vem furacão, outras é só é brisa 
E tem vez que nem quem colhe o que planta
Segura na mão o mesmo grão
Nem quem corre, ou quem anda
Acha lugar na condução da escrita.

Tem vez que tampa
o Bandaid da ferida
Entope que nem cabelo no ralo
A "gana suicida" de fazer emenda
Que nem a rolha no gargalo
Menor que a encomenda,
Não cabe nem a pau.

Tem vez que, nem choro, nem reza
Pra canto nenhum leva
O peso é leve
E a leveza pesa uma tonelada.

Tem vez que, em vez de sair, entra
Em vez de dividir concentra
Em vez de concentrar reparte
Que nem se espatifando em arte, se acha um só pedaço
E nem juntando os cacos, dá um todo.

E tem vez que não, que vem palavra de rodo
Em vez de metade vem um inteiro
Verso mais numeroso que dinheiro, do roubo do banco central
Mais brusco que chute na pleura sem peridural
Mais quente que o calor de meio dia, pelas ruas de calçamento do sertão central.

Tem vez, independente da tez, da aura
da alma,
Da palma, ou da vaia
Se espraia, sangra, escorre, brota.
A torrente arromba a porta que segura a norma culta.

Tem vez... Vez que sim, vez que nem tanto.
Vez que sai rouquidão, vez que sai canto.

Tem vez que nem ia
E, como quem soluça 
Expulsa, sai,
Feito necessário nascer do dia
espasmo da alma,
Tem vez que nem era nada

E tem vez que é poesia.

Júlio César

domingo, 2 de janeiro de 2022

Mas o gato não morreu eu réu


Na hora do dia mais específica 

que se possa imaginar

No momento exato do 

que se possa assinar

Nosso amigo já dava voltas pelos muros da cidade

Hoje seu dia é! Mas é dia de que?

É dia de dia ou dia de morte?


Saía com um saco de amendoim na cabeça

O gato 

apressado

Até o fim da calçada

Foi ao meio da pista

Já estava cansado


Seu rosto camuflado era 

cheio

Por dentro do saco era 

desespero

No meio da pista era 

medo


Por fora um animal perdido e 

inocentado

Por dentro era não ter à racionalidade humana 

adequado

"Que vantagem" gritou o felino quase 

atropelado

"Que bobagem" o outro miau testemunhava


Frases últimas do gato solto 

a presa

O vai e volta do desviar cego de rodas

"O gato 

tá sem 

cabeça"


Eu já previa o seu segundo 

derradeiro

E logo, logo já restariam menos de sete mortes 

verdadeiras

O saco era um capus que lhe tomava 

a cegueira

Desviar de vida 

passageira


Sete rodas 

desviadas 

e sete xingamentos do trânsito 

revirado

O rabo 

desconfiado


Deitou-se no asfalto

Assassino solto 

Cego dos ouvidos

Olhos submissos


A roda roda rápido e para no sinal

freia

Cada roda 

em cadeia


Ninguém cobria a cena do felino 

medo

Só se humano servia 

a esteira do gato 

preto


Numa nota só assovios e 

caretas

Na pressa diária

Foram salvar o gato à 

espreita

Salvo pelo azar supersticioso do condutor 

"matar uma morte 

preta?"


Cada roda encadeia

Na consciência a ideia faceta

"Eu? Salvar o gato?"

"Mas é gato preto"

"Parar o tráfego?"

"Mas vai sem medo"


Era a pergunta em cada cabeça,

 motorizada

Em cada forma que 

tornava 

o felino tolo

abobalhado


Morrer repartido pela borracha separando o seu 

corpo

"Vou

não vou?"


Os homens pagavam aquela morte barata pela pressa

na vergonha da compaixão 

felina

O gato entregue à cegueira da morte que cedo ou tarde 

era sua sina

Um saco na cabeça e tudo pronto para a 

guilhotina


De tanta fome deve ter se colocado lá sem 

conseguir

Sair

Ou de tanta sorte eram os homens tolos que fizeram aquilo para

não parar de 

rir


A roda do 

lado 

pensava em armadilha de 

assalto

Controle remoto de um

gato


Desviou acelerou com pavor na cara

Gato assustado e carros 

cambaleavam

Para não matar o único inocente na pista

Desviavam a atenção

disfarçavam


"Quero chegar logo em 

casa!"

As crianças riam e 

com medo do fim 

torciam


Gato vivo, gato morto

Mas ninguém queria a transição 

testemunhar

O segundo derradeiro de uma vida 

parar

Os humanos também tinham olhos vendados

E não enxergavam a vida a que se aproximava

para 

salvar


"Calma, a salvação já vem"

gritavam

Eu fui!

"É só retirar o saco!"

Os olhares

desviavam

eu 

apanhei 

os

meus pensamentos 


Meus pensamentos

são como os carros 

que vem e voltam 

no caminho que 

estou


Carros no asfalto 

quente 

que muito se 

pisou


Os pés descalços 

as solas apressadas 

que por aqui 

passou


Até o sangue derramado aqui 

presente

Neste asfalto 

quente 

que aqui 

estou


É o sangue do meu corpo 

Que veio do 

sol-nascente 

que, agora, procura a sombra, 

amanhã 

seu calor


Do corpo gelado que sobrevive 

calado 

e o pensamento 

parou


Parou o carro ao meu 

lado

E o céu 

estrelado

Que brilha como 

caco

do para-brisa

Iluminado

à minha vista fadado

estou 


Segue à risca como o risco de quem 

arrisca 

salvar o gato


Meus pensamentos 

são como 

carros 

que param no caminho que 

ficou


Ao observar o corpo 

gelado

e calado 

que não

 mais sente 

dor


Jayme Mathias Netto