segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Anunciação.

 


Tu não viestes de longe estrela cadente

Pronuncias o vindouro do dia

Alumia o amanhã num caleidoscópio póstumo

Tens na chegada fria e cálida minha sina


Itinerários ramificam-nos às lonjuras

Ocupam fendas nos pés rachados

que

Assentam morada no barro barroco da modernidade


A noite descultiva, tal qual girassol a espera do dia

Ninho sacro profano, guarda-me nú

Roubaste-me a esperança na espera

Finca-me no agora sujo e arraigado da margem


És tu, ó finito, quem anuncias a senhora morte

Dama vestida à foice em sepulcro mórbido

Doas o sabor à vida, pois em queda vislumbramos o abismo

Abocanha-nos a profundeza com suas notas de desespero


Daí amar-te,

amo-te porque sei que findas

Amo-te pois não me pertences indistintamente

Amo-te pois nunca mais serás minha, já que não há amanhã

Amo-te pois sei que findo-me em teus abraços


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 19 de dezembro de 2021

Tempo em disfarce



A medida das coisas é algo humano, salvo engano, só conhecemos o que, nomeamos, definimos e mensuramos.
Uma sociedade de controle foi erguida como solução racional para o caos da incerteza, do volátil, das garantias do amanhã, do existir para além agora. Porém, até entre as coisas por nós rotuladas, há uma entidade a qual sentimos, nomeamos e quantificamos e, mesmo assim, a ela somos todos subservientes.
Quanto vale um minuto?
60 segundos, responderá o pragmático.
Uma eternidade, responderá aquele que segura na mão um ferro em brasa.
Um piscar de olhos, interpelará quem se despede de um ente querido.
É relativo, diria o cientista.
Fato é que "os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem."
O tempo pois anda em disfarce! É o mestre de todos eles. Perfeito, implacável, inevitável.
No passado, é memória, trauma, saudade.
No futuro, incerteza, promessa, esperança.
Mas é no presente que ele melhor se traveste.
Ele é aquele abraço que você não dá por estar apressado pra ir trabalhar. Sim, ele também é própria pressa.
Ele é a preguiça no dia de chuva, os 10 minutos de soneca no celular.
Ele é o tropeço na calçada, o esbarrão na madrugada com alguém que há muito não se via.
Permeia todo o espaço não humano com aquilo que nos move de maneira involuntária. As cordas da marionete. Ele é a respiração celular, a gênese e a plasmólise.
Atração cega, reação em cadeia.
Germinação e senescência.
É o respirar e a falta de ar.
O primeiro dente e o último.
O primeiro cabelo. O primeiro cabelo branco.
Orgulho e lamento.
Ele é isso e muito mais. O escape da própria definição, o próprio digitar dessas palavras parcas.
De uns dias pra cá eu tenho visto o seu disfarce... e lentamente ele tem me tirado toda e qualquer certeza.
Ao mesmo tempo em que me concede todas as respostas.
Ver o disfarce do tempo é ter noção de que não há invenção humana que dê jeito de pará-lo, acelerá-lo ou revertê-lo. Ele é o que é, mesmo sem tic tac, passa despercebido por nós a todo instante. Evento absoluto. 
Inviolável.
Impossível de enganar, não há atalhos,
"não se pode produzir uma criança em um mês, por engravidar nove mulheres."
Nas inúmeras coisas em que somos supérfluos, conseguir perceber onde reside a mimética do tempo talvez seja onde repousa a verdadeira profundidade, peripécia de poucos. Ainda assim, reconhecer que "tudo que temos que decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado" é talvez a consciência de continuar movendo os braços para não afundar em um oceano de segundos ganhos e perdidos.
Portanto hoje, antes de dormir, saude vigorosamente o tempo que passou por você ao longo do dia, e também aquele que está diante de você.

A favor ou contra 
Ele é tudo que você tem.
Você só não enxergou o disfarce.

Júlio César

domingo, 12 de dezembro de 2021

Fragmentos do cansaço e esgotamento


Pois é, mah, eu tava até pensando no que o Deleuze escreveu sobre o cansaço da nossa vida contemporânea.
Porque o cansado, enquanto conceito do Deleuze, quer dizer algo do tipo: "estou cansado de possibilidades, de escolhas, de ter que escolher".
Mas toda possibilidade permanece e se multiplica em cada escolha e o possível nunca se realiza, é largo demais para se concretizar.
Então isso retoma a ideia da sanguessuga de Nietzsche. A sanguessuga é o cientista, lá no Zaratustra do Nietzsche é, digamos assim, um especialista em cérebros.
Esse especialista, no entanto, é certo de seu ofício, ele não quer saber de todo o resto, quer apenas saber o que sabe bem.
Daí que tem-se que ter uma fisiologia desse tipo
para aguentar um tempo desse tipo e vice-versa.
Esgotam-se as possbilidades do nosso tempo e o cansado é levado ao extremo de sua esgotabilidade.

O cansado está sempre aquém das suas possibilidades. Está com 10 sanguessugas no braço, como no Zaratustra lá do Nietzsche, ele está aguentando firme, porque precisa estudar o cerébro delas e só consegue fazer isso.

O fato é que cada indivíduo se sente sempre aquém do que ele deveria ser, ele nunca está à altura do que deveria ser, estar, vender, fazer, cumprir, acabar, produzir. Daí o Deleuze falar em algum canto que eu esqueci:

"O cansado apenas esgotou a realização, enquanto o esgotado esgota todo o possível. O cansado não pode mais realizar, mas o esgotado não pode mais possibilitar." (Algum trecho de algum livro aí, p.2)
O possível está para o cansado como questão de objetivo e preferência: sair ou não de casa, por
exemplo. Essas possibilidades, essas exclusões e variações que demandam toda escolha é o que faz cansar. Mas o egotado está sempre em atividade, e é sempre para nada.
Isso nunca se conclui. Em algum momento a gente tá cansado de algo, mas esgotado é algo mais profundo, porque a gente se esgota de nada, por nada, a gente se esgota em função de nada, pelo nada e para o nada. 
Esse é nosso tempo e nós. Nós e o nosso tempo.

Jayme Mathias

domingo, 5 de dezembro de 2021

No princípio era o logos, e o logos estava com...

 Eu não ganho nada para escrever a porra desse texto.

É exatamente por isso que ele não precisa vir inteiro, acabado.

Vem em frangalhos mesmo.

“Só o resto”. Como a gente diz aqui no Ceará.

Escrevo pra nada, do nada que clama em mim. Escrevo porque morro, e o fim exige um caminho.

Poderia fazer qualquer outra coisa, procurar outro emprego, cuidar da vida dos outros, fazer um curso de informática, querer um celular novo, mas ao invés disso só quero escrever um texto novo, mesmo que ele não diga nada. Só para escrever, mesmo que seja num teclado, sem lápis ou caneta, um texto.

Não há nada que dê menos prazer em existir do que criar algo sem propósito algum, simplesmente com a nudez de estar aqui.

Eu ainda tenho esperança que um dia todos os sentidos decaiam para que nos reste apenas o nada à escrever.

A escrita tem o mesmo peso da fala?

Claro que não. A fala ocupa o espaço. A escrita ocupa o tempo. Ambos são história.

Nietzsche estava errado, Deus não está morto. Ele está caminhando para a morte, e é por isso que ele cria.


Paulo Victor de Albuquerque Silva.