domingo, 23 de dezembro de 2018

Amarelos empambados sem coletes

Basta abrir o olho e ver. Os novos poetas estão aqui. Os novos poetas já nasceram e morreram, mas estão sempre vivos. Poetas de uma linguagem carcomida, cheia de ferrugens de cérebros ácidos. Ciência, ciência? Eu quero é o belo! Basta. Besta! Desprezível bata! Anseio! E toda arte se repete imune aos desvios e desfiladeiros que o medo quis inventar. A repetição de toda tarde em uma única maneira de viver como possível, contemplando o nada, desprezível que se tornara. E Glauber trepa às três da manhã exigindo estourar uma gosma quente nas pernas de Sua Anfitriã para esquecer. E eu só sei lembrar. O dia todo resgata o momento de uma prosódia pré-pronta, rotineira da qual sou espectador. Uma camada do epitélio terrestre que nunca entendi e sempre foi em vão. O gozo absurdo de tardes infindas como a de Paris no entardecer. Milhares de possibilidades e angústias dos seres que nascem e morrem. O medo bate na porta camarada de um dia que não sei se termino, porque exijo da minha carapaça falsa e infame as mais duras e cruéis agonias para o gozo. Aquele mesmo de Glauber, o pedreiro, meu vizinho que come sua mulher antes do trabalho duro. Desço o elevador e, não basta estar assim carcomido, lhe encontro. Desejo-lhe bom dia. Mas Glauber está verde turvo como a penumbra das árvores de uma chuva que ameaça vir. Turvo é um entremeio, o lamaçal que não identifico nem nele nem no sorriso de sua esposa que ainda deve está de quatro, caricata tosca de um brutamonte que a consumiu. Sai cheia de delicadeza logo em seguida, embora sintia-se prostituída, mas algo a erguia em uma pose bem vista nas tarefas sociais de sua função pública. Etiqueta travestida em delicadeza santificada na religião do dia-a-dia. A moça que suporta Glauber, suporta qualquer anseio da vida. Mas amanhã ela sonha de novo como seu sonho e Glauber sonha em dias onde a felicidade reside. Ele senta à mesa do café da manhã por bem mais que apenas um momento são. Coça a barba e cospe no chão quando lembra de Astor, o filho da puta do mestre de obras que acha que sabe mais que ele a envergadura do parapeito que teve que desfazer ontem. “Eu falei até com o Satanás para não trucidar a cabeça daquele verme!”. Isso é o que escuto, já faz um tempo, com o ranger dos passos dados de manhã cedo. E a morte vulgar, traiçoeira sorri em cada esquina que o tédio culmina nas mentes dessa manhã. Vou na padaria e volto sem qualquer poeira abençoada que dê o ar da graça em um bom dia, sem qualquer graça ou sorriso. Volto como quem nunca foi. Numa cidade vazia de sentido. Volto como quem nunca antes havia visto o por que uma memória só pertence ao lá e nunca ao cá. A memória de quem vai é totalmente igual a de quem volta, e os parafusos tortuosos, os esquemas dos fortes, as fronteiras, os mitos sociais, os desejos coletivos, as transações financeiras e qualquer coisa inútil num conglomerado vôo de Fortaleza para Paris, que trouxera não só eu, mas também esse delírio matinal na bagagem, não me faz outra coisa que reter a capacidade de resgatar memórias. E Glauber fode mais uma vez pensando em Astor e quando Deus permitirá que ele desça a mão de porrada. Goza estupefato e Sua Delicadeza pequenina que ele acaricia sem entender o que sente e ela muito menos. É a força onde é possível não matar os seus chefes, os seus mandantes. Sacrificam o trabalho para se encontrar a noite e catucar o meu teto no ranger do amor. E eu só tenho essa merda de vida! Não a minha ou a de qualquer outro, a vida que agora tenho! E não lembro um momento de que um dia vivi outra coisa que não a que lembro. E não prometo senão o que naquele momento me cabe. Volto como quem volta da padaria junto com o sorriso das inúmeras manhãs que cumprimento Glauber e em seguida a Sua Delicadeza. Pude observar, anteontem, a felicidade traduzida no espanto. Pareciam crianças. Um homem inocente e tabernoso que matara sua preza e trouxera para casa a graça da vida consumada. Glauber ria para se acabar e agora estava vermelho de felicidade como a pele de Sua Delizadeza nos arrebatos do gozo que desde que se casaram ele admirava. Meu Deus, ela parecia uma princesa escultural dos primórdios do tempo! Era como se o Neandertal encontrasse de imediato a Venus de Milo. Seus corpos transmitiam uma nudez caricata da inocência vã de uma criança lambuzada de vida. E ele dizia coisas como “esmaguei o filho da puta como quem pisa num pinscher e ele latia e gritava e esperniava”. Sua Delizadeza ria e eles se abraçavam. “Eu cuspi no meu chefe e mandei ele tomar no cu!”. Nem sabia que Sua Delizadeza era capaz de falar coisas do tipo. Eles pareciam delirar. Mas um delírio real, pois quando eu encontrei ele novamente no elevador,  meu olhar dizia num palpitar do coração. Eu fui consumido repentinamente por um choro de verdadeira alegria. Como se eu sentisse suas felicidades reverberar sobre a minha. Meu choro alegre dizia: “Glauber, Glauber, assim você vai longe meu bravo camarada!”. Eles eram as pessoas mais belas que eu havia visto ultimamente. Eles fazem questão de dizer que sou possível poeta, porque enxergo no não visto uma vida feliz. Mas eu retruco dizendo que basta abrir o olho e ver.

Por Jayme Mathias Netto
Vivisseccao.blogspot.com

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