domingo, 26 de janeiro de 2020

O Palhaço

Januário já se encontrava pronto à beira da porta havia dez minutos. Lambia o cabelo com seu pente de instante em instante pra conferir se o topete não tinha saído do lugar desejado. Roupa bem passada, blusa por dentro da calça, pele lisinha como de um bebê. Seu sapato jamais poderia ficar inteiramente limpo devido aquele chão de terra batida, mas Januário não estava preocupado com seus sapatos, o que importava eram os seus cabelos. Esperava por esse momento há um ano inteiro, há três dias dormia pouco, há cinco sonha, há três meses junta moedas. Seu acompanhante sai do quarto, não está tão animado quanto Januário, afinal, tais espetáculos são bem comuns nessa época do ano. Os dois dão as mãos e saem de casa rumo a maior atração da terra.
A tarde ia embora ao longe, as cores no céu davam o tom aos olhos brilhantes de Januário. As lâmpadas amarelas dos antigos postes de iluminação pública anunciavam a vinda da escuridão, não havia tempo, eles chegaram. Numa vila de pescadores todos se conhecem e Januário logo se junta a seus amigos. Entre eles os assuntos são os mais variados, jogos, ilusões, presentes, mas a fila lhe causa ansiedade, pois está longa, e Januário não quer saber de frivolidades. Esticando-se para os lados, tentando ver se ainda ia demorar muito a entrada, arruinou seu topete. Esperei o momento em que ele tiraria seu pente verde do bolso para corrigir os cabelos, mas perdi a esperança quando deu um sorriso ao ver os portões se abrirem.
Na entrada, seu irmão entregou os ingressos ao recepcionista. Nos bilhetes, fez questão de escrever seus nomes contra imprevistos. Ainda conseguiram sentar na primeira fila do picadeiro. Olhou para cima, a lona em tiras vermelhas e brancas eram cobertas por estrelas douradas que cercavam toda a abóbada celeste do circo. Sorriu para seu irmão enquanto apontava para um chapéu que se encontrava ao centro da arena. O irmão, finalmente, ajeitou o topete desarrumado de Januário que tanto chamava minha atenção.
As luzes se apagam. A música começa a tocar. Um cone de luz percorre o circo ao ritmo da canção e, por fim, estaciona na cortina laranja. Com um grito estrondoso o palhaço salta abrindo o cortinado rumo ao seu chapéu colorido. Após o susto Januário bate palmas. O palhaço leva uma topada e cai de cara no chapéu. As crianças espremem a barriga de tanto gargalhar. Após falhar em sua tentativa de tirar um coelho da cartola, o palhaço, mascarado com sua tinta guache, usa a liberdade para dizer o que pensa. Ridiculariza o prefeito, fala do mau cheiro da cidade, da feiura do povo, dos velhos sem dentes. Em seguida confronta os espectadores. Fresca com o cabelo do menino na primeira fila, a criança fica séria. Arrasta o garoto para o centro do picadeiro.
- Meu fí parece um robô né! Todo duro o bichim.
Mais gargalhadas. A criança se olhava e dobra os braços como se estivesse querendo mostrar que não era aquilo. O show continua.
- Só a titela. Como é teu nome bichim?
- Januário Pereira da Silva.
- Vixe, vai dar até a identidade é?
O povo ri. Enquanto isso Januário se pergunta qual seria a doença daquele pobre coitado e como deveria ser difícil se locomover no dia a dia. Nunca tinha visto sapatos tão grandes. Lembrou da aula de ciências na escola e decidiu perguntar.
- O sinhor tem é elefantíase no pé é?
Outra boa resposta do público com suas risadas. O palhaço, com um leve sorriso no rosto, responde.
- Oia aí, o bichim é gaiato! Meu fí quer ser o que quando crescer?
- Palhaço.
O som das gaitadas chegou à igreja da vila. Dona Joana até se levantou da cadeira para entender o que estava acontecendo, interrompendo a pequena reunião paroquial. Devo lhes advertir que, por conhecer mais sobre o pequeno Januário do que o palhaço, reconheço o quanto ele estava sendo honesto em sua resposta.
Incomodado com a fala do menino, o palhaço retruca.
- Ei bichim, pra tu ser palhaço tu tem que ser pelo menos engraçado.
- Valha.
Januário olha intrigado para o palhaço e continua. 
- Eu pensei que pra ser palhaço eu só tinha que dizer a verdade.
Ironicamente todos silenciaram e se olharam. Ainda deu pra ouvir um “bufo” vindo da plateia. Todos calaram, menos o palhaço que teve um ataque frenético de riso misturado com lágrimas que tiraram seu fôlego, olhava para o público mas somente enxergava o cone de luz que iluminou sua consciência. A tinta no seu rosto se desfazia, derretia, manchava seus pés de elefante. Tão logo as luzes se apagaram e entrou o equilibrista.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Sucinto


Poema sucinto,
porque hoje só sinto.
Escrita limita o abuso.
Traduzo o pouco que dá.

Minto, embromo, se digo
mais que 4 estrofes.
Não é bom dar Ibope
pra o que não se deve grafar.

Hoje escolho o silêncio 
ou as poucas palavras,
só respiro.

Aperto o cinto da gramática.
Menos temática.
Mais vinho tinto.
Já escrevi até demais.

Calo os dedos.

Júlio César 

domingo, 12 de janeiro de 2020

O balanço

Chuva, dia cinza
Mesmo assim, ajeito meu balanço no quintal que já não aguenta meu peso
Devo ser leve, ele me cobra
Agora é questão de dever
E isso pesa mais que eu
Dobrei as molas, apliquei cola, parafusei
atarrachei, fiz até jejum e perdi peso
E só pensava numa forma que fosse tão maleável que permencesse para além de toda fixidez 
Pra que ele não mais quebrasse no movimento
Vi que era necessário ser fraco pra sustentar a vida no ápice de sua fraqueza
E fui conversar com ela em todas as instâncias
A rigidez havia voado pelos ares da última vez que o ajeitei
Tinha causado um prejuízo terrível
O pobre balanço se desfez por completo 
A madeira e os ferros de sustentação voaram para os lados junto com os parafusos insignificantes que flamejavam com seus olhos de ira e queriam uma vida melhor
E eu permanecia me balançando meio desengonçado e à deriva
Apesar disso, mais maleável, mais perto da vida
Afinal, menos resitência é mais resitência
No limite do fraco, no abismo, é que tá a força
Era preciso ser e permencer e uma hora a ruptura viria
Voaria pelos ares tudo de novo
E seria enfim outro balanço
Ou um buraco aberto bem no meio da vida
Maleável como o cosmos louco
Mas é fato que a vida se extravasa nos buracos passageiros
Não adianta resistir, querendo ser breve, firme, ou até leve e solto
Nunca há segredo, ela é indecifrável 
Em toda dureza, ela dá rasteira
Em toda moleza, ela endurece
A danada gosta de danças, gosta de esvoaçar pelos ares e romper balanços e cálculos
Ela paquera com o vento, beija a boca da chuva
A danada gosta de superfícies de pano
Pois é, eu até conversei com o pano que forrava o balanço e ele me disse
que a danada gosta mais das plantas que caem no outono e daquele amarelo lisinho e felpudo que dele próprio
Isso porque o pano me disse que só queria ser como uma espécie de cimento que é colada à rotação de galáxias inteiras e aos universos virgens ao olhar da besta humana
Ele queria ir pra bem longe do olhar desses bagunceiros parafusos feridos que calculam e espremem tudo
E, de fato, lá, quando os observava, num é que a danada da vida queria ser invisível!
O que todos eles não descobriram foi uma verdade que hoje vi alegrar as nuvens na ponta do parafuso caído do meu balanço
A vida quer em tudo, mas sem convite
E quando ela quer em algo é melhor obedecer
Ah, mas nem todo mundo sabe obedecer, porque parafuso gosta mesmo é de mandar!
E eu revisava o trabalho feito no balanço, para torná-lo como a vida, inútil, tão inútil ao ponto que eu escrevi esse texto com a cabeça de um parafuso que tenta espremer e tem até uma língua própria, mas aprendeu a dar valor à queda e a esvoaçar pelos ares!

Jayme Mathias 

domingo, 5 de janeiro de 2020

Convergência.


Entrei na sala e vi Roberta sentada no sofá. Aproveitei o tempo curto que tínhamos juntas pra conversar um pouco.
- Olá bom dia.
Comecei.
- O tempo está muito quente hoje.
Disse. Afastou-se um pouco pro lado do sofá como indicativo de um convite.
- Ah não, desculpa. Não percebi o horário. Acho que já não é mais bom dia.
- Dá pra perceber a chegada do verão. Tá um inferno. É tanto calor que minha cabeça lateja.
- Poxa. Por isso tenho que ficar de olho no relógio. Devia estar de saída para a consulta. O pior de tudo é que lá tem fila de espera. Nós pagamos esses planos de saúde mas no fim das contas essas clínicas são lotadas do mesmo jeito.
- Eu amo o verão sabe, mas esse ano está muito quente. Se ao menos tivesse chuva direto pra amenizar. E ainda tem os bichos de chuva. Lá em casa tenho que deixar as janelas fechadas, ou então ligo a luz de fora e desligo a da sala pra eles não entrarem. De vez em quando você leva um susto com algum bicho pousando no seu corpo.
- Certo dia eu estava com uma febre horrível e fui para a tal clínica. Meu atendimento demorou tanto que o remédio pra febre que eu tomei em casa já tinha acabado com meu sofrimento quando chegou minha vez no consultório. Por um momento o médico chegou a acreditar que eu só queria o atestado pra faltar o trabalho.
Respondi a pergunta enquanto tirava o cigarro do bolso.
- Num é. Eu lá sei por onde esses bichos passaram antes de pousarem em mim. Aqui tem muito bicho de chuva à noite?
- Muita cara de pau daquele médico viu! Era feriado, pra quê eu iria querer um atestado? DOUTOR ADALBERTO. Não piso mais lá. Aquele velho ta merecendo é se aposentar.
Percebi a cara de nojo de Roberta com o meu comentário enquanto tocava no seu corpo, como se uma coisa estrangeira encostasse nela.
- Sim, mas como você está?
- Sim, mas como você está?
Rimos muito alto como nos velhos tempos de criança. “Que coincidência” pensamos.
- Bem, agora eu prefiro ir na clínica lá do outro lado da cidade mesmo.
- Aqui é tudo tão limpinho, não tem lagoa perto. Acho que não deve ter tanto bicho de chuva por aqui né.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.