domingo, 28 de agosto de 2022

Releituras (a)gosto: Altares Profanos

 



Da matéria profana ao sagrado posto em matéria

A arte sacra é o encontro paradoxal entre o corpo mundano e a imaterialidade divina

Quanto mais próximo dos espaços religiosamente ilustrados tanto melhor experimenta-se o sobrenatural

É possível existir uma matéria sacrossanta?

Toda arte é divina na medida em que, a cada obra, se eclodem outros mundos de sentidos e emoções

A arte é o limiar entre o sagrado e o profano

Ela é o barqueiro que nos leva ao Hades

Transforma mercadorias em ruínas

Ruínas em altares

A arte evoca os mortos numa marcha necromântica pela história

Dissolve mitos

Eterniza mártires

A arte representa o que há de inumano no humano

A imaterialidade na matéria

O sagrado no que é profano

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 21 de agosto de 2022

Releituras (a)gosto: Ranhuras

 Preencho esse espaço


com mais um pedaço de nada.

Encho ele com o vazio que estava em mim.

Em mais um regaço do meu avesso

me pego examinando as ranhuras do real.

Dos contrastes escancarados que ninguém vê.

Estampados na tv de led, nas manhãs de yoga e iogurte grego.

Nas noites de céu estrelado de traçante no Rio de Janeiro.

Preso em dilemas dimensionais da existência, examino a essência que ninguém mais sente. 

Tudo que encontro é angústia.

E a linha, cada vez mais indistinta, do bem e do mal.

Exercício hercúleo.

"Como o drible sem objetivo que se perde além da linha lateral".

E os espaços físicos ficam cada vez mais escassos.

Assinaturas digitais substituem momentos especiais.

Solenidades, reduzidas a QR codes

Não se ouve uma palma.

Na concha acústica sequer viva alma.

Apenas silêncio.

E está feito.

Outorgado mais um grau de imprestabilidade do sujeito 

que vê diante de si possibilidades tão próximas e tão equidistantes, inrreconciliáveis como os polos iguais de um eletroímã.

Resta tentar preencher o vazio dos outros

Para que, de alguma forma, pelo menos fique registrado

"Caso meu carro saia da estrada,

ou o avião que eu pegar decida que é meu último dia". Que quando você estiver só e assustado, não é só você que não está bem. Milhões de pessoas também não estão.

Pessoas infelizes e infelizes tem a mesma cara e se misturam na multidão de perdidos.

Mas como tudo que teve um começo, um dia esses dias encardidos encontrarão seu fim.


Já tem bastante tempo que não é apenas setembro que é amarelo. 

Mas o elo do ouroboros que une começo e final está próximo.

Em breve estaremos aptos a começar novamente.


Júlio César




domingo, 14 de agosto de 2022

Releituras (a)gosto: Antoine

 Certa vez, viajei até a cidade em que Van Gogh tinha falecido. Auvers-sur-Oise. Lá tinha um artista que escreveu na porta de seu atelier: "Aberto, pode entrar, não espere eu morrer para valorizar minha arte. assinado: Antoine". Eu sorri e ele me sorriu de volta. Ele deu com os ombros como quem diz "mas num é verdade?". Eu afirmei com a cabeça como quem diz "eu sei bem". Eu entrei e ele me explicou:

- É que essa valorização do passado é por causa do mal-estar. Se a gente separar, se uma arte dadaísta vinhesse primeiro que uma arte clássica, então para muita gente essa seria a verdadeira arte, boa e bela. O que eles estão negando é o mal-estar, não a arte. Quando criticam uma arte dos dias de hoje dizendo que não é arte, na verdade querem se livrar do mal-estar contemporâneo e não daquela forma de arte específica. Olham meu trabalho e dizem: "ele é como eu, é do meu tempo, ele vive toda essa merda, então não presta! A não ser que faça igual antigamente!"

Eu não tinha o que dizer e saí anotando o que ele havia dito, mas também não comprei nenhum quadro e ele sabia que não compraria. E eu sabia que ele sabia. Mais tarde, no final da tarde após ver o quarto do Van Gogh, o cemitério onde ele está enterrado e todas as pinturas de todos os ângulos que ele fez na cidade, eu voltei para o senhor Antoine com um café e uns biscoitos que comprei. Sorri pra ele novamente. Era o máximo que podia fazer, os quadros eram caros demais. Ele agradeceu gentilmente pela visita e pela conversa enquanto terminava sua mais recente obra. A noite chegou, conversei bem mais coisas, peguei o trem e fui embora atordoado. A arte faz essas coisas e não possui remédios ou preventivos. Afinal, por que simplesmente um artista contemporâneo é tão menosprezado? Por que tantas desculpas para não comprar seus quadros? Por que tão pouco valor damos? Como diz Paulo Victor: "é mesmo, tem como não!". Ou Júlio que diz com preponderância : "é mah, esse bicho". Aí pensando nisso fiquei até agora. Se num escrevesse isso acho que eu ia explodir, e o senhor Antoine deve fazer a mesma coisa para não explodir também.

Jayme Mathias Netto

domingo, 7 de agosto de 2022

Releituras (a)gosto: Anunciação

  


Tu não viestes de longe estrela cadente

Pronuncias o vindouro do dia

Alumia o amanhã num caleidoscópio póstumo

Tens na chegada fria e cálida minha sina


Itinerários ramificam-nos às lonjuras

Ocupam fendas nos pés rachados

que

Assentam morada no barro barroco da modernidade


A noite descultiva, tal qual girassol a espera do dia

Ninho sacro profano, guarda-me nú

Roubaste-me a esperança na espera

Finca-me no agora sujo e arraigado da margem


És tu, ó finito, quem anuncias a senhora morte

Dama vestida à foice em sepulcro mórbido

Doas o sabor à vida, pois em queda vislumbramos o abismo

Abocanha-nos a profundeza com suas notas de desespero


Daí amar-te,

amo-te porque sei que findas

Amo-te pois não me pertences indistintamente

Amo-te pois nunca mais serás minha, já que não há amanhã

Amo-te pois sei que findo-me em teus abraços


Paulo Victor de Albuquerque Silva