domingo, 10 de março de 2019

Ela não me disse adeus.

Tomei conta de mim. Isso se deu em meio ao serviço, engrenagem que sou. Não sei porque me atentei pra isso agora, mas me falta alguma coisa. Já me olhei no espelho, toquei no meu corpo, ouvi o meu chefe, observei seu olho sobre mim. Não me olho assim, somente ele. Ele me vigia, eu não, ou será que sou eu o vigia de mim?
Já sei, minha língua, sumiu. Puta que pariu! Onde eu deixei? Abri gavetas, armários, portas, janelas, veredas, eu perdi.
Investiguei todos os rastros de saliva que encontrei. Primeiro hospitais com seus corredores organizados por linhas sobrepostas ao chão, cores que indicam a direção - entre elas pastas, pacientes, higiene, mas a língua não estava. Depois prisão - sei lá o que ela pode ter cometido - visão panorâmica dos encarcerados, bocas famintas por gosto de liberdade, arquitetura do poder, várias línguas enjauladas. Faltava procurar nas escolas, cadeiras postas em fila, bocas sincronizadas com a leitura, harmonia da tagarelice, linguagem adestrada. Restava o IML, sala fria, açougue humano, corpos grampeados com seu número de série. A morte não liberta, ela é o último itinerário da linguagem de cabresto.
Minha língua fugiu para algum lugar bem distante daqui, onde jamais poderei encontrar. Hoje ela diz outra coisa. Agora lhes escrevo sem língua, minha triste história de abandono, falo somente o sempre igual, sei o quanto tu me compreendes. Por isso acho melhor você manter sua boca sempre fechada.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

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