domingo, 31 de março de 2019

Desafinado.

Eis em mim uma luta constante que travo com a corda do abismo.
Eu, trapezista dos agoras, aguardo o momento do derradeiro salto.
O instante preciso escapa entre os dedos e mergulho tão fundo quanto posso no oceano de lágrimas.
Agarro-me a solidão enquanto aperto as tarraxas do destino.
Quero dar o ritmo, achar o tom, sentir as vibrações do infinito, mas sei que o que me resta são murmúrios de um nada igual.
Desatino meu, já que nada sei nadar. Desatinado sou, o eu e minha consciência.
Ó vida, tu me deste a arte para querer voar, eu, logo eu, que nada sei nadar.
Não queria falar por mim, desafino, queria falar por ti.
Sei que nem tudo pode ser dito, por isso te desafino, arte.
Entre o ser da imensidão, encontrei o caminho do dito e o que dele não.
No fim tu vives, entre o ser e o não ser, instrumento que sou da tua arte.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 24 de março de 2019

Diga-me o que vê

Fecho os olhos.
Cansado de ver sem enxergar, simplesmente os fecho.
Do alto da baixeza apenas ouço.
Mastigo o nada.
Engulo seco.
O frio que corta a madrugada na sarjeta assusta pelo silêncio com o qual atinge os ossos.
O fio da meada agora escurece junto ao o cerrar das pálpebras e da negra noite. Eles não importam mais, tal como a escuridão, evanecem.
Ouço tudo e nada vejo, não obstante, enxergo.
Fora do Ouroboros, para além do bem e do mal.
Ouço ao longe a resignação da vida, diante das vestes da moral do sacerdócio.
A fraqueza disfarçada de nobreza,
enquanto aguarda silenciosamente pela eterna Vendetta.
Ouço apertos de mãos com o demônio, para então passar por eles.
Ouço rajadas de balas em livestream, em nome do nada.
Nobres detentos presidem agora apenas as grades que os encarceram.
Ouço o alastrar do câncer na fábrica de ideais.
O debater-se em vão na areia movediça.
Como o debater-se da mosca na teia da aranha.
Ouço o clamor por um vingador que não sabe sequer empunhar a espada.
Queremos a salvação, repetem.
Entregam as chaves aos cegos do Castelo.
Ouço tilintar das fichas de apostas na mesa.
E o all-in de quem não sabe jogar.
Em pouco mais de um par de horas, abro os olhos.
Esqueço os ouvidos enquanto observo o esplendor de um novo dia.
Ainda que igual, me iludo que possa ser diferente.
Me insiro novamente no ciclo sem fim.

Que saudade das minhas asas...

Júlio César

domingo, 17 de março de 2019

Ouroboros


A: - Sem qualquer sombra de dúvida, hoje eu estou limitado. Hermeticamente fechado. Paralisado no tempo. Estático. Sem criatividade e sem vida. Não sei criar e preguiça tenho de me expressar. Qualquer palavra pesa como uma multidão de significados em minha cabeça. Não há nada que eu possa fazer.
B: - Ha Ha Ha... Oh semideus, tomaste para ti a responsabilidade de muito calar! Antes disso, seria melhor vomitar nos ouvidos como fazem todos! A enxaqueca é realmente uma obra prima!

Jayme Mathias Netto

domingo, 10 de março de 2019

Ela não me disse adeus.

Tomei conta de mim. Isso se deu em meio ao serviço, engrenagem que sou. Não sei porque me atentei pra isso agora, mas me falta alguma coisa. Já me olhei no espelho, toquei no meu corpo, ouvi o meu chefe, observei seu olho sobre mim. Não me olho assim, somente ele. Ele me vigia, eu não, ou será que sou eu o vigia de mim?
Já sei, minha língua, sumiu. Puta que pariu! Onde eu deixei? Abri gavetas, armários, portas, janelas, veredas, eu perdi.
Investiguei todos os rastros de saliva que encontrei. Primeiro hospitais com seus corredores organizados por linhas sobrepostas ao chão, cores que indicam a direção - entre elas pastas, pacientes, higiene, mas a língua não estava. Depois prisão - sei lá o que ela pode ter cometido - visão panorâmica dos encarcerados, bocas famintas por gosto de liberdade, arquitetura do poder, várias línguas enjauladas. Faltava procurar nas escolas, cadeiras postas em fila, bocas sincronizadas com a leitura, harmonia da tagarelice, linguagem adestrada. Restava o IML, sala fria, açougue humano, corpos grampeados com seu número de série. A morte não liberta, ela é o último itinerário da linguagem de cabresto.
Minha língua fugiu para algum lugar bem distante daqui, onde jamais poderei encontrar. Hoje ela diz outra coisa. Agora lhes escrevo sem língua, minha triste história de abandono, falo somente o sempre igual, sei o quanto tu me compreendes. Por isso acho melhor você manter sua boca sempre fechada.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 3 de março de 2019

Serpentes e serpentinas

Metais ao longe,
fantasia de monge,
O sol mal se esconde,
e a cidade já ferveu.

Êxodo automotivo,
entope as veias da cidade cinza,
Serpentes e serpentinas,
se confundem no chão de pés sem fim.

Problemas de lado,
o Pierrot mal amado,
tem que aceitar que "não é não"
e pagar a fantasia comprada à prestação.

Bocas bebidas,
Beijos, cuspidas,
Mortes e vidas,
Começam e terminam ao som do trio.

Marchinhas, outrora inocentes, sobre carecas contentes,
agora são críticas perversas,
a um país fantasiado de mendigo.

Achados e perdidos,
Heróis e bandidos,
Dançam juntos "segurando na corda do caranguejo"

Enquanto o esquecimento banca a diversão, em um lampejo,
Silencio, atento na escuridão de mim,
me abrigo.
Pois "todo carnaval tem seu fim."

E o meu talvez nunca comece.

Júlio César