domingo, 30 de dezembro de 2018

C'est fini

Já faz um tempo agora...mas é mal de ser humano (incluindo eu) entender que tem hora pra começo e hora para o fim.
É mal de ser humano se apegar à finitude do supérfluo. E, ao mesmo tempo, negar aquilo em que reside a amplitude da nossa medida, aquilo que a priori causou inveja aos moradores do Olimpo e agora tem tornado a vida egoísta, diminuta, um garimpo cada vez mais destituído de beleza singular. A liquidez do tempo escorre desapercebida pelas mãos do devir, enquanto se derrama no balde imaginário que sustenta as recompensas da transcendência. Fé e virtude conduzem a humanidade às promessas de uma suposta eternidade .
E cada vez mais nos esquecemos de sentir o hoje, de viver a brevidade do instante humano, escorados em uma criação mental, um "porvir", um "amanhã" unicamente metafísico. Nessa espécie de Matrix não há um Neo, senão nós mesmos. Nessa "realidade" enxuta, versão beta, aquilo que é de importância complexa passa para uma espécie de plano diferente deste, "onde teremos entendimento sobre todas as coisas", restando-nos voltar a atenção no plano corrente, a atualização do Android, aos pixels da câmera frontal e se o "carango" tem injeção eletrônica, airbags laterais e câmera de ré. E, assim, o cimento passa a valer mais que o ar, tal como o rotor lateral assume maior valia que a vida de Charles "escafedida" em pedaços enquanto mexia na bomba helicoidal.
Se é clichê clamar pelo Carpe Diem com o qual se riem os leitores que neste ponto se deparam e pensam: "de novo essa baboseira!", que de fato se encontra a torto e a direita nos status de "WhatsApp" e nas tatuagens dos "influencers", então é válido que entendamos o que a sentença simboliza. Também não é como se devêssemos  seguir à risca o código de Epicuro, mas se hoje nos é possível orar e pedir por algo, interessante seria se, ao invés de uma vida eterna, ou de 500 virgens para nos aguardar no além, pedíssemos por discernimento, para seguir o conselho do mago cinzento que certa vez, sabiamente proferiu a um pequeno grande, que aquilo que nos cabe  é "decidir o que fazer com o tempo que nos é dado", para que então compreendamos que o fim não se lamenta, simplesmente chega e se acaba. Para que possamos lamentar menos pela finitude da vida e principalmente das coisas materiais, tal como fazemos com o fim de um capítulo, de um semestre letivo, ou do ano que agora se encerra...
Que lamentemos menos nossa finitude e a vivamos mais, porque cedo ou tarde o fim chegará e quando ele se for...
C'est Fini.

Por Júlio César
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 23 de dezembro de 2018

Amarelos empambados sem coletes

Basta abrir o olho e ver. Os novos poetas estão aqui. Os novos poetas já nasceram e morreram, mas estão sempre vivos. Poetas de uma linguagem carcomida, cheia de ferrugens de cérebros ácidos. Ciência, ciência? Eu quero é o belo! Basta. Besta! Desprezível bata! Anseio! E toda arte se repete imune aos desvios e desfiladeiros que o medo quis inventar. A repetição de toda tarde em uma única maneira de viver como possível, contemplando o nada, desprezível que se tornara. E Glauber trepa às três da manhã exigindo estourar uma gosma quente nas pernas de Sua Anfitriã para esquecer. E eu só sei lembrar. O dia todo resgata o momento de uma prosódia pré-pronta, rotineira da qual sou espectador. Uma camada do epitélio terrestre que nunca entendi e sempre foi em vão. O gozo absurdo de tardes infindas como a de Paris no entardecer. Milhares de possibilidades e angústias dos seres que nascem e morrem. O medo bate na porta camarada de um dia que não sei se termino, porque exijo da minha carapaça falsa e infame as mais duras e cruéis agonias para o gozo. Aquele mesmo de Glauber, o pedreiro, meu vizinho que come sua mulher antes do trabalho duro. Desço o elevador e, não basta estar assim carcomido, lhe encontro. Desejo-lhe bom dia. Mas Glauber está verde turvo como a penumbra das árvores de uma chuva que ameaça vir. Turvo é um entremeio, o lamaçal que não identifico nem nele nem no sorriso de sua esposa que ainda deve está de quatro, caricata tosca de um brutamonte que a consumiu. Sai cheia de delicadeza logo em seguida, embora sintia-se prostituída, mas algo a erguia em uma pose bem vista nas tarefas sociais de sua função pública. Etiqueta travestida em delicadeza santificada na religião do dia-a-dia. A moça que suporta Glauber, suporta qualquer anseio da vida. Mas amanhã ela sonha de novo como seu sonho e Glauber sonha em dias onde a felicidade reside. Ele senta à mesa do café da manhã por bem mais que apenas um momento são. Coça a barba e cospe no chão quando lembra de Astor, o filho da puta do mestre de obras que acha que sabe mais que ele a envergadura do parapeito que teve que desfazer ontem. “Eu falei até com o Satanás para não trucidar a cabeça daquele verme!”. Isso é o que escuto, já faz um tempo, com o ranger dos passos dados de manhã cedo. E a morte vulgar, traiçoeira sorri em cada esquina que o tédio culmina nas mentes dessa manhã. Vou na padaria e volto sem qualquer poeira abençoada que dê o ar da graça em um bom dia, sem qualquer graça ou sorriso. Volto como quem nunca foi. Numa cidade vazia de sentido. Volto como quem nunca antes havia visto o por que uma memória só pertence ao lá e nunca ao cá. A memória de quem vai é totalmente igual a de quem volta, e os parafusos tortuosos, os esquemas dos fortes, as fronteiras, os mitos sociais, os desejos coletivos, as transações financeiras e qualquer coisa inútil num conglomerado vôo de Fortaleza para Paris, que trouxera não só eu, mas também esse delírio matinal na bagagem, não me faz outra coisa que reter a capacidade de resgatar memórias. E Glauber fode mais uma vez pensando em Astor e quando Deus permitirá que ele desça a mão de porrada. Goza estupefato e Sua Delicadeza pequenina que ele acaricia sem entender o que sente e ela muito menos. É a força onde é possível não matar os seus chefes, os seus mandantes. Sacrificam o trabalho para se encontrar a noite e catucar o meu teto no ranger do amor. E eu só tenho essa merda de vida! Não a minha ou a de qualquer outro, a vida que agora tenho! E não lembro um momento de que um dia vivi outra coisa que não a que lembro. E não prometo senão o que naquele momento me cabe. Volto como quem volta da padaria junto com o sorriso das inúmeras manhãs que cumprimento Glauber e em seguida a Sua Delicadeza. Pude observar, anteontem, a felicidade traduzida no espanto. Pareciam crianças. Um homem inocente e tabernoso que matara sua preza e trouxera para casa a graça da vida consumada. Glauber ria para se acabar e agora estava vermelho de felicidade como a pele de Sua Delizadeza nos arrebatos do gozo que desde que se casaram ele admirava. Meu Deus, ela parecia uma princesa escultural dos primórdios do tempo! Era como se o Neandertal encontrasse de imediato a Venus de Milo. Seus corpos transmitiam uma nudez caricata da inocência vã de uma criança lambuzada de vida. E ele dizia coisas como “esmaguei o filho da puta como quem pisa num pinscher e ele latia e gritava e esperniava”. Sua Delizadeza ria e eles se abraçavam. “Eu cuspi no meu chefe e mandei ele tomar no cu!”. Nem sabia que Sua Delizadeza era capaz de falar coisas do tipo. Eles pareciam delirar. Mas um delírio real, pois quando eu encontrei ele novamente no elevador,  meu olhar dizia num palpitar do coração. Eu fui consumido repentinamente por um choro de verdadeira alegria. Como se eu sentisse suas felicidades reverberar sobre a minha. Meu choro alegre dizia: “Glauber, Glauber, assim você vai longe meu bravo camarada!”. Eles eram as pessoas mais belas que eu havia visto ultimamente. Eles fazem questão de dizer que sou possível poeta, porque enxergo no não visto uma vida feliz. Mas eu retruco dizendo que basta abrir o olho e ver.

Por Jayme Mathias Netto
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 16 de dezembro de 2018

Diferença e repetição.

Cheguei à casa de Dolores numa manhã chuvosa de abril. Quando ela abriu a porta me deparei com seu semblante estupefato. Confesso minha apreensão com este momento - o primeiro encontro com o ser que faz parte de minhas memórias mais antigas. As lágrimas da chuva que se misturavam ao choro do seu rosto me trouxeram lembranças dos vinte e quatro anos que vivemos juntos em nosso lar. Jamais esquecerei a explosão de sentimentos pulsantes em mim naquele instante. Num sobressalto cognitivo a dúvida se instaura: posso considerar aquele abraço de Dolores, que me queima, mais real do que todos os outros que guardo na memória?
Vivo, pela primeira vez, uma vida que já vivi. Sei que para Dolores todo o processo é muito angustiante, ela ainda convivia com as dores do luto quando cheguei. Quanto a mim, não escondi a alegria do nosso encontro, já que a última lembrança que tinha era das seções de quimioterapia, com seus enjoos, decadências e fragilidades. Durante o tratamento, enquanto a morte me consumia, imaginava o que seria de minha bela esposa e nossos filhos com minha ausência. Hoje experimento o amor que momentos antes de minha chegada apenas repousava nas reminiscências do meu eu.
Já se passaram dez anos desde aquele primeiro encontro. Muita coisa mudou. Um de nossos filhos está morto. Dolores conseguiu um novo emprego com um excelente salário. Muita coisa mudou. Dolores mudou. Ela me disse que somente o céu ainda permanece igual, mas o que está abaixo dele se transforma como um rio que corre banhado pelas lágrimas da chuva. O problema é que não fui programado para uma nova dor, para a mudança de emprego ou a procura de um outro amor. Dolores mudou. Disse que dentro dos vinte anos iniciais que convivemos eu me transformei, fui moldado pela vida, mas que agora sobrevivo enclausurado nos canteiros da mesma memória. Não tenho culpa, fui duplicado para viver ao lado de Dolores, e o que reproduzo são lembranças do meu eu. Para minha esposa eu não possuo singularidade, sou uma cópia de uma parte de mim: não me construo, sou um produto. Ela só não percebe que ao menos eu conservo aquilo que os humanos tanto procuram: o eu.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 9 de dezembro de 2018

O desafio de Truman

Em face aos problemas que enfrento, de um desejo sangrento por saber, me parece próprio e bem oportuno denotar o quão contraditório é que busquemos hoje em dia pela real sabedoria. Isso porque a própria filosofia, como negação de si mesma, atua como força oriunda unicamente do ser.
Nessa onda de "hei de ser resistência", resistente mesmo é quem persevera na busca constante pela verdade.
Pois que, apesar da vontade, o Deus mercado diz que não, e quando não, esse que hoje rege a vida de 99% dos seres "pensantes", o tempo, as estruturas, a burocracia, os prazos, os erros e mesmo os acertos dizem não, de modo que "a filosofia torna-se um saber rarefeito que não convém ao nosso tempo."
Nessas horas procuro lembrar de Frederico. Amigo meu, muito eloquente que de vez em quando me vem à mente dizendo que, se eu apenas reagir, serei engolido pelo sistema. Sistema esse que é "todo armado para reprodução da tristeza."
A chave não é REagir, mas agir, tal como disse Frederico. "Promover a potência e ser a solução pelo valor artístico" ou pela vivissecção de tudo que foi dito como verdade e nunca posto à prova. Só assim a lâmina da verdade alcança a rigidez do diamante. Só assim se trespassa o mercado, o tempo, as estruturas, a moral, a burocracia, os prazos, os erros e acertos com um golpe único e letal. Só assim se cortam as cordas que amarram os membros de Truman e lhe é conferida a verdadeira liberdade.

Por Júlio César
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 2 de dezembro de 2018

Uma conversa síncope

Criatividade: Não faça isso comigo. Não me deixe cair.

Ego: Eu sei. Tenho eu de ir mais um pouco nessa vasta terra infértil.

Criatividade: Não suporto mais sua falta de atenção. Não me deixe cair.

Ego: Eu sei. Eu tenho de regular aos moldes dos outros, senão não falo a ninguém.

Criatividade: Merda! Sempre esse papinho de merda! Sou a doce donzela que arde e inspira
poetas e você me quer no encaixe. Nunca mais voltarei para essa merda de morada.

(Ela partiu como o sopro da manhã e calada ante a razão imperatriz.)

Razão: Ela gosta de brincar. Qualquer dia desiste de mim, essa vadia. E perambulará pela vida e pela cabeça dos outros. Pescará ideias similares. Abrupta distração de alguns. Selvageria em outros. Quantas vezes calou-me a boca. Quantas vezes fez-me ousar. Já já ela volta, amançada, amordaçada pelas correntes dominadoras da falta de gosto pela vida. Atraída por tudo que é humano, mas distante deles, achando em mim consolo livre. Vai-te. Vai-te perambular. E namora com o Entusiasmo que está no canto. Mal deixa-me organizar um pouco as coisas e já parte também com alguma raiva de suas próprias crias: o Tédio e a Preguiça.

Jayme Mathias Netto
Vivisseccao.blogspot.com