domingo, 26 de abril de 2020

O que é isso: a filosofia?

Sempre que estou a mercê do tempo e penso em nutri meu dia com bons 
pensamentos, afinal é burrice só pensar nas coisas ruins da vida, eu penso em um dia na UECE. 
Eu tomo de volta aquele ar de novas descobertas diárias, aquele cheiro do pé de manga que parece de suvaqueira, aqueles locais caindo aos pedaços que parecem ruínas da Grécia antiga, alimento minha mente com essa 
dádiva e me espanto como eu me sinto bem após isso. Essas imagens só me fazem bem!
Um dia no pátio da UECE em meados de 2007 ou 2008 sei lá, ou até 2009, 2010 
pela manhã, principalmente, era comum filosofarmos sobre tudo e falarmos de todo pensamento ocidental numa só mesa, achando que poderíamos resolver muita coisa. Aquele clima de manhã, quando a mente ainda está um pouco desconexa da realidade, era especial. 
Bastava algum professor faltar para a gente filosofar. Se tivesse aula era melhor ainda, a aula e os professores eram os combustíveis de nossas ideias. Talvez a gente resolvesse mesmo vários 
problemas filosóficos nas conversas, depende da narrativa. Mas quem via a gente perambulando ali ou sentados, chegava para debater mais e mais e a conversa não tinha fim. 
Mas filosofar, todos ali filosofavam com certeza. Quem viveu nesse período por ali, via que o pátio, a sala, o auditório, a cantina, o bar, a quadra, a fila da xerox ou o refeitório esbanjava filosofadas:
- Ei doido, tenho lido Terence Mckena.
- Quem mah?
- Terence
- Terence o que, tá chapado é? 
- Mckena
- Ah, sim. Sei quem é não.
- Aquele doido que disse que há uma hipótese plausível do símio chapado. É algo entre o elo perdido da evolução dos primatas.
- Sim, sim, da Califórnia né? Tou ligado, é irado. Eu vi que até os golfinhos se 
chapam com baiacu, né? Os elefantes também lá na África, comendo aquela frutinha... Isso quebra altos preconceitos de que a natureza é pura necessidade. Ela é liberdade.
- É mesmo viu. Aí mah ele diz que tinham primatas que se chapavam em vez de só 
fazer a necessidade da natureza, justamente isso. Esses primatas se chapavam e foram responsáveis para outro desdobramento da inteligência que não só a inteligência cotidiana.
- Ah mah, então foi tipo o começo do “espírito”. Da noção que a gente tem de 
alma etc.?
- Não mah, o Nietzsche no Humano Demasiado Humano dizia que era o sonho né? Você sonhar com um morto, fazia na mente mais remota da humanidade pensar que havia outro mundo. Mas olha a perspectiva do cara, olha aí doido.
- Vixe aí lá vai Platão, Aristótles e a galera toda pensar em dois mundos possíveis. Caralho, o que é a metafísica doido? É bonito oh.
- Tu é doido, demais!
- Mah metafísica é a poesia mais bela que existe, porque há um gozo em compreender e sentir. Mah, é a poesia mais bela que pode existir. Mas vê o que vou te dizer.
- É oh, a metafísica é massa, mas, sim, o que tem o Terrence Mckenna? 
- Ele fala sobre a linguagem. Que a linguagem determina a narrativa do mundo. 
Na verdade, ele pega uma autora que esqueci o nome. Mas ele pega esse argumento e diz que a narrativa que a gente acessa sobre o mundo, que é rodeada pela linguagem, importa mais 
que o próprio mundo. A nossa narrativa foi acostumada ao raciocínio mecânico, e colocou de lado os xamãs, as tribos e vários povos que tinham como narrativa um mundo além desse, mas não como a gente tá acostumado. Era um mundo que é acessado pelo êxtase. Outra metafísica 
vamos dizer assim. Vários povos e tribos tiveram seus meios de êxtase: abstinência sexual, plantas alucinógenas, respiração, rituais com tambores. 
- Entendi, caralho mah faz sentido demais.
- Mas, aí, mah, olha aí, ele diz que quando experimentou a ahyuasca ele foi com 
essa narrativa ocidental civilizatória e científica, masculina e o escambal, tomou, acessou o êxtase e viu o feminino, caralho, e viu toda essa desconstrução que para ele foi mais real que essa narrativa racional. Ele viu guerra de conexões energéticas que achava que a ciência explicaria, mas era mais real, via espadas de deuses e xamãs como energias etc. Não era uma questão de raciocionar sobre isso, mas de sentir. E aí esse êxtase pode ser acessado pela arte 
também.
- Vixe, aí o Baudelaire entra com tudo aí né. O cara é um Padre praticamente. Baudelaire força a barra e quer que esses êxtases sejam acessados pelas vias sóbrias, ocidentais. Vai se fuder Baudelaire.
- É, vai se fuder Baudelaire.
- Oh comédia viu. Ai, ai!
- Num é mah... Oh comédia. Sim, oh, eu tava pensando aqui sobre essa coisa da 
narrativa. Quando a gente fala “Se eu tivesse...”, por exemplo, é como se tivesse usando uma 
ilusão gramatical com a qual medimos as condições de agora e a deslocamos para outro tempo que nunca existiu ou existiria diferente do que agora é. De qualquer forma nunca sob as mesmas condições com as quais pronunciamos aquelas frases.
- É mah, a nossa narrativa pessoal determinaria então quem somos também.
- É. Caralho. Isso faz sentido demais.
- Faz viu.
- Faz.
- Eu vou escrever um texto.
- Eu também queria escrever mais, muitas ideias mah, mas não me enquadro 
nessa coisa de artigo, produção.
- Nem eu oh, eu queria algo livre.
- Bora fazer uma revista doido, um fanzine.
- Bora doido.
- Bora.

Jayme Mathias 

domingo, 19 de abril de 2020

Cinzeiro

A memória do tempo era um fardo para Maria. Na sala, ela espera. Sentada no sofá com o controle na mão procura o passado, onde o tempo não corria. “Antes tudo era quieto, calmo como cadeira de balanço na calçada. Tenho saudades do tempo”, conversa baixinho com a lembrança. Em cada canto da casa há recordações do que era. O livro de cem anos de solidão do marido, ainda com seu cheiro - fica no lado esquerdo da tela. A xícara da melhor vó do mundo - fica sobre o balcão da cozinha próxima da garrafa de café. O lenço para enxugar o olho que tanto lacrimeja, dado por sua filha - fica no bolso direito do vestido, que fora comprado em família na última reunião de natal dois anos atrás. Na tarde, 15 horas, liga o radinho presente de casamento do primo na estação favorita - foi posto por Joaquim no criado mudo que ficava do seu lado na cama. Ao chegar de noite senta na poltrona favorita do filho para assistir as velhas notícias da televisão e fumar seu cigarro. Antes de dormir veste seu pijama amarelo costurado ao longo do mês enquanto ouvia a programação do rádio. Deita sobre o lado da cama do seu falecido esposo, agarrada ao que sobrou de Joaquim.
No outro dia tudo era igual. Maria temia fazer algo diferente e apagar todo o mundo ao seu redor. Há dias não saía de casa, nem podia. Cada território deveria ser remarcado partindo do quarto à cozinha, do banheiro à sala, do controle à reminiscência. O hábito não deixava esquecer. “Amar é guardar na memória”, sussurrava o fantasma de Joaquim ao seu ouvido. Na medida em que essa ideia crescia, Maria era consumida pela rotina. Logo passou a se confundir com os móveis e os lugares, tornando-se um mobiliário só.
Amparando os territórios de suas recordações, Maria passou a alimentar o eterno retorno de si mesma. Tanto o apego aos rastros do passado, quanto a cristalização do seu eu mais pedante, a fizeram esquecer o peso do tempo em sua memória. Os dias estavam distantes, imensuráveis, irreconhecíveis. O agora são as cinzas que lhe restam entre cada tragada no cigarro. O aqui é seu único lar, além de qualquer mundo possível. A história repousa em seus rastros. Daí em diante Maria habita o sofá, o livro, a xícara, o lenço, o vestido, o rádio, a cama, o cigarro, o controle e as cinzas.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 12 de abril de 2020

Illusion Serinus

Ergui para mim um ilha de cartas.
No pacífico sul da ilusão.
Ao pé de uma espatódea empilhei carta por carta, edifiquei uma a uma por década e meia...
De tão sozinho que era, criei também um amigo imaginário, na forma de um lindo canário, que me acordava todo dia a ouvir o seu canto.
Vivia solto, livre, dourado.
Fascinado pelo bater de suas asas e sua liberdade, a ele me prendi. Em seu canto me perdi assim como na incerteza de quem um dia fui. Nas frias noites, suas asas eram manto que me enrolava a alma, me trazia a calma de não ser mais só.
O EU passado, não queria mais,
era apenas EU, sozinho. O que importava agora era o passarinho, que de mim surgira, mas tão melhor era.
Continuei empilhando as cartas da minha ilha, era torná-la maravilha para o meu canário desbravar, para que ele sempre ali estivesse a cantarolar alegre, satisfeito. Que não encontrasse nenhum defeito, que o levasse a levantar vôo pra qualquer outro lugar.
Criatura minha, despejei nele toda alegria que me sobrava, meus planos expectativas passaram a ser seus. E como "és responsável por tudo que cativas", criei para mim mesmo um cativeiro do EU.
Como a lua com a terra, passei a orbitar em sua volta. Até que um dia como outro qualquer, sem nenhuma explicação, tsunami, ventania, minha ilha da magia, bomba relógio de teimosia, enfim desabou.
Todo o meu mundo planejado para o canário sucumbiu, olhei para cima e percebi, que no bater de suas asas meu mundo ruíu.
Sua plumagem dourada estava branca, lívida.
Me olhou uma última vez consternado como quem diz: "eu não posso mais."
E se foi, como uma brisa passageira.
Sequer sobrou uma pluma que a ele me remetesse.
Triste cenário, diante dos meus olhos se desfez.
Sem ilha, sem cartas, sem canário, sem aviso do soco que me atingiu a alma. Perdi a tez.
Preferi ser um outro que eu mesmo, e o outro se desfez perante mim. Como um personagem de jogo, que some ao desligar um console.
Menti para mim mesmo por todo esse tempo.
Nada me sobrou a não ser a lembrança do canário, saudade de alguém que por muito tempo amei e nunca existiu, remo no oceano, em busca de um pedaço de terra que seja real. Ainda que imerso nesse mar, em nada me sinto envolto, sigo a flutuar, preso embora solto, condenado ao que dizia Mia couto que o "Morto amado, nunca para de morrer."
Em dúvida entre nadar ou simplesmente afundar,
Miro meus olhos ao longe, algo se desenha em pé...

A espatódea era real.

Nado.

Júlio César 

domingo, 5 de abril de 2020

Fogo


Antes, o fogo, hoje um aquecedor a gás
Antes as paredes de uma caverna, hoje teclas virtuais
Antes a própria caverna, hoje um quarto
Antes a caça, hoje o supermercado
Antes grunhidos, hoje linguagem
Antes o riso, hoje bobagem
Antes Homo, hoje nem Sapiens
Antes estranhos, hoje se batem
Antes a flama que cria, hoje destruição

Sicrano, ano 58.045 A.C, estava lá onde se chama hoje Serra da Capivara, Piauí
Um dos maiores acervos pré-históricos do mundo
E pré-histórico quer dizer que é um período de maior acervo artístico cultural que a humanidade já teve
Sim, nem mesmo após a civilização,
Mesmo depois da civilização,
Passamos mais anos sendo artistas do que de fato sabemos,
Sapiens, Sicrano enveredava no meio do mato
Hora de caçar uma capivara gigante com seu bando
Devia ter uns 3 metros e uma tonelada de carne
Os habilidosos na arte do assovio e grito ficavam acocorados para confundir o bicho
Sicrano arrastava a mão na areia, metia na cara pra ficar da cor das pedras
A capivara cavalgava em direção à rocha que piava com os bichos sapiens
Lanças e mais lanças arrebatavam o bicho encantado pelo assobiar artísticos daquela rocha
A capivara seguia inebriada pelo som daquelas canções de assovio
Refeição cozinhada artisticamente, ponta de lança feita artisticamente, bicho morto artisticamente
Até os sapiens, a capivara, arrebatada, carcomida, só esqueleto eram artísticos
Sicrano pega a sua parte, a sua arte, volta pra caverna onde está há algumas gerações ali, sem mudar
Era um conforto sem igual, aquela caverna bem cavada, picada, feita
Sicrano aprimorou ali o que seus antepassados faziam
Seus antepassados eram tão grandes quanto os antepassados nossos
Mesmo de inúmeros outras espécies homo extintas, cruzamentos e sacríficios
Eles tinham a mesma quantidade ou muito mais antepassados que nós
E Sicrano vê o seu tropeço ainda quente, quando tinha ido meter a lança fatal no bicho
O sol escaldante, ele vê no rastro o próprio desenho do animal que fora abatido na caça
Entra na caverna junto com o resto
Todos em volta da fogueira artisticamente trabalhada
Felizes? Não, tensos. Sabem que haverá revide
Capivaras gigantes revidam no ponto fraco preciso
Logo, logo vão perder muitos ou todos e já era
Sicrano limpa suas mãos de sangue na caverna calcária ao lado da fogueira
Todos tocam timidamente e assoviam, medrosos e ansiosos pelo dia seguinte
De novo, o rastro vem na cabeça de Sicrano
De novo, Sicrano vê agora o animal abatido na marca do sangue na parede
Mas agora é de perfil
O seu coração na verdade pulsa seco
Sai pela boca, está com medo daqueles grunhidos que ouvira agora há pouco
Caçou mas não tem fome
Mostra pra outro, pra outra, pergunta se ali vêem o mesmo
Uns dizem que vêem a felicidade da Capivara rindo
Outros dizem que vêem o animal enfurecido
Outros apenas o animal dormindo
Na imagem do sangue, durante o banquete, cada um diz ver algo no Rastro e na Marca
Sicrano havia sido ensinado de geração em geração uma técnica
Fazer a forma na parede calcária antes de aplicar tinta
Uma parede maleável como a realidade que vive
Moldava e fazia flutuar as técnicas aprendidas
Ele começa a anatomia dos bichos
Molda o muro e faz dele carne
Exagera o falo dos Sapiens para compensar o medo
E para exagerar mais ainda, Sicrano coloca a capivara anatomicamente pertinente no meio daquela fogueira
Sicrano e muitos dos seus jamais pintaram a cor verde
Daltônicos? Superstição? Capricho artístico?
Sicrano pintava falos e capivaras, tatus e preguiças muito maiores que eles, simples sapiens em volta da fogueira
Quando vi Sicrano a primeira vez, ele tinha acabado seu afresco
Colocava para fora o medo, a boca seca, o coração pulsante,
A arte era coletiva, tal qual pichar muros
Ele dominava em sua criação não só o fato
Não só a emoção e o medo de perder tudo
Não só os falos e a capivara gigante
Ele também homenageava o animal
 A dor una de existir
Ele era uno com o sofrimento
Sicrano tal como eu criava para entender e entendia para criar
Quando vi Sicrano a primeira vez, cerca de 58 mil anos atrás
Ele me disse apenas com imagem tudo isso que conto agora
Sicrano tinha lágrima nos olhos
Eu tinha lágrima nos olhos
Eu tinha 8, Sicrano 58.004 anos
Ele cutucou com um galho e me mostrou as marcas na parede
Sabia que queria me perguntar o que eu via
E hoje eu sei que eu via a liberdade
Hoje eu sei que eu via a criação
A partir dali nunca mais parei de criar
Sicrano sorria e saiu junto com a poeira das andorinhas, às 17:35 no alto do Boqueirão
A marca de Sicrano tá até hoje lá
Eu, tal como Sicrano, andei filosofando, lendo, escrevendo, pintando, caçando
Eu, tal como Sicrano, andei criando, porque no fim é isso que mais importa
E só hoje pude, tal como Sicrano, meter a mão na areia, me disfarçar, abater, interpretar uma marca e perguntar o que os outros acham.
Só hoje, me toquei, tal como sicrano, que algo pulsa em mim numa vitalidade de milhares de anos.
E, tal como sicrano, nesse texto, tou homenageando, me distanciando, vivisseccionando animais, feridas, dores, momentos, memórias. Tal como Sicrano fazia com os seus antepassados e, a partir dele, criei algo em mim que não cessa de criar.


Jayme Mathias