domingo, 27 de dezembro de 2020

Meta



Dirigindo-se à entrega de um texto para concurso literário. Inédita era essa obra tão especial. Fazia dele um verdadeiro poeta. Um verdadeiro artista e sentia-se bem com essas denominações. Excitado, vinham imagens na sua cabeça, a pulsação de um coração que acompanhava as imagens que advinham. A sensação de ser alguém que ele tanto admirou, leve como tudo aquilo lhe inspirava, feliz como tudo aquilo o felicitava. 

Pensava em Kurt Cobain e seus olhos inspiradores, em Jim Morrison e sua serpente xamânica, ia até John Lennon como um símbolo. Descia até à braveza de um Beethoven surdo, à inocência de uma criança pequena e compositora que se chamava Mozart. Cambaleava no pacto de Goethe, encaixava suas palavras como Shakespeare, revoltava-se melancólico como Fernando Pessoa. Pegava-se em pensamentos que compunham dramaturgias como Ariano Suassuna. Mistérios como Poe. Sacadas de um Manoel de Barros, ousadia de um Oswald de Andrade, beleza angustiada de uma Lispector. Daria entrevistas como um Ferreira Gullar. Seria intempestivo como um Hemingway. Louco como um Burroughs e cru como um Henry Miller. Ou qualquer outra coisa de importante que o caro leitor queira considerar: Buda, Jesus, Sócrates ou um desses poetas metafísicos. 

E o fato é que muitos faltavam à excitação daquele dia em que depositava sua esperança em ser reconhecido, como reconhecera dentro dele o que cada um que ele admirava representava. 

A secretária que estava recebendo a papelada para o concurso literário entregou-lhe um formulário: 

- Basta o senhor preenchê-lo e depositá-lo na caixa verde ali ao lado. 

Indicava a moça como se tudo fosse tão simples como escovar os dentes, ou como amarrar os cadarços. Simples como enviar uma carta, simples como dizer a quem ama que está com saudades, simples como um enterro, simples como um parto ou um casamento. Simples como abrir o coração e escrever tudo que escrevera. Simples como ser um poeta! 

Apoiava-se no balcão para preencher o formulário. Preenchia sem pensar duas vezes as partes relativas aos dados pessoais básicos. Titubeou na parte concernente à profissão. Ficou de preencher depois. Tomou fôlego. Seguiu em frente, tinha que dar certo. 

“Pseudônimo” 

Pensava o que preencher ali. Achou que podia ser ele mesmo, hesitou, pulou para a próxima lacuna inquisitória. 

“Defina em poucas palavras suas características artísticas” 

Foi a pergunta mais inconveniente depois de tantas outras daquela inquisição. Parou tudo e se deteve em reflexões sobre o assunto. Nunca havia feito aquilo na vida. A mesma sensação que temos quando, bem longe, lembramos-nos do dia em que nos perdemos de algum adulto que nos acompanhava: pais ou não, no centro da cidade, num supermercado, numa feira, num parque, numa praia, numa rodoviária, num aeroporto, no meio do mar, a onda levando pra lá e pra cá sem colocar os pés no chão, no meio do rio levado pela correnteza sem ter um galho ou uma raiz pra meter a mão ou qualquer outro abismo que o leitor queira. 

Perguntou-se o que lhe definia sinceramente. Sentia medo de não saber a resposta, de não mais ser concebido como poeta, artista ou pensador. Acanhado, tentava ultrapassar os limítrofes do que poderia ser uma boa resposta para conseguir ser aceito naquele concurso. 

Aglutinou proposições, justapôs palavras, tentou ouvir música nos fones de ouvido para se inspirar. O coração palpitava como se um passo errado o desafiasse a não ser o seu próprio sonho, a não ser ele mesmo de verdade, a não ser sua própria verdade, a não ser seu próprio sucesso e seu próprio fracasso, como se pisasse em cascas de ovos, como se num campo minado estivesse, como se estivesse numa corda bamba em um abismo muito alto, pisou errado adeus, ou qualquer tipo de reprovação que o leitor exageradamente queira. 

Nada fazia sua mente se adiantar em uma resposta segura que satisfizesse tanto ele mesmo como o concurso literário, então veio escrever isso que apresento agora. Aliás, talvez mais importante que concursos literários. E esse personagem que hoje nem sei o nome, apesar de tudo, segue sem saber o que é. E talvez a grande meta seja nem querer saber. 

Jayme Mathias Netto 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Realidade turva


   




09 de dezembro de 2020. Carro parado no sinal vermelho. Bairro Benfica, Avenida Imperador, cruzamento com a rua Antônio Pompeu. Dezoito horas e sete minutos na noviça noite nublada. No céu sem estrelas, cinco luzes brancas, cinco vermelhas e uma amarela, resumidas a postes e sinais de trânsito, todas cobertas pela película de vidro do para-brisa manchado de chuva frustrada. Estacionada atrás da imagem está minha esposa, à sua frente, nada além da própria realidade turva. No horizonte, árvores verdes frondosas misturam-se com o azul escuro do firmamento. Um carro vermelho dobra na esquina, do outro lado um carro pequeno segue um ônibus. À medida que o olho corre, pontos ancorados de luzes preenchem a distância num banho de sangue fantasmagórico das trilhas metropolitanas. A calçada espera o humano, o piche acolhe as máquinas. Fios altivos simulam trapézios mortais com redes elétricas, iluminam a noite artificionalizando o que seria o dia na procura de não interromper a labuta do homo faber. O precioso instante, o click mortal numa fração de segundos desvela a relação simbiótica, sem humanos - apenas seus rastros -, entre as máquinas e as plantas, pois quem revela é a lente da câmera.

O foco da fotografia está no painel, no para-brisa ou na rua? E o meu foco, é meu ou da máquina fotográfica?

A imagem fixada pela câmera nos permite voltar ao seu olhar, percorrer a foto, despertar para seus detalhes efêmeros, vislumbrar a fração do segundo. O que vejo? Detalhes do fragmento, do momento preciso em que a fotografia foi realizada. Vejo o que minha consciência, no instante do flash, não viu, um mundo inconsciente estagnado no retrato dos agoras.

Do lado direito um prédio contendo, o que acredito ser, um outdoor. Nele anunciam-se promessas de um futuro próspero. Na frente do ônibus, um motoqueiro freia bruscamente devido a um cão desatento. A senhora no carro vermelho escuta seus louvores preferidos no rádio para suportar o engarrafamento. O homem-máquina pilotando a moto no canto esquerdo planeja subjugar o sinal vermelho, a seu comando. E eu, bem, eu tenho a impressão de que já estive neste lugar antes.


Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 13 de dezembro de 2020

Poetas são...

 Poetas são pontes que ligam dois abismos.

Teleférico entre montes.

Fontes do livresco sem o livro.

Pontos críticos de um abalo sísmico.

Algoritmo que flutua entre verdade e opinião.

Falso silogismo entre escrita e noção.

Sentido sem direção.

Livre escoar da vida pelos cantos,

nos detalhes esquecidos,

nos prantos que secaram e ninguém viu.


São veneno e cura do mesmo mal, elixir amargo e mel doce para a dor banal do vazio.


Poetas são causa sem motivo

São choque sem aviso

e entram sem pedir licença,

ou nem chegam a dar o ar da graça.


São certeza que mata dúvidas e conferem nova vida às células que vivem túrgidas de solidão e acham que por isso estão sós.

Para depois engodar o peito em outros nós e dar a convicção de que nascemos e morremos sozinhos.


São mais de um mesmo que raramente se encontra, mas que facilmente se acha se olharmos com mais atenção aos detalhes.


Poetas são quando convém,

falam quando condiz

Àquilo que conduz ao alvorecer do espírito,

à conclusão de que "não precisa morrer pra verter luz"

nem ser pregado numa cruz online

para que a sua verdade seja ouvida.



Poetas são brasa que marcam na alma eterna cicatriz,

ou mesmo entram pelo ouvido e saem pelo outro.

Voltam pelo nariz como o ar para aqueles que respiram arte.

Um todo, em partes.


Universo particular,

partícula universal,

Região abissal do sentir.


São imperfeições perfeitas

Atmosfera rarefeita para o pétreo

Um sol prestes a se por e ensaiar o nascimento

Amantes da verdade e escravos da mentira

Soco seco na barriga

Projétil de alta precisão e calibre.

O deixar livre a ponta do lápis e dos dedos.


Malabares de palavras

Lavradores de fulgor

Fazedores de pirraça

Lavadores de amor.

Humor que muda a cada linha

Calafrio que percorre a espinha

e termina no cortex central.


Não almejam lucro, nem lacre.

Seu recitar está além das eras,

são o massacre daquele que venera a palavra estática.

Inimigos e amantes da gramática, somam versos onde um mais um é tudo, menos dois.

Fragmentos de um mosaico, matemática do caos.

Festim que fere de morte o orgulho do formal e do cômodo.


Poetas são e a felicidade fugaz inveja,

pois eles são brecha por onde passa o que permanece até depois de saciado o próximo desejo.

Acometem como num lampejo,

mas quando acertam o ventrículo, não há folículo na pele que não sinta sua presença.


Poetas são tanto e tão pouco

Que eu poderia escrever este poema para sempre ou não ter escrito uma letra ou pensamento solto sequer nesse bloco de notas.

Tantos e tão poucos

Hoje tidos como loucos

Pois usam da palavra para viver


Ainda assim. 

Eles permanecem.

Pois em hipótese alguma meramente estão.


Poetas são! E sempre serão.


Júlio César

domingo, 6 de dezembro de 2020

Desperdício

No desdém que o cotidiano tem ao homem de pensamento, houve certa vez uma roda de conversas.

Estavam todos a gabarem-se de seus afazeres e ocupações que trazem o dinheiro, pois dessa forma é que todos querem muito poder. 

Cada qual fervilhava no ardor quente das gabações e vantagens a serem contadas, esforçavam-se para chamar atenção do quanto eram aplicados em suas profissões. 

- Sabe, fui promovido ontem e o chefe vai dá um churrasco pra gente comemorar lá na firma.

- Uau, isso merece um brinde com Chivas.

- Uau, é mesmo. Vou buscar.

E, por detrás das amarguras reais, um homem de pensamento apenas pensava:

"Quantos demônios ainda terei de expulsar de dentro de mim para que essas pestes saiam da minha vida? Quantos ainda tão desconhecidos vão me atormentar? Quero expulsá-los do nada para lugar nenhum para ver se ao menos sangram por algo que não seja preço e números. Não observo muito bem nenhum deles, mas existe ainda luz até no nada?"

No entanto, como que encerrando o assunto, aquelas cabeças voltaram-se com desprezo para ele que ao menos aparentemente e inocentemente nada fazia. E  passaram a fazer valer o mal-estar de seu ócio. 

Ao que o homem de vita contemplativa, para usar um termo mais filosófico, afirmou docemente - com ar de sobriedade de quem trouxe aqueles pensamentos de cumes bem altos e cheios de neve - e como quem odeia com modéstia suficiente para ser um guerreiro em palavras. 

- Bem, eu vos responderia, não faço eu nada? Pois bem. Ousem, sair dessas fervuras egóicas, ousem sair de suas comodidades que querem tanto encobrir com finanças, isso que em excesso torna evidente a vossa insegurança. Ousem tecer em seus espíritos a liberdade, não essa de proatividade que tanto esquentam vossos couros com chibatadas abstratas que vocês se orgulham com o nome de trabalho, mas parecem mais macacos no trono cheio de lama! Ousem ministrar não respostas, afinal vocês têm muitas, mas perguntas silenciadas por conhecimentos que beiram a loucura. Ousem admitir a náusea da descoberta de uma ideia em seu corpo e, depois de muito tempo, ousem aquela suprema alegria, da ideia de gerar um modo de vida próprio, um valor próprio. Ao fazerem isso verão que jamais quem assim vive está de férias, jamais encerra o ato de pensar, jamais deixa de incomodar-se nem mesmo nos seus sonhos. Verão ainda que não temos quase nenhuma recompensa material. Nada que possam dizer férias. Nada que nos faça assumir de fato o orgulho de sequer "ter algo", pois percebemos o domínio que nos encobre e que nos utiliza como instrumento, bem como as entranhas capazes de nos fazerem forasteiros. E verão que tão hábeis para a guerra somos também hábeis para a fuga.

Calaram-se todos, desconversaram como covardes. Quem é lá debaixo não sente o fogo da coragem, querem sempre a novidade. Eles simplesmente mudaram de assunto. Enquanto ele ainda pensava:

"A vida nos pega pela mão e nos ajuda a entender da melhor forma que podemos, ela nos deu a melhor forma que podemos e o que há por aí é muito desperdício."

Jayme Mathias Netto