domingo, 26 de agosto de 2018

Releituras (a)gosto: Oculi speculum animae sunt

Ah o olhar! O olhar reluz, conduz, condiz e apraz.

Seduz, simula, dissimula e ludibria.

Eis que é astuto e seu intuito é muitas vezes voraz!

O que satisfaz a fome do olhar?

Somente a concretização daquilo que está lá no fundo, escondido no coração e deixa nos espelhos da alma brilhar.

Olhar de verniz, prediz no que as palavras se enrolam.

Transmitem os passos que muitas vezes se engodam
e desatam os laços nos quais nos deixamos emaranhar.

Engendra-se para onde ninguém mais vai.

Faz-nos tropeçar onde ninguém mais cai.

O olhar pode ser terno
ou tenso,
resignado
ou propenso.

E tal como se olha para fora, se faz para dentro,
para o centro
da alma do poeta.
Feito seta
o olhar que afeta
também se deixa afetar.

O olhar de inúmeras faces, de inúmeros instantes,  inúmeras almas.
O olhar da calma, o olhar da chance, do alcance ou do simples olhar para o mar.

Sim, pois, para dentro ou para fora, o olhar não demora, não tem hora, nem lugar para se mirar.

Seja o olhar que chora ou o olhar que espera.
O que odeia ou o que venera.
Nada escapa ao seu universo de significar.

É fascinante a multiplicidade que nos invade ao contemplar e perceber
que o olhar que absolve
pode ser o que condena
e o que acolhe
o que envenena.

Dos tolos que não percebem, só resta a pena de
não notar
que a comunicação pelo olhar
é notória demais para se deixar passar,
pois quem olha sabe o significado e é sempre para um resultado que se lança
essa dança,
que não precisa proferir uma palavra ou som,
para significar
para alguém,
um alento,
um intento,
um lugar,

seja ele de paz, ou de guerra,
no inferno,
ou na terra,
ou em tantos lugares quantos se possa imaginar.

Quantos poemas nos dizem do olhar?

Em quantas músicas a nossa bossa,em verso, ou prosa tentou nos mostrar
que olhar é privilégio
e fechar os olhos um sacrilégio
digno de quem quer se matar?

Seja quem for, valorize seus olhos,
os espólios
que eles lhes proporcionam,
sempre emocionam
aqueles que com eles não podem enxergar.

E que sejam quantas forem as músicas,
quantos sejam os versos,
ainda que se escreva o inverso,
deles haverá o que dizer.

Pois já dizia aquele velho ditado,
daquele pobre que sofreu um bocado, porque não sabia do outro,
porque ria ao ver o sol nascer. 

Àqueles que agora perdem tempo lendo esse projeto de poesia,
que possam sentir a alegria
do entardecer e que estejam cientes
de que não há lente
que limite o que os olhos falam à vida.

Não importa o que essa gente metida
a interpretar o que sente diga
o que dos olhos se deve dizer,
nunca ninguém em parte alguma jamais traduzirá, por completo, a essência do olhar.

Júlio César Barbosa Dantas
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 19 de agosto de 2018

Releituras (a)gosto: O plano

Antes

Durante

Depois

São planos

O antes que já foi

O durante que já passa

O depois que nunca vem 

Até que renasça 

Como antes também

Planos são fumaças

Que fogo não tem


Por Jayme Mathias 

domingo, 12 de agosto de 2018

Releituras (a)gosto: A guerra dos Fonsecas

Fonseca, general experiente de inúmeras guerras, que, como todo ser vivo, encontrou vitórias e derrotas ao longo de suas batalhas. No auge dos seus quarenta e poucos anos já passou por diversas pelejas orquestradas pelo destino: possuiu duas famílias, incontáveis amores, metros de cabelos cortados, bigode sempre afiado. De todas suas vivências nada se compara ao campo de batalha. Nele o corpo se presta a um estado limite entre sua constituição e a fissura, mutilação. Não há momento mais severo, mais engajador. A trepidação da metralhadora se propaga em suas células, repetição acelerada que lhe traz o prazer sexual. O choque do tiro, da luz, da bomba, do inimigo inesperado, tudo pulsa num campo de tensões.
Aí você lendo esse texto, criando as imagens do Fonseca em sua mente dentro do lugar de combate, relacionando sua imaginação com algum filme que já assistiu ou coisa semelhante. Você consegue envolver seu corpo com esse texto mais do que o Fonseca com o campo de batalha? Não. O empenho do corpo dentro do combate é completo, a tensão dos músculos, o estalo dos ossos, o ranger dos dentes, o estômago virado.
Acho que foi na primeira quinta-feira do ano passado: Fonseca estava em um novo conflito, tudo normal, corpos dilacerados, córregos de sangue, o velho cheiro de suor e morte, mas algo estava estranho, o nosso general assistia todo o espetáculo da técnica do mesmo modo como presenciava o jantar em casa, as reuniões no quartel, o coito com seus amores. Sabe o que é isso Fonseca? O tédio. Agora sim leitor, não há mais diferença entre sua imaginação e o campo de batalha do novo Fonseca, entre o seu dia, sua vida, e a de mais ninguém. Se o prazer de viver está na luta, e se tudo agora é mais do mesmo, por que continuar na guerra? É na ausência do prazer que a falta de sentido do existir nos aparece. E haverá um dia em sua vida que eu retornarei para narrar o seu desespero também.

Paulo Victor Albuquerque
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 5 de agosto de 2018

Julho do Leitor: O indigno (PARTE 2) - 2/2

... continuação...

No fim da tarde, quando a meia lua branca estava no céu limpo, o velho pedro contou as moedas que tinha conseguido naquele dia, somou com outras tantas que tinha no bolso e percebeu que eram bastantes. Levantou a cabeça, mas somente o suficiente para que pudesse ver o caminho que tinha que andar – “A vergonha”, pensou o velho, “é como as sacas de feijão que um dia já carreguei no lombo: pesa tanto sobre a cabeça que não consigo dobrar o pescoço no rumo de cima”. Caminhou rápido, com pressa, a ponto de conseguir chegar ao armazém da cidade quando ainda estava aberto. “Senhor, quanto de madeira consigo com esse dinheiro?”, disse pedro ao dono da venda. Ele lhe mostrou, pesando na balança, o tantinho de caibros sujos que correspondia àquelas moedas. “Servem. Muito obrigado”, disse ele, preenchendo o vazio que se fazia presente naquele saco de pano. Dali, o velho pedro tomou a direção do lugar onde a sua derradeira tarefa havia de se cumprir. Andou, e andou mais, até que saiu da cidade. Tomou estrada de terra, contornou as curvas que entortavam o caminho, até que caminhou pela vereda que lhe levaria, finalmente, ao lugar. 
Chegou ao cemitério. No cemitério há ruas, há esquinas, há endereços. Mas, ali não andam carros, só há o vale de lágrimas dos transeuntes desconsolados, sem pressa em prestar suas homenagens desaceleradas naquele espaço despregado do tempo: em cemitérios só há eternidades. O velho pedro tomou seu rumo, que era certo, e dobrou as esquinas que precisava, até que chegou ao seu endereço. Olhou para o chão e viu a cruz de madeira, tão conhecida sua, enfiada na terra. A cruz era feita de duas varetas simples, imperfeitamente sinuosas, envolvidas em folhas de carnaúba no lugar onde se cruzavam. Pedro pegou a cruz com a mão e a arremessou o mais longe que podia – a força que havia feito no movimento foi tanta que, logo após fazê-lo, ofegou por alguns segundos. O homem olhou para o saco de pano, pegou-o pelos fundos e virou-o de cabeça para baixo, derramando sobre o chão os pedaços de madeira que ali havia. Percebeu, então, que precisava de pedras, algo para amarrar, algo para martelar, algo para cobrir. Recolheu tudo o que precisava na mata que havia ao redor e começou a trabalhar. Cortou, amarrou, fincou na terra, ajustou, testou a resistência – corria a noite e o homem trabalhava. Na meia noite, quando era certo o dois de novembro, uma pequena procissão entrou pelo cemitério, sendo possível escutar o canto lúgubre das cinco ou seis senhoras que procuravam o seu endereço na floresta de lápides e jazigos. As senhoras passaram pelo homem e viram-no trabalhar. Uma delas segurou o passo, quando finalmente parou e deixou que seu cortejo seguisse. “O que o senhor faz, a essa hora? Veio homenagear parente?”, perguntou ela curiosa. “Vim, sim senhora”, disse ele sem parar o trabalho. A senhora olhou mais um pouco, viu o disparate e não se aguentou, “Mas, não deveria rezar, ao invés de cortar madeira?”, disse, incrédula, ao que o homem respondeu, “Senhora, eu errei com ela e faço o que tenho que fazer”, disse ele, olhando para a velha mulher com os olhos cheios d’água. “Todos erramos, senhor, somos pó e pecado. Todos que estão aqui, os vivos e os mortos, erraram, e erraram muito. Jesus Cristo tenha piedade da tua alma e que Nossa Senhora te acuda. Conta o teu erro, e alivia a tua alma”.
Pedro vivera naquela cidade por muito tempo. Ali, tivera uma família, era esposo de Maria Cleonice e pai de Helena. O homem batia na sua filha, maltratava muito ela. Sem motivos para tanto, sacava o cinto do cós da calça e marcava as pernas da menina sem abrir mão da força de homem que lhe era disponível. Ele bebia e farreava bastante. Não batia na mulher, mas lhe machucava de outras maneiras, pois todos sabiam o quão mulherengo era pedro. Certa noite, o homem fora para o forró, conhecera uma mulher e por ela se apaixonara. Um mês depois, Pedro fora embora com a nova companheira para o sul, tentar vida nova. A mulher e a menina ficaram sozinhas. Quando a seca chegara, passaram fome e sede. Um dia, a filha reclamara tanto da garganta seca que a mãe a levara para o açude, pegara a lama barrenta de uma poça com a mão e espremera, deixando derramar o líquido preto na boca da criança. Na nova terra, pedro não fora feliz. Não arranjara emprego e a mulher o deixara para ficar com outro homem. Regressara. Fora para a sua antiga casa e encontrara apenas estranhos. Os vizinhos lhe disseram que a menina, Helena, morrera na seca, e Maria fora embora, não se sabendo mais notícias dela. O homem chorara e se desesperara, sentira culpa, sentira vontade de morrer. Desconsolado, fora ao cemitério procurar pelo sepulcro da filha, sem sucesso. O homem que cuidava do cemitério guiara pedro até o lugar onde uma menina que morrera na seca havia sido sepultada. Ele vira apenas a cruz de madeira, nada mais. Não havia identificação, não havia lápide, não havia sequer um papel, que uma boa alma poderia ter pregado naquelas varetas, com o nome da menina. “Uma criança não merece esse abandono”, pensara ele, no auge da culpa. Ali, fizera promessa e dissera que não iria descansar enquanto não construísse sepulcro decente para Helena. Procurara emprego, e não conseguira. Colocara-se, então, a mendigar. Passaram-se anos, décadas, e das moedas de todos os dias, separava uma parte para a sua promessa e gastava o resto com comida.
 Pedro contou esta mesma história para a senhora e terminou dizendo, “Aqui estou, tentando cumprir minha promessa. Sou indigno, porque abandonei minha família e vim me redimir, se possível for”. Pedro percebeu, quando terminou, que a senhora vestia um manto azul sobre a cabeça, que escorria pelos ombros até chegar à cintura. Na parte imediatamente circunscrita à cabeça, havia um círculo bordado em dourado. “Homem és, feito de pó e pecado. Acalma a tua alma, porque foste feito para errar. Que os anjos te guardem e que o Senhor abençoe tua obra. Quando terminar teu trabalho, ajoelha-te e reza um Pai Nosso e um Ave Maria. Assim sendo, ficarás em paz”. A senhora virou as costas e voltou a caminhar, indo em direção à procissão. Pedro, como lhe fora mandado, voltou a trabalhar, e, quando terminou, ajoelhou-se e pôs-se a dizer as palavras santas. Ao fim da reza, uma luz alva desceu dos céus, iluminando todo o cemitério. A luz repousou sobre aquele pobre amontoado de madeira, posto em forma de sepulcro por Pedro e tudo o que era madeira virou pedra; um lindo jazigo, adornado em mármore branco, ali se formou, como numa mágica. A obra estava pronta e o Velho Pedro teve paz.


Por Willem Carneiro
vivisseccao.blogspot.com