domingo, 12 de janeiro de 2020

O balanço

Chuva, dia cinza
Mesmo assim, ajeito meu balanço no quintal que já não aguenta meu peso
Devo ser leve, ele me cobra
Agora é questão de dever
E isso pesa mais que eu
Dobrei as molas, apliquei cola, parafusei
atarrachei, fiz até jejum e perdi peso
E só pensava numa forma que fosse tão maleável que permencesse para além de toda fixidez 
Pra que ele não mais quebrasse no movimento
Vi que era necessário ser fraco pra sustentar a vida no ápice de sua fraqueza
E fui conversar com ela em todas as instâncias
A rigidez havia voado pelos ares da última vez que o ajeitei
Tinha causado um prejuízo terrível
O pobre balanço se desfez por completo 
A madeira e os ferros de sustentação voaram para os lados junto com os parafusos insignificantes que flamejavam com seus olhos de ira e queriam uma vida melhor
E eu permanecia me balançando meio desengonçado e à deriva
Apesar disso, mais maleável, mais perto da vida
Afinal, menos resitência é mais resitência
No limite do fraco, no abismo, é que tá a força
Era preciso ser e permencer e uma hora a ruptura viria
Voaria pelos ares tudo de novo
E seria enfim outro balanço
Ou um buraco aberto bem no meio da vida
Maleável como o cosmos louco
Mas é fato que a vida se extravasa nos buracos passageiros
Não adianta resistir, querendo ser breve, firme, ou até leve e solto
Nunca há segredo, ela é indecifrável 
Em toda dureza, ela dá rasteira
Em toda moleza, ela endurece
A danada gosta de danças, gosta de esvoaçar pelos ares e romper balanços e cálculos
Ela paquera com o vento, beija a boca da chuva
A danada gosta de superfícies de pano
Pois é, eu até conversei com o pano que forrava o balanço e ele me disse
que a danada gosta mais das plantas que caem no outono e daquele amarelo lisinho e felpudo que dele próprio
Isso porque o pano me disse que só queria ser como uma espécie de cimento que é colada à rotação de galáxias inteiras e aos universos virgens ao olhar da besta humana
Ele queria ir pra bem longe do olhar desses bagunceiros parafusos feridos que calculam e espremem tudo
E, de fato, lá, quando os observava, num é que a danada da vida queria ser invisível!
O que todos eles não descobriram foi uma verdade que hoje vi alegrar as nuvens na ponta do parafuso caído do meu balanço
A vida quer em tudo, mas sem convite
E quando ela quer em algo é melhor obedecer
Ah, mas nem todo mundo sabe obedecer, porque parafuso gosta mesmo é de mandar!
E eu revisava o trabalho feito no balanço, para torná-lo como a vida, inútil, tão inútil ao ponto que eu escrevi esse texto com a cabeça de um parafuso que tenta espremer e tem até uma língua própria, mas aprendeu a dar valor à queda e a esvoaçar pelos ares!

Jayme Mathias 

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