domingo, 31 de julho de 2022

Julho do Leitor: Desaguar

 


Desprendida fui do aconchego do seio materno e colocada para correr pela casa. Pelas frestas das janelas vislumbrei ásperas e secas realidades e medo senti, ainda tentaram cobrir meus olhos com lençóis de algodão e com o cheirinho de doce de goiaba vindo da cozinha, mas o medo continuou em mim. Chegada a hora, empurrarem-me e o lá fora passou a ser minha casa também.

Rodeada de visões de escassez estava e para acalmar deram-me pequenos simulacros de beleza e liberdade, tentando ocultar o que fizeram de nossa casa. Ando pelo solo seco e encardido, observo o horizonte desmatado, cheiro o ar de metano, olho para o ruído na barriga do menino. Como era bom o tempo da infância, no colo da mãe, deliciando seus doces feitos só para mim. Não há opção para voltar, não há como fingir, agora a escassez está ao redor. Também sou eu. 

Nessas alteridades desérticas, que assolam o mundo, abate a sede por novas possibilidades, para que as bocas ressequidas possam enfim falar e que a água escorra para inundar nosso chão. Necessidade há de regar novos começos para o que é de uns vire de todos, para o que é deserto vire oásis.


                                                                                                                                       -R



domingo, 24 de julho de 2022

Julho do leitor: DAYSE E O MONSTRO

 

Dayse tinha dez anos e percebeu que não podia contar para ninguém. Havia um monstro dentro de sua própria casa. Ele vinha visita-la no quarto, na sua cama todas as noites. Era um pavor absoluto. O monstro a tocava com seus dedos frios e ela estremecia. Um dia contou para a mãe, mas a mulher se irritou e a ameaçou de castigo. Não tolerava mentiras! Falar com o pai, nem pensar. Então Dayse atravessou dias, meses e anos suportando os pavores noturnos, sozinha. Um dia fugiu de casa e viu pavores maiores ainda. Reuniu forças e resistiu. Uma noite, dormindo na rua, foi acordada por um homem. Num susto reconheceu o velho monstro e num gesto rápido, cortou a garganta dele com uma navalha. Após o incidente, continuou vendo o monstro, mas este se mantinha afastado, parecendo receoso. Dayse logo percebeu que isso era algo que podia ser ensinado para as outras garotas... Esse monstro sangra, garotas, disse ela.

Jorge Raskolnikov 

domingo, 17 de julho de 2022

Julho do leitor: Ela é uma Deusa antiga

 


Ela possui todos os defeitos e qualidades dos Deuses.


Ela possui os desejos de Afrodite;


Ela possui a luz do raio de Zeus;


Ela possui a coragem de Hércules;


Ela possui a beleza de Apolo;


Mas...


Ela possui a tristeza de Hades (pois fora abandonado pelos seus irmãos);


Ela possui o orgulho de Zeus;


Ela possui a maldição de Narciso;


Ela possui a impulsividade de Poseidon;


Ela deve ser aceita com todas as suas qualidades e defeitos.


Eric Vieira

domingo, 10 de julho de 2022

Julho do Leitor: Paragens

É momento de pausa, e vou aqui pensando… sinto falta do interior, e com interior quero dizer o campo, os lugares longe da cidade. Quando vou, e já faz um tempo que não vou, o cheiro do mato me traz muitas reminiscências boas, referidas à minha infância e ao começo de minha adolescência no interior de meu falecido avô e avó - esta ainda viva - maternos. O silêncio, as pessoas, as cercas (não sei o motivo, mas a imagem delas, que na verdade deveriam me representar algo ruim, porque são cercas, me trazem uma sensação boa, talvez por me lembrarem as paragens dos meus já citados ascendentes), o céu noturno, a paz, a igreja, os alpendres. Os alpendres são um espaço muito especial. São onde ficam as redes, as cadeiras, e, em alternativa à cozinha, é onde se conversa com os visitantes. As pessoas chegam, sentam nos parapeitos, sacam seus fumos, fazem os seus pé-duros e conversam, conversam longamente. Ninguém tem medo de ninguém. Entra-se nos alpendres e deita-se nas redes das casas alheias sem o menor pudor - nonada, isso é um disparate! E acontece que você está ali, sentado na cadeira de balanço, mais ou menos às cinco e meia da tarde, e o sol já vai baixinho. Lá de longe, você escuta os passos de alguém remexendo a terra e se aproximando, se aproximando cada vez mais; sua avó está na rede e, estando o visitante já bem próximo, fala, "Como é que vai, comadre?". Você não conhece a pessoa, nunca a viu. Ela, por sua vez, diz "Tudo bem, comadre, e contigo?". Em seguida, o mais esquisito acontece, quando a mulher idosa vira pra você e diz, "É o Willem, filho da Nega?". Isso sempre me assustou, sempre me fez perceber o quanto eu estava num lugar completamente estranho, mas ao qual, ainda assim, sentia-me muito pertencente. Como assim as pessoas conhecem você, sua mãe, seu pai, seus tios e tias, seus primos e primas e você nunca as viu antes, não as conhece? Parece-me ser uma outra estrutura social, cultural, de vida, ou, enfim, de tempo, para não escorregar num tipo de termos que não quero utilizar aqui. Todas as famílias se conhecem. Cada uma tem sua característica, seu estereótipo. Há a família dos ricos, aquela das mulheres bonitas, aquela dos homens bonitos, aquela dos loucos, aquela dos pistoleiros, aquela dos políticos, aquela dos festeiros, aquela dos trabalhadores. Já em outra ocasião, sua avó pede ao seu pai que a leve até a casa de sua comadre, esposa de seu irmão. Você, como criança metida, vai junto. Ao chegar, as duas se cumprimentam e a anfitriã pede a todos que tomem seus lugares nas cadeiras e redes do alpendre - ele, outra vez. Passadas as introduções típicas de qualquer conversa, as matriarcas de suas famílias tratam de falar dos problemas das terras, das cercas, da safra vindoura, dos bezerrinhos, dos empréstimos de castanha, enfim, das coisas que só as matriarcas podem resolver. Enquanto isso, você está completamente distraído olhando pro mato escuro que está ao redor da casa; observa as luzes que estão lá, bem distantes, e fica imaginando quem vive por debaixo daquelas lâmpadas; quando dá por si, olha pro seu irmão e fala, "Vamos brincar?", e vão os dois correr pelos terreiros iluminados pelas luzes da casa, sob céu coalhado de estrelas. Bem, o que eu sei é que o interior muda as pessoas, só por estarem lá. Sua mãe não se preocupa se você está longe de casa, ela sabe que simplesmente não há perigo, a não ser que o perigo seja você mesmo, que é uma criança e pode fazer aquilo que crianças fazem de melhor: se machucar brincando. Ela parece saber que, para onde você for, por mais longe que seja, sempre estará perto de alguém conhecido, e esse alguém vai cuidar de você e te deixar seguro. Se alguém te ver, logo te dirá, "Olha, é o Willem, filho da Nega", e pronto, você estará em segurança. Outra coisa é o silêncio, que é muito intrigante. Sentado em cadeiras no terreiro, junto a primos, tios e tias, você começa a escutar um barulho que parece ser de motor (provavelmente será uma moto). Esse barulho perdura, perdura tanto que você esquece que ele está ali. Vai aumentando o volume, lentamente, até que, cinco, seis, sete, dez minutos depois, a bendita moto passa na estradinha que fica bem em frente à casa. Na cidade grande, é impossível escutar o barulho do que quer que seja que esteja a dez minutos de distância de você. Devido ao barulho, você só se apercebe quando esse algo está em cima, e olhe lá. 

Bem, já lembrei demais. Memória é coisa romântica, inapropriada para a pressa de que preciso.

 

 

 

* * *

 

 

Willem Carneiro.

 



domingo, 3 de julho de 2022

Julho do leitor: As sobras


O que restou de nós quando todos eles se foram?

0,5%, 1%. De que importa?

Sem tempo ou despedida, como num raio.

Um instante que crava a solidão no peito dos que restaram.

Ficara pensando por um tempo, o que é que se pode traduzir da imensidão do nada?

Vestígios contagiosos do que já fora num instante sem tempo ou espaço.

Eis que nos debruçamos entre as sobras.

O abismo grita como um animal em desespero.

Só sussurros são ouvidos.

Um frio na espinha estremece meu corpo.

Perdi o olfato, 

Perdi a coragem,

Perdi o suspiro,

Pensei estar de bruços... já não me acomete mais.

Não estou em lugar nenhum. Será o nada?

Como se o nada hospedasse aquilo que, um dia, sonhou ser algo muito além do ar que respirava.

Luiz Tiago Soares de Souza