domingo, 24 de fevereiro de 2019

Eu só queria destravar a bicicleta

Eu só queria destravar a corrente da bicicleta. A bicicleta. Presa. A corrente que prendia a bicicleta. Ninguém sabia onde tava a chave. A chave. Manicael, onde tá a chave? Erasmo, cadê a chave? Eu queria só destravar a bicicleta. É uma chave bem pequenininha, assim, desse tamanho e pronto. Deve tá lá dentro, dizia Dolores, falando para eu entrar na casa do General Fonseca. Fui. Quando voltei não tinha bicicleta nenhuma. Tinha apenas a raiva. Voltei de volta e o lugar tava fazendo escândalo. A placa tinha vergonha, não queria dizer quando o ônibus ia chegar nem quando ia sair. Mas também não tinha carro passando. Eles tavam tristes. Quem? Os carros. Fui para casa de ... esqueci o nome. A casa  disse que se chamava medo. Mas mesmo assim eu fui. Ela disse que eu voltei para não ir.

Jayme Mathias Netto

sábado, 16 de fevereiro de 2019

O corredor

Sonhei que estava dormindo. Levantei de lado para diminuir o peso da cabeça. Limpei a boca com a mão. Olhei o espelho. Andei no corredor. Expulsei o cachorro. Fechei a porta do banheiro. Sentei no vaso sanitário. Tomei uma ducha com o boxe fechado. Escovei os dentes. Fiz café. Me enxuguei. Comi pão com o café. Escovei os dentes. Vi televisão. Expulsei o cachorro do sofá. Tirei a toalha. Vesti a roupa. Mudei o canal. Calcei os sapatos. Saí no corredor. Escovei os dentes? Fechei a porta. Entrei no carro. Abri o carro. Sai do carro. Entrei no corredor. Sentei em frente ao computador. Tomei café. Recebi os papéis. Escrevi nos papéis. Dei bom dia. Passei pelo corredor. Topei na calçada. Expulsei o cachorro. Olhei as vitrines. Encontrei ela. Dei um beijo nela. Escolhi pela vitrine. Entrei no corredor. Almocei macarrão. Tomei café. Dei um beijo nela. Olhei o movimento dos carros. Lembrei do trabalho. Voltei ao corredor. Sentei no computador. Entreguei os papéis. Dei boa tarde. Fui chamado na sala. Olhei pra janela. Vi um cachorro nas nuvens. Atendi o telefone. Saí pelo corredor. Falei até amanhã. Pilotei o carro. Vi uma criança na janela do lado. Cachorro com a cabeça pra fora. Verde. Vermelho. Luzes nos retrovisores. Desci pelo corredor. Dei um beijo nela. Falei boa noite para todos. Arranquei a coxa do frango. Bebi pra desentalar do riso. Batemos as taças. Dei um beijo nela. Voltei pelo corredor. Sentei no banco. Luzes nos olhos dela. Corri pra abrir a porta. Esqueci a chave por fora. Caí por cima dela. Sorri com os olhos dela. Expulsei o cachorro da cama. Tomei café. Passei pelo corredor. Tomei banho com o boxe fechado. Escovei os dentes. Encontrei a chave do lado de fora. Escovei os dentes? Onde está o cachorro? Apaguei as luzes. Sonhei que estava acordado.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 10 de fevereiro de 2019

E se...

E se a verdade for a simplicidade falha daquilo que cada um tem para si?
Se o céu for o véu que encobre a vitrine da miudeza do mundo?
E se o complexo for o simples e o nexo sem sentido? O herói o bandido?

E se o que é bom for aquilo que me agrada?
O quão egoísta sou?

E se for a ordem uma tentativa inútil de fechar os olhos ao caos?
Se for a bonança, no fim, só mais um temporal?

E se Sócrates fosse o sofista?
Se cada um for o artista e a tradição só mais um bando de ultraconservadores?
Se os leigos forem os doutores? Os lobos os pastores e o silêncio o grito?
A crença o mito? E o falado o que não foi ainda dito?

E se nascer for a morte?
O azar for a sorte e curar for um corte que não cicatriza nunca?

E se o lado certo for do avesso?
Se o fim for o começo de um "eterno para sempre?"

Se o tudo que eu sei for o nada que eu sou?
Se a Bossa Nova for o Rock'n Roll?
Se o "não sei de onde venho" for "saber onde vou"?
Quando é que eu vou chegar?

Se a mudez for eloquência e a religião uma ciência? Quem são os sábios do nosso tempo?

E se o dia for a noite? Se o carinho for açoite, sangrar é amar?

Se o sertão for virar mar?
O fim do mundo nunca se acabar? O que é que fica pra depois?

E se a polícia for facção?
E a fé for razão? Se usar a cabeça for agir com o coração?

Se a esquerda for direita?
Se o aborto for pró-vida e a facada uma cuspida na cara de quem se perdeu na estrada do inverso?

E se o sublime for o trivial? Se o bem virar o mal?
E se aquele racista, depois de tudo, for o normal?

Em quantas encruzilhadas perdemos o caminho de casa?

Vital é, pois, que busquemos a verdade, porque se o cedo for tarde
e a única certeza for a dúvida,
a vida não passará de um eterno
"e, se..."

Por Julio César Barbosa Dantas

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Toda ânsia dos nossos dias


Dos dias
Do Dia-a-dia
Perpassam como ecos...
A tara
Não acaba!
O querer sentir
O vender o sentir
O sentir
sem ti.
Algo que me falta,
Pois tudo é disponível
Posso
tudo,
mudo
o mundo!
Posso
nada,
a falta
fala!
Alto num salto da sensibilidade dada
O dado, acessível
Disponível
Faz-te arte,
Face a face,
Fácil
e tudo é nada.
Consumível,
Desprezível,
Descartável Descartes,
O eu não consome, sente.
O acesso ao plástico,
Ao fantástico, ao fanático
Frenético, dietético...
Só há pausa no aplauso pelo qual abrange-se o acesso à prostituição do disponível.
A indiferença é ofensa ao consumível,
mas também acessível.

Por Jayme Mathias