segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Anunciação.

 


Tu não viestes de longe estrela cadente

Pronuncias o vindouro do dia

Alumia o amanhã num caleidoscópio póstumo

Tens na chegada fria e cálida minha sina


Itinerários ramificam-nos às lonjuras

Ocupam fendas nos pés rachados

que

Assentam morada no barro barroco da modernidade


A noite descultiva, tal qual girassol a espera do dia

Ninho sacro profano, guarda-me nú

Roubaste-me a esperança na espera

Finca-me no agora sujo e arraigado da margem


És tu, ó finito, quem anuncias a senhora morte

Dama vestida à foice em sepulcro mórbido

Doas o sabor à vida, pois em queda vislumbramos o abismo

Abocanha-nos a profundeza com suas notas de desespero


Daí amar-te,

amo-te porque sei que findas

Amo-te pois não me pertences indistintamente

Amo-te pois nunca mais serás minha, já que não há amanhã

Amo-te pois sei que findo-me em teus abraços


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 19 de dezembro de 2021

Tempo em disfarce



A medida das coisas é algo humano, salvo engano, só conhecemos o que, nomeamos, definimos e mensuramos.
Uma sociedade de controle foi erguida como solução racional para o caos da incerteza, do volátil, das garantias do amanhã, do existir para além agora. Porém, até entre as coisas por nós rotuladas, há uma entidade a qual sentimos, nomeamos e quantificamos e, mesmo assim, a ela somos todos subservientes.
Quanto vale um minuto?
60 segundos, responderá o pragmático.
Uma eternidade, responderá aquele que segura na mão um ferro em brasa.
Um piscar de olhos, interpelará quem se despede de um ente querido.
É relativo, diria o cientista.
Fato é que "os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem."
O tempo pois anda em disfarce! É o mestre de todos eles. Perfeito, implacável, inevitável.
No passado, é memória, trauma, saudade.
No futuro, incerteza, promessa, esperança.
Mas é no presente que ele melhor se traveste.
Ele é aquele abraço que você não dá por estar apressado pra ir trabalhar. Sim, ele também é própria pressa.
Ele é a preguiça no dia de chuva, os 10 minutos de soneca no celular.
Ele é o tropeço na calçada, o esbarrão na madrugada com alguém que há muito não se via.
Permeia todo o espaço não humano com aquilo que nos move de maneira involuntária. As cordas da marionete. Ele é a respiração celular, a gênese e a plasmólise.
Atração cega, reação em cadeia.
Germinação e senescência.
É o respirar e a falta de ar.
O primeiro dente e o último.
O primeiro cabelo. O primeiro cabelo branco.
Orgulho e lamento.
Ele é isso e muito mais. O escape da própria definição, o próprio digitar dessas palavras parcas.
De uns dias pra cá eu tenho visto o seu disfarce... e lentamente ele tem me tirado toda e qualquer certeza.
Ao mesmo tempo em que me concede todas as respostas.
Ver o disfarce do tempo é ter noção de que não há invenção humana que dê jeito de pará-lo, acelerá-lo ou revertê-lo. Ele é o que é, mesmo sem tic tac, passa despercebido por nós a todo instante. Evento absoluto. 
Inviolável.
Impossível de enganar, não há atalhos,
"não se pode produzir uma criança em um mês, por engravidar nove mulheres."
Nas inúmeras coisas em que somos supérfluos, conseguir perceber onde reside a mimética do tempo talvez seja onde repousa a verdadeira profundidade, peripécia de poucos. Ainda assim, reconhecer que "tudo que temos que decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado" é talvez a consciência de continuar movendo os braços para não afundar em um oceano de segundos ganhos e perdidos.
Portanto hoje, antes de dormir, saude vigorosamente o tempo que passou por você ao longo do dia, e também aquele que está diante de você.

A favor ou contra 
Ele é tudo que você tem.
Você só não enxergou o disfarce.

Júlio César

domingo, 12 de dezembro de 2021

Fragmentos do cansaço e esgotamento


Pois é, mah, eu tava até pensando no que o Deleuze escreveu sobre o cansaço da nossa vida contemporânea.
Porque o cansado, enquanto conceito do Deleuze, quer dizer algo do tipo: "estou cansado de possibilidades, de escolhas, de ter que escolher".
Mas toda possibilidade permanece e se multiplica em cada escolha e o possível nunca se realiza, é largo demais para se concretizar.
Então isso retoma a ideia da sanguessuga de Nietzsche. A sanguessuga é o cientista, lá no Zaratustra do Nietzsche é, digamos assim, um especialista em cérebros.
Esse especialista, no entanto, é certo de seu ofício, ele não quer saber de todo o resto, quer apenas saber o que sabe bem.
Daí que tem-se que ter uma fisiologia desse tipo
para aguentar um tempo desse tipo e vice-versa.
Esgotam-se as possbilidades do nosso tempo e o cansado é levado ao extremo de sua esgotabilidade.

O cansado está sempre aquém das suas possibilidades. Está com 10 sanguessugas no braço, como no Zaratustra lá do Nietzsche, ele está aguentando firme, porque precisa estudar o cerébro delas e só consegue fazer isso.

O fato é que cada indivíduo se sente sempre aquém do que ele deveria ser, ele nunca está à altura do que deveria ser, estar, vender, fazer, cumprir, acabar, produzir. Daí o Deleuze falar em algum canto que eu esqueci:

"O cansado apenas esgotou a realização, enquanto o esgotado esgota todo o possível. O cansado não pode mais realizar, mas o esgotado não pode mais possibilitar." (Algum trecho de algum livro aí, p.2)
O possível está para o cansado como questão de objetivo e preferência: sair ou não de casa, por
exemplo. Essas possibilidades, essas exclusões e variações que demandam toda escolha é o que faz cansar. Mas o egotado está sempre em atividade, e é sempre para nada.
Isso nunca se conclui. Em algum momento a gente tá cansado de algo, mas esgotado é algo mais profundo, porque a gente se esgota de nada, por nada, a gente se esgota em função de nada, pelo nada e para o nada. 
Esse é nosso tempo e nós. Nós e o nosso tempo.

Jayme Mathias

domingo, 5 de dezembro de 2021

No princípio era o logos, e o logos estava com...

 Eu não ganho nada para escrever a porra desse texto.

É exatamente por isso que ele não precisa vir inteiro, acabado.

Vem em frangalhos mesmo.

“Só o resto”. Como a gente diz aqui no Ceará.

Escrevo pra nada, do nada que clama em mim. Escrevo porque morro, e o fim exige um caminho.

Poderia fazer qualquer outra coisa, procurar outro emprego, cuidar da vida dos outros, fazer um curso de informática, querer um celular novo, mas ao invés disso só quero escrever um texto novo, mesmo que ele não diga nada. Só para escrever, mesmo que seja num teclado, sem lápis ou caneta, um texto.

Não há nada que dê menos prazer em existir do que criar algo sem propósito algum, simplesmente com a nudez de estar aqui.

Eu ainda tenho esperança que um dia todos os sentidos decaiam para que nos reste apenas o nada à escrever.

A escrita tem o mesmo peso da fala?

Claro que não. A fala ocupa o espaço. A escrita ocupa o tempo. Ambos são história.

Nietzsche estava errado, Deus não está morto. Ele está caminhando para a morte, e é por isso que ele cria.


Paulo Victor de Albuquerque Silva.


domingo, 28 de novembro de 2021

Peter Prisco

Prisco era um sonhador. Não daqueles que traça metas, um sonhador acordado. Daqueles que fantasia e sonha enquanto vive. Nem tudo para ele era sobre realizar. Da vida dura que tivera, cedo aprendeu que as vezes, o sonho acordado é escapatória da realidade dura e triste que não escolhera.
Embora ciente de suas limitações, Prisco sempre se esforçou em imprimir em tudo que fazia, todo seu afinco e dedicação, de modo a realizar as coisas de maneira que atendesse aos parâmetros de uma justiça real, ainda que no seu mundo fantasioso.
Das muitas fantasias que criara, uma das mais nobres e preferidas caira sobre o Enem, onde ele frequentemente atuava fiscalizando provas, como chefe de sala.
No entanto, ainda a caminho do local, com sua cabeça cheia de problemas reais, Prisco mudava um interruptor em sua mente e tudo passava a se tornar bem mais interessante para ele. 
A calça jeans e a camisa branca se transformavam em terno azul Royal. Na cabeça, antes nua, materializava-se uma boina com um broche dourado e brilhante e nas mãos vazias havia agora uma maleta de garbo. Os corredores do colégio eram passadeiras que davam acesso ao que antes era uma sala de aula, mas que agora era o seu avião. O barulho do ar-condicionado era a turbina em aquecimento.
Prisco era agora piloto de uma aeronave. Mas não uma aeronave qualquer. O seu destino era voar para além de qualquer estado, país ou continente. Rumava a um lugar que tal qual nas suas fantasias era tão metafísico e ao mesmo tempo tão real. 
O futuro.
Os candidatos eram seus passageiros. As carteiras eram as poltronas que os acomodavam.
E assim, Prisco encarava aquela função tão invisível e sem brilho com a nobreza de um cavaleiro real.
Altivo e com voz de comando, passava as orientações aos candidatos então sempre atentos ao seu tom firme e polido. Ao se aproximar do início das provas, explicava que seriam 5 horas e meia de travessia em altitude de pensamento, e que cruzariam o oceano da introspecção. Revisava as informações de segurança frizando que, para evitar turbulências, estas deveriam ser seguidas à risca. Prisco não era só o piloto, era também o comissário e a aeromoça.
Os papéis e procedimentos eram os inúmeros botões e traquitanas possíveis de um Airbus dos mais sofisticados.
Fechados os portões e dado o sinal sonoro, as provas distribuídas transformavam-se em cintos de segurança, que deixavam todos afivelados em suas cadeiras prontos para a decolagem.
Ao final das provas os alunos desembarcariam em uma outra realidade, na qual seu destino final, seu futuro, teria sido traçado no "vôo".
Prisco protegia o teste poeticamente, de maneira que ele entendia o que ali estava em jogo.
Entendia a necessidade do paupável, mas reconhecia a chatisse de estar imerso em um mundo cru e descolorido, onde os processos são tão automatizados que perdem o propósito, fazendo com que muitos dos jovens ali nem soubessem ao certo porque estariam fazendo o exame.
Muitos consideram que Prisco não cresceu. Que vive preso em uma eterna terra do nunca.
Quando na verdade, creio que seja ele gente grande, de mais tamanho que a esmagadora maioria, que é possível que "passe pelo bosque e só veja lenha para fogueira".
Prisco busca os propósitos do seu ser, ao invés de clamar por algo que outro disse ser o ideal, ele segue como dizia Belchior, na "alucinação de suportar o dia a dia e no delírio de experimentar as coisas reais."

Deus te abençoe, Prisco.

Júlio César

domingo, 21 de novembro de 2021

 É a sensação de estar só que me faz escrever

Não aquela solidão como quem está de fato só

Não aquela coisa silenciada sem ninguém por perto

Não aquelas meditações provenientes da alma abandonada

Não aquelas coisas cartesianas de escrever de noite e no escuro

Não aquela coisa sem perturbação

Não aquela coisa de silêncio íntimo sem as coisas do corpo

Não

Não!

É a solidão de estar no meio de todo mundo

É a solidão de estar acompanhado

É a solidão de estar eu mesmo falando

É a solidão de estar escutando

É a solidão de estar conversando

É a solidão de estar junto e em bando

É a solidão de estar rindo e pensando

É essa solidão que me faz escrever

Ela me incomoda muito

Mas o pior de tudo: como eu diria que ela não me agrada?

Ela no fundo é insuportável, daí porque escrevo, mas se ela não fosse assim eu não escreveria

E toda força de escrita em mim vem do fato de que uma parte de mim é sociável e outra é um ser altamente antissocial

Aliás, é a contradição que me faz pensar

Eu me espalho no meio de quase todo mundo

Dos de direita e de esquerda eu até puxo assunto, engulo suas verdades

Sugo, porque toda verdade de ambos os lados é mentira

E isso faz de mim um ser que pensa

Quando percebo depois dessa contradição o quão solitário fui, viro antissocial

E só o texto me serve, porque aqui nem há verdade ou mentira

Aqui o que há é franqueza e honestidade

Na minha escrita só há sinceridades

Contra as quais nunca existem contra-argumentos 

ou se há mando-os para longe

São autoritários os sentimentos

Pode-se até dizer que sim, autoritários, fascistas, comunistas, mas são sentimentos reais

Eu os sinto, basta

Mas é porque no fundo cada sentimento quer algo, quer ser experimentado muitas vezes até como força contrária

Às vezes um sentimento vem só para ser contrariado

Acho que sei o que digo quando afirmo: minha solidão é social, a minha sociabilidade é antissocial 

Se não nunca escreveria

Se não fosse o contrário, a coisa besta, a burrice, jamais outra parte de mim seria algo que pensasse mais a fundo

E eu vivo da contradição

Porque todo sentimento exige forças contrárias

E tem gente que vem dizer que é dialética

É nada! Não entendeu foi nada! É muito mais louco, mais belo e bem mais real!

É uma briga de forças múltiplas e contraditórias

Ah se fosse apenas o contrário, seria bom demais num era não?

Mas não

São milhares de facetas do sempre diferente

Eu só reduzo à palavra para ter como escrever e raciocinar

Mas pegar uma coisa e só pensar no seu contrário num tem como não

Porque o contrário de estar só nem existe

Mas seu sinônimo eu sei bem

Pois tudo quanto é bom é tão difícil quanto raro!


Jayme Mathias Netto


domingo, 14 de novembro de 2021

Mais pesado que o céu.

 O mundo ruge

Abocanha o silêncio

Espreita o movimento da multidão na rua


Alerta aos sons, caminhamos

Nos orientando e desviando do acaso

Enquanto a cidade nos digere


A massa amorfa é a selva

Transpira concreto e fumaça

Seres acinzentados imanentes ao pó


Ruídos, barulho, zoada, vozes, (dissonantes)

Espaço preenchido com ondas sonoras

Hiperexcitação de corpos narcotizados


Todos com suas bengalas caminham

Desorientados pela música guia

Encruzilhados entre os sussurros da alma


Seus cajados tocam o solo na esperança que se abram os mares

Lembrando ao barro o derradeiro lugar do humano

Trombetas dispostas aguardam o sinal


Ao procurar um horizonte na história se voltam para o céu

Com nuvens fechadas sem frestas para a luz, distante

O sol não ilumina esse mundo, tomado por lustres taciturnos


A mesma abóbada celeste cobriu o céu de Baudelaire

Quando tomado pela escuridão do dia nos fez despertar ao evidente

"O que procuram nos céus tantos cegos?"

Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 7 de novembro de 2021

Singularidade nua



Andava na rua à procura de luz,
de um tipo que não se produz em lâmpada qualquer,
que ninguém nem sequer soubera ao certo explicar.
Perguntava a si como encontrar
à luz do luar, algo que brilhasse para além de um horizonte de eventos.
Como fugir dessa lógica circular do espaço-tempo?
Fugir do lamento e do riso preso.
Introjetava a tristeza no próprio peito, como num buraco negro consumindo tudo ao seu redor.
Buscava então no avesso, um novo começo que o salvasse do fim.
Uma saída, um cume, onde enxergasse além do denso negrume sem bordas que implodia seu existir.
Feito bêbado equilibrista,
caminhando na teoria das cordas, escapista,
em todas as escoras, procurou.
Não achava alça,
Não havia balsa de salvação.
Exaurido,
lutava sozinho há muito, 
uma guerra sem armas.
Estrangulado por um
arame sem farpas.
Onde toda saída aparecia ensaboada.

Andava na rua à procura de luz
Não de um tipo qualquer
Daquela que faz curva sem ficar turva depois de dobrar.
Já exausto de olhar para o além, se deixou desabar para dentro de si.
Achando que seria esmagado,
avistou ao longe uma pequena luz,
Algo como uma estrela que cabia na palma da mão.
Porém de potencial energético não mensurado por homem, ou ciência qualquer.
Afinal, seria possível haver na penumbra que temia ser evento implosivo, objeto tão exclusivo que luz demasiada irradiava?
Que fechasse a lacuna onde física e natureza humana finalmente se unificara?
De maneira peculiar, ilimitada, contemplativa a tal ponto,
mesmo tonto percebeu
algo que estava ali no âmago, mas nunca se viu, o que aparecia eram seus arredores imediatos. 
Cercado de matéria com um centro vazio,
Um fino espectro de luz incomum
Carente de horizonte, 
O topo de um monte
No ponto mais profundo da alma.
Diante de si encontrara, sempre presente, sempre sua.
A poesia.
O evento sem horizonte
Contemplação convertida em ação pura,
Singularidade nua,
Saída e entrada da porta do infinito.

Júlio César

domingo, 31 de outubro de 2021

Vagueio

Quando vagueio assim sem rumo, eu acabo por forjar uma meta. Faço isso para justificar para mim aquilo que os outros devem pensar que sou. Com isso, me protejo dos carros que passam, das pessoas que me conhecem e vem me cumprimentar, dos desconhecidos e também dos que gostam de conversar. Sei que aquela meta há, mas a escondo. Porque eu quero apenas os caminhos. Dentre os caminhos aquele que eu mais gosto é o que aparece na minha frente. Aquele que vagueia como eu. Porque o caminho, a rua, a via, a alameda, a travessa não tem rumo. Por elas todos passam, e com isso ela leva à tudo. Assim sou eu e assim meus pensamentos aqui dentro vivem.

Jayme Mathias Netto







domingo, 24 de outubro de 2021

Arte morta.

  Toda obra de arte depende da técnica, instrumentos necessários para o aperfeiçoamento do trabalho artístico, sejam eles objetos materiais ou mesmo a competência desprendida pelo artista. Ao laborar, o artista tanto pode especializar-se em uma técnica ou estilo específico quanto pode criar algo novo. A obra clama por técnica, criatividade, autonomia e ociosidade.

Durante o processo criativo o artista expressa sua intenção por meio de sua técnica, ressignificando objetos no mundo vigente. A arte ressignifica o mundo a cada reprodução. A ressignificação tem um duplo sentido: 1) por um lado reforça o significado simbólico-material do dado em um retorno do sempre igual; re-significa, re-produz. 2) por outro, re-significar seria a doação de um novo sentido, re-inserção do objeto no mundo numa implosão de percepções outras. Ao encontrar-se inserido no mundo o artista está fadado tanto a sua reprodução bem como a sua reelaboração. Em uma realidade social com um público que sempre exige novidades - onde requisitam uma arte de entretenimento, clamam por uma obra narcotizada que nos sobrepuja do peso atmosférico estrutural das grandes metrópoles modernas e suas mercadorias - delimita-se o tom com que deve produzir o artista. Entretenimento, arte de reprodução, intensivo afeto narcotizado, obras enlatadas e expostas em prateleiras industriais. Se o gênio artístico não quiser sucumbir unicamente na ressignificação reprodutiva ele deve fugir do público moderno assim como Zaratustra fugiu da multidão. Ele tem que continuar fazendo música como afirma Rogério Skylab em seu quinto álbum. Tem que parar de tocar “Smells like teen spirit” ou “Ana Júlia”. Uma arte enlatada está tão morta quanto o assassinato de deus pelos modernos humanos de massa. E para os artistas que ainda estão vivos: queimem suas obras que porventura foram enterradas em algum jazigo vertical de um supermercado cultural.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.


domingo, 17 de outubro de 2021

Parando pra pensar

Parando pra pensar, percebi que pouco tenho parado pra pensar.

Pensar dá trabalho
Não tem atalho na construção do nexo
É complexo construir o pensamento.
Senso crítico exige tempo e muitas chicotadas da vida nas costas.
Dizia Fiódor: "A consciência muito perspicaz é uma doença...Autêntica e completa."
Melhor mesmo é só reproduzir.
Dizer o que alguém disse um dia.
Parafrasear. 
Pra quê melhor?
Livra do julgo da autoria.
Alforriar o Copyright.
Se a teoria vem sempre antes e tá sempre a frente cronologicamente da prática,
deixa alguém pensar que nós pratica!
Pensar é "cringe", "old School".
Massa mesmo é ir com a "trend".
Sentir a "vibe" do já antes experimentado. 
Porque aí fica tudo "safe"...
Dentro da zona de conforto.
Parando pra pensar
Pensar pra quê?
Voltar aqui pra os meus "stories" que é melhor.
Meu Rosário tem pedra de maçã mordida.
Rezo ele todo dia.
Fiel a minha fé.
Um dia terei "views".
E farei de mim mesmo "news" de páginas de fofoca.
Nunca diferente, sempre igual.
Original. Made in Taiwan.
Parando pra pensar...
Desisti.

Vou voltar pro celular.

Júlio César


domingo, 10 de outubro de 2021

Eu também vou reclamar


Em vez de nada, o que tenho hoje em meus pensamentos são todos vocês, sabotadores de uma visão de mundo medíocre.

Renunciadores da vida como dádiva.

Todos vocês com esses sentimentos mesquinhos de caras e bundas que sentam e esperam, apenas sentam e esperam e nada mais.

Outra coisa não esperam da vida que levam a não ser um bom lugar para sentar e continuar esperando!

Todos vocês nessas poltronas chatas, bundas quadradas, que atrasam a vida para a sua mais exuberante superação.

Seios de onde mamam carimbos, protocolos, extratos, retiradas, cheques, vida amarrotada, papéis com tintas que não dizem nada.

Incapazes de se superarem, incapazes de serem outra coisa.

Dotados de ódio que diz mais pela raiva de ameaçar essas vidas que vocês levam.

Digo mais de raiva que de amor, pois iguais a vocês não quero ser.

Só vejo o gosto da cédula de dinheiro, nova, esbranquiçada como quem acabou de sair do útero bancário, máquinas de fazer dinheiro.

De vocês máquinas!

De assassinos do que vivo como momento ímpar!

De vocês é essa linguagem mal falada, facilitada!

Hoje querem tudo facilitado, mas nada fácil!

Que tédio uma vida que se mostra dessa forma! 

Que forma é essa que se mostra, que vocês mesmos não enxergam nem se perguntam se existe.

Que forma é essa de viver impossível para mim!

Ou até quem dera eu melhor encaixado, vivo e cotidiano sem vida nenhuma, mas pelo contrário sou carcomido por dentro, questionando o inquestionado, o valer a pena de cada segundo, cada situação, cada decisão.

E vocês sorriem como se fosse óbvio aquilo pelo qual sinto desespero e não tenho certeza, mas nem vocês tem a porra da certeza, aliás a certeza que vocês tem não é certa, e querem dinheiro, sucesso, uma boa vida, uma boa família, o bom cidadão, o bom homem!

Vocês fingem uma vida que é todo tempo ameaçada como se fosse felicidade. 

Covardes! Vocês são covardes mais uma vez. De relance, covardes e é tudo!

Ou quase nada!

Porque sentem medo de olhar para dentro e contemplar o vazio que são.

Porque não pulsam de vocês nada que seja vivo.

Pois o que vive e pulsa dentro de vocês são tolos assustados e assustadores de pessoas que não são vãs.

São vocês insesticidas de pessoas vivas de verdade!

Um atraso, espírito do atraso do mundo enquanto vida, da merda de vida que vocês julgam como real, mas pelo contrário preferem as lembranças de silhueta do dito desafio que a vida cumpre diariamente como se fosse coisa que se faça honra e conquistas inúteis, acalgoetes que não me deixam nunca em paz! Hordas de demônios e penduricalhos na parede com diplomas na parede fria nos salões coloniais!

Mas vocês ameaçadores não fazem só com vocês, vociferam ganham uníssono e sacaneiam com quem ousa ser livre. 

Vocês sacaneiam com quem ousa ser livre, porra! Vociferam a não-vida encaixotando o ninho da dádiva da vida humana transformam em dívida. Vão para lá com suas culpas, castigos e pragas, vão para lá vermes que adoecem, vão vão!

Vocês obram o preço mais barato dessa vida que sufocam!


Assinado a porra do Jayme Mathias Netto!

domingo, 3 de outubro de 2021

Uma xícara de café.

  O vício no café revela camadas do meu existir, foi ele que expôs minha labirintite e as vertigens da vida, me desvelou a necessidade do doce. Me inseriu em uma nova rotina em que sempre reponho os grãos que demarcam os caminhos do meu labirinto. Eu sempre preparo uma garrafa de um litro, a de quinhentos mililitros era pequena demais para mim e minha esposa. Ela fica em cima do balcão, entre a cozinha e a sala, uma garrafa preta, da cor do café. Me acompanha o dia inteiro, entre aulas, estudos, entretenimento. Quando estou merendando tomo café com leite, quando quero redobrar a atenção tomo puro. Na tentativa de diminuir o açúcar passei ao adoçante - um em pó -, foi o que me recomendaram. O café dita o ritmo do meu dia, na falta, tenho enxaqueca.

Hoje de manhã estava em casa e me encaminhei para a segunda xícara de café. Tinha uma garrafa quase inteira para esvaziar no decorrer do dia. Segui o mesmo ritual. Peguei a xícara, pus ao lado da garrafa, de posse da segunda menor colher que possuo, raspei um pedacinho do adoçante e coloquei no fundo do recipiente. Querendo satisfazer um desejo obscuro, completei com duas colheres de leite em pó o preparo. Então fui interrompido. Uma formiga acompanhou a doçura do leite em pó até o fundo da minha xícara. Talvez eu tenha interrompido o ritual labiríntico em torno do doce realizado pela formiga. Eu não queria nem matar aquele ser ou mesmo comê-lo, não fazia parte da minha cerimônia. Encostei a mini colher perto dela, ela subiu. Perdida correu sobre a colher, alcançou minha mão e, antes de chegar ao meu pulso, dei um forte sopro levando-a ao chão. Percebi que ela sobreviveu e continuou seu caminho, livre, à procura dos seus velhos desejos. Eu também fiz o mesmo, voltei ao meu desejo desgastado pelo acaso, mas agora um pouco mais feliz por vivenciar a liberdade da pequenina, que percorria seu mundo, sem sonhos, sem finalidade, tal qual quem prepara e bebe seu café com leite em um novo dia de migalhas cruzadas. Depois da conexão de todos os ingredientes com o líquido escuro, depois de ver a via láctea em espiral se formar dentro da xícara, pensei que talvez eu também poderia ser livre, sem sonhos e sem finalidade. Sai do balcão mais esperançoso com a vida e seus mistérios, talvez lá no fim, na alcova de nossos desejos ocultos, exista uma conexão entre todos os seres e as coisas. Mas foi na curva, quase na sala, no limiar do tempo de uma vida, que pisei, sem perceber, na formiga.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.


domingo, 26 de setembro de 2021

Ranhuras

Preencho esse espaço

com mais um pedaço de nada.
Encho ele com o vazio que estava em mim.
Em mais um regaço do meu avesso
me pego examinando as ranhuras do real.
Dos contrastes escancarados que ninguém vê.
Estampados na tv de led, nas manhãs de yoga e iogurte grego.
Nas noites de céu estrelado de traçante no Rio de Janeiro.
Preso em dilemas dimensionais da existência, examino a essência que ninguém mais sente. 
Tudo que encontro é angústia.
E a linha, cada vez mais indistinta, do bem e do mal.
Exercício hercúleo.
"Como o drible sem objetivo que se perde além da linha lateral".
E os espaços físicos ficam cada vez mais escassos.
Assinaturas digitais substituem momentos especiais.
Solenidades, reduzidas a QR codes
Não se ouve uma palma.
Na concha acústica sequer viva alma.
Apenas silêncio.
E está feito.
Outorgado mais um grau de imprestabilidade do sujeito 
que vê diante de si possibilidades tão próximas e tão equidistantes, inrreconciliáveis como os polos iguais de um eletroímã.
Resta tentar preencher o vazio dos outros
Para que, de alguma forma, pelo menos fique registrado
"Caso meu carro saia da estrada,
ou o avião que eu pegar decida que é meu último dia". Que quando você estiver só e assustado, não é só você que não está bem. Milhões de pessoas também não estão.
Pessoas infelizes e infelizes tem a mesma cara e se misturam na multidão de perdidos.
Mas como tudo que teve um começo, um dia esses dias encardidos encontrarão seu fim.

Já tem bastante tempo que não é apenas setembro que é amarelo. 
Mas o elo do ouroboros que une começo e final está próximo.
Em breve estaremos aptos a começar novamente.

Júlio César



domingo, 19 de setembro de 2021

Bike

Peguei emprestado o título do Syd Barrett para as artes da semana

Hoje eu tenho uma bicicleta 

E todo mundo pode ser feliz com ela

Livre para pedalar 

Vento no olhar

Pessoas pedalam eu e minha amada

Delicadezas acompanham o amor

Namorados na garupa 

Som de bikes livres

Pedalar um novo mundo 

Transporte urbano do futuro 

Perder-se na cidade com as próprias pernas 

Conectado com a cidade viva 

Desviar de cacos de vidro

Parar para passarem os passantes

Adrenalina da descida rápida 

Falta fôlego na subida 

Som das correias paradas e bike andando

Som do sininho na mão 

Olho as pessoas no olho elas me olham e vibram a mesma paixão 

Elas olham pra mim na bike também 

Feliz estão por passar em cada rua e suas saídas

Em cada alameda e suas avenidas

A cidade é um pátio de brincar 

Eu tenho uma bicicleta você também 

Eu tenho uma bicicleta e posso não parar 

Melhor remédio pro mundo não há: ter uma bike e pedalar 

Eu tenho uma bicicleta

E agora posso escrever sobre ela

Você pode dar voltas comigo e eu com você 

E o mundo pode ser diferente 

Com bicicleta todo mundo é criança 

Quem constrói o novo é a infância 

Eu tenho uma bicicleta e todo mundo pode ser feliz com ela 

Eu tenho uma bicicleta e sou criança 

Não canso nunca nela 

E a vida é mais feliz

Toda esperança tá nela

Eu tenho uma bicicleta e toda minha coragem tá nela

Eu amo os navegantes 

Eles têm bicicletas e todos dão voltas nelas

Sem rumo ou com rumo

A brincadeira é ter uma bicicleta

O fato é

Nunca vi ninguém que bicicleta tivesse e feliz não fosse


domingo, 12 de setembro de 2021

O fascismo e sua máquina de produzir ódio

  A sombra do fascismo continua circundando os corpos dos seres contemporâneos em nossa sistêmica sociedade de massa. Ele é fruto do corpo social industrialmente produzido em larga escala, do pensamento subjetivado, da linha de produção e sua vida enlatada. Por que movimentos fascistas não existiram em outros períodos históricos? O fascismo pressupõe um amontoado de indivíduos autômatos que sejam capazes de seguir ordens simples. Qual a maneira mais fácil de conseguir tal feito? Através do afeto irrefletido, imediato e moralmente básico, empatia reproduzida tecnológica e esteticamente.

Junto a toda reprodução técnica estetizante que sobrecarrega o sensorial humano, vinculada à produção de rebanhos coletivos, nos deparamos com um fenômeno das metrópoles oníricas, cidades iluminadas que retiram da terra as demarcações espaciais, construindo novos ambientes pluridimensionais que distorcem o tempo em um mundo de sonhos. O sonho do porvir, o sonho do progresso, da salvação, do paraíso, da moral pura e santa, totalizam os sonhos brancos, masculinos, héteros, cristãos, de consumo do capital.

Há perigo hoje do fascismo? A sombra do fascismo sempre existirá enquanto vivermos em uma estrutura social que garanta materialmente a produção em massa de indivíduos facilmente planejados, escalonados. O fascismo sempre trabalhará com ideias simples e claras, elas podem ser facilmente assimiladas e transmitidas por máquinas informativas, produtoras de afetos pré-fabricados.

Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 5 de setembro de 2021

Amortesalva

Tava lá pintado no muro.Em uma foto. Do Instagram.

Num muro de São Paulo. 

Nunca passei por lá, ainda assim me senti presente.

Porque a arte saiu da parede da foto, de repente.

Cruzou a divisa dos estados, mais rápido que qualquer avião. A tinta não foi suficiente pra segurar a sede. Ela vaga, na velocidade axônica. Como um parasita, procurando um coração hospedeiro.

Em dias estranhos, em que o silêncio  tem sido o melhor amigo, a arte é o estampido da bala do canhão, uma orquestra sinfônica, a ressoar na mente mais relapsa.

Palavras pintadas que cortam como faca o lobo frontal.

Colapsa o metabolismo basal do cerebelo.

Descompassando o ritmo do mediastino centrado.

E a dúvida? Amor ou morte? 

Sorte! De  perceber, sem nunca sequer ter ouvido o som que ela produz, no rolar da tela, numa foto, num muro, uma frase que até agora martela o juízo...um arranjo sintático com efeito lisérgico



Tava lá, pintada num muro, por alguém que eu não sei quem é, em uma foto tirada por alguém, não sei quem foi. E nem importa... Como uma flecha torta ricocheteou e bateu em mim.

 

Lá pintada, num silêncio que agora fala tanto na minha alma.

E tem gente que fala fala e não diz nada.


Amortesalva!


A arte também.

Júlio César Barboza

domingo, 29 de agosto de 2021

Releituras (a)gosto: dos dois aforismos eficazes

 1. O tédio é de onde brota a filosofia e seu distanciamento do mundo. Perguntar-se é querer ocupar-se. O marasmo é de onde vem todas as reflexões possíveis. Da falta de sentido de tudo, do distanciamento dos humores do homem. No tédio há certa constância de pensar e agir, mínima possível que convida à inação. O tédio e a preguiça compõem o ócio filosófico. O filósofo é um resultado de uma mente que pensa sem parar sobre o próprio corpo que não se relaciona com nada, porque está imerso na imobilidade do ser. Diante do crivo metafísico segundo o qual há o gozo de tudo abarcar porque é alegria, o tédio é a incapacidade de viver, de saber por que se vive, se são apenas naqueles momentos únicos que a vida diz sim. Simpatizo com Cioran e seu Livro das Ilusões, pois é um dos únicos que pensaram isso, um dos únicos que acessaram isso. É essa dualidade, que como eu defini certa vez em Outrora, segundo a qual a vida tem dois pólos de sentimentos ontológicos, duas certezas imediata, a alegria suprema onde tudo é vida e a tristeza profunda onde tudo é dor. No entanto, digo agora, diferentemente de quando disse em Outrora, esses são sentimentos fugazes como toda e qualquer certeza nos nossos tempos. E é aí onde reside a preguiça metafísica. Ela reproduz a forma do tédio, de onde brota todo perguntar-se e todo autojustificar-se que se fez com o nome de Filosofia.

2. Entediado é Platão, entediado Aristóteles. Entediado das mudanças que eles denotam corruptíveis em ambas metafísicas. Entediado por métodos como formas de travas. O pensamento como trava do tempo. Pensamento como trava da mudança. A ideia como ficção e fixação da pausa. O maior perigo é detectarmos essa vontade em nós mesmos. Nós mesmos travando uma metafísica que não quer deixar escapar nada. Nós mesmos lutando contra um fluxo e morrendo de medo. Nós mesmos preocupados. Nós mesmos depressivos. Nós mesmos, os ansiosos do nosso século. As doenças, o terrorismo, as ameaças de uma vida que se pôs contra qualquer mudança e nós mesmos travamos taradamente uma luta interna contra a vida como devir. Nós mesmos, os que não compreendem, incutimos essa metafísica nas mais profundas formas de nosso pensar e de nosso agir.

Jayme Mathias Netto

domingo, 22 de agosto de 2021

Releituras (a)gosto: Apresentação do livro O Homem Ao Avesso

 O “Homem ao avesso” de Jayme Mathias Netto, não é um convite, mas uma inserção tátil ao espaço devastado em que um senhor, espinhento como os cactos do sertão brasileiro, habita as grandes cidades modernas. L, seu nome, é um velho ranzinza consumido pela insônia e atazanado pela enxaqueca fisiológica do século XXI, clamores de um corpo antigo aprisionado pela vigília constante do niilismo contemporâneo. O despertar dele consigo, em sua solidão, traz à tona o reconhecimento de si. Entre o eu e a loucura, L é o homem ao avesso, pois nele o que vive e age não é sua pele, são suas vísceras. Daí seu corpo pulsar libidinosamente com os cheiros, os paladares da cidade, tudo aquilo que termina nas entranhas do seu espírito ao avesso em carne. É o retrato do homem moderno que abarrota sua consciência com as mais variadas vivências em choque nas grandes cidades, mas que guarda nos porões de sua memória, lembranças e sonhos reprimidos.

Como um corpo que fala, as memórias reprimidas de L se voltam contra o tempo saturado da vigília. Sua memória é feita de Fortaleza, a cidade lhe devora, já que L é um alimento orgânico a céu aberto. Seu paladar ostenta dos mais refinados aos mais fétidos aromas da capital cearense. Em alguns de seus robes, como a pescaria, acompanhado do velho amigo K e outros pescadores amadores, permeiam as memórias de L com bagres, anzol, cachaça, e muita prosa. Entre Fortaleza e Paris, se apaixona por tudo aquilo que há de autêntico entre as duas cidades, sua idade avançada lhe garante uma narrativa cheia de temperos do tempo que carrega no estômago. De uma família de classe média, e mesmo com todas as regalias materiais deixadas por seus familiares através de uma herança, L vivia sob a abóbada imperiosa do inferno, ao centro, com o seu cetro, a entidade diabólica que regia o seu mundo na insistência da dúvida, um Daimon totalmente seu.

L é a representação do homem em meio à multidão, infiltrado à uniformidade da massa, que antes de tudo não se reconhece nela, ele se impacienta, a odeia. A insônia sentinela no centro de uma vida infernal abarrota a consciência de L levando-o ao seu extremo fisiológico, uma vigília que faz reluzir em sua mente saturada os pormenores da vida autômata da coletividade. Tal ambiente leva o personagem a perceber uma das mais devastadoras atmosferas diabólicas do mundo contemporâneo, o eterno retorno do sempre igual da vida metropolitana. A condição humana pertencente à L, com sua velhice, enxaqueca e dores no estômago, desvelam uma vida de vísceras, onde não existem mistérios, nem segredos, ou outros dos melhores mundos possíveis, apenas as migalhas desertas do atual. A vivência do sempre igual que se acumula aos seus pés produz a existência do homem esgotado da vida cotidiana. Seu horizonte tem como limites a própria terra, nada além dela. Até mesmo seu amigo K era o seu avesso, L é avesso ao mundo, interno e externo. No mundo de L não encontramos sonhos, seu estado de vigília não permite.

No ponto alto da narrativa do idoso nos deparamos com sua estratégia de resistência à reprodutibilidade homogênea do atual, quando L nos apresenta as lembranças do seu deslumbrante relacionamento com a personagem M, seu grande amor. Confesso meu deslumbramento pois, acredito ser uma das descrições românticas mais lindas que já tive contato. Neste ponto Jayme Mathias Netto revela o quanto é complexa sua análise em torno do existencial humano contemporâneo. E é assim, no olho diabólico da repetição metropolitana que L propõe um ação de amor/resistência, o ato da pausa, do fim, da interrupção, somente ela garantirá o vir a ser da singularidade do amor, do ser apaixonado, da vida autêntica, de outras vidas, vividas ao avesso.


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 15 de agosto de 2021

Releituras (a)gosto: Desutilize-se

 PROcurei temas, dilemas, dúvidas,aporias


CRASso vácuo criativo deixado pela microscopia do terror


STIgmas que tão cedo serão esquecidos


NEIxente, cria, como provavelmente Krenak diria:


"Você não tem que achar utilidade em tudo."


Júlio César

domingo, 1 de agosto de 2021

Releituras (a)gosto: num borrar do tempo, meu amigo

  

por vias dúbias

num segundo me clarifico

num errar do tempo que é meu amigo

que faço ser mais alto que o tempo que medito


quando medito sobre o tempo 

que o tempo pára quando medito


que não há mais tempo 

que suficiente seja


que o tempo encurta quando me dilacero 

que o tempo desacelera quando acelero


que por vias curtas

num segundo me intensifico

num borrar do tempo, meu amigo

que posso ser mais alto que o tempo que medito


que o tempo passa e memória acaba

que o tempo voa e o futuro me povoa


que o tempo volta e meia me consome

que não há tempo para a preguiça


que o tempo se sente e não se tem

que a idade parece que é desse jeito também


que por vias turvas

num segundo me repito

num rio do tempo, meu ofício

que devo ser mais alto que o tempo que medito


Jayme Mathias Netto






Releituras (a)gosto: Onírica

  Estamira está a caminho de casa carregando o seu carrinho de supermercado. Eram 23 horas e o dia tinha lhe proporcionado grandes resgates de objetos valiosos à humanidade. Andava na contramão da história sobre a ciclofaixa, sem desviar sequer uma única vez do choque ciclístico que seguia o caminho indicado nas placas. Já perto da esquina de sua casa, lugar constantemente frequentado por baratas e ratos, enfiou a mão no saco azul anil encostado na calçada que, como cápsula do tempo, lhe trouxe o sonhado celular A 40 da Siemens de 2005, “16 anos de desejo e finalmente o encontro”, fala consigo Estamira após contar nos dedos quantos anos haviam se passado até o derradeiro encontro. Empolgada, adentra em seu lar, cumprimenta seu companheiro Jorge e caminha à estante dos celulares abrindo espaço para o seu mais novo aparelho, proveniente do mundo onírico de sua juventude. Com ele, soma-se o quadragésimo quinto telefone de sua coleção, número há muito esquecido por Estamira que já superou a fase de calcular a quantidade de seus objetos.

Na manhã seguinte ela é acordada por um fiscal da prefeitura que recebera uma denúncia de poluição urbana. “Poluição? Poluição num é coisa de lixo? Quem trabalha com lixo é meu marido e leva pra reciclage, eu pego tesôro, coisas valiosa, importante”. Atrás do entulho de máquinas de escrever sai Jorge aborrecido, “eu disse que ia dá merda, eu disse que só a porra. Senhô se preocupe não, hoje mermo já jogo tudo isso fora. Levo lá pá reciclage, fica a uns três quarterão daqui”. “Não, num leva não. Nem a pau. Aqui num tem lixo não. Isso aqui senhô é um A 40, cum ele você fala cum qualquer outro de longe, a distância mesmo, é uma invenção moderna, um luxo. Essas máquina aqui, escreve sem precisá de caneta, direto no papel, tem até umas pilha de papel alí pra escrevê. Tudo invenção da  modernidade senhô, tudinha. Pra quê jogar fora? Tô rodeada de progresso senhô, do futuro, de lembrança da ciência e da gente. Qual é a diferença da minha casa pro shoppim?”. Jorge, ainda raivoso, se vira para o fiscal e retruca Estamira, “Ela é laudada senhô, toda vida fala isso, ela acha que é moderna, num sei o quê”. “Ai é Jorge!? A modernidade é lixo agora? A tecnologia é lixo? Os sentimento, as memória são lixo? As mercadoria são lixo? Tu que é um lixo”! Enquanto isso, máquinas pesadas estacionam sobre a rua de mão única e se preparam para a limpeza urbana. Estamira, com os olhos esbugalhados e assustados, observa suas mercadorias, toda tecnologia empregada, toda ideia criada, os sonhos materializados, todo o progresso humano acumulado quando, de súbito, desaba sobre os escombros somente desejando que seus restos sejam depositados na caçamba de lixo.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 25 de julho de 2021

Julho do Leitor: Das vozes que me compõem

Como iniciar uma escrita que seja permeada por potências de vida? Isso soa tão difícil ao estarmos imersos em afetos tristes...  fico à espreita de encontros com corpos que potencializem a vida... 

Deixei-me habitar pelas inúmeras forças e intensidades que me atravessam durante uma aula, uma conversa, um brincar, uma leitura. Precisei reinventar-me perante a este cenário, onde as paredes de casa presenciam muito mais coisas do que antes, paredes que se tornam também local de labor, paredes que não somente acolhem e aconchegam durante o descanso de um dia longo vivido “lá fora”. Paredes que hoje nos separam de nós mesmos, em um caso singular de saúde pública, questão de vida ou morte, e tudo que perpassa essa ideia de viver e morrer.

Uma busca incessante de agarrar provisoriamente alguns dos movimentos que me capturaram em meio a escritas, informações, imagens, e que me escapam com sua força mobilizadora e arrebatadora. Onde marcas são deixadas umas por cima de outras, marcas pequenas, grandes, rachaduras, infiltrações, sulcos e porosidades que me habitam e coexistem. Justapostas, sem uma ordem a priori. Coexistência de tempos e atualizações de memórias. Estando à espreita do que pode acontecer na produção deste tear artesanal descontínuo chamado vida.



Relações de forças e intensidades que pedem passagem e atravessam o corpo criando potências. Pode ser um afeto, que nos toca, perturba, abala... São processos onde participam diversos componentes que se contagiam, que se compõem. Como uma maçã, que foi arremessada por um galho em sua maturidade, e ao cair no chão, intensidades a atravessam, a arrebatam. Diversos componentes, forças e corpos a atravessam em um estado sinérgico... mudando seu corpo, tornando-a outra, quem sabe, semente...

Me tornei paseandera, recolhi fragmentos, me tornei estrangeira de mim, criei espaços ainda desconhecidos. E nessa viagem subjetiva fui me compondo com diferentes paisagens de mim mesma, sem volta, sem permanência...

Marcela Bautista Nuñez


domingo, 18 de julho de 2021

Julho do Leitor: Nostalgia

 


O doce orvalho das birras de minha meninice

Rapidamente se transformou em gotas gélidas na maturidade

Fazendo-me ter saudade dos tempos de pueril tolice

Desejando retroceder o relógio voltando noutra idade

Do dejejum da manhã e preocupação simples em o que assistir

Agora o turbilhão constante de pensamentos inenarráveis

Transfiguram-me em um ser duvidoso e confuso quanto ao por vir

E é initeligível o farfalhar violento desses dizeres inefáveis

Jean Sousa Pinto


domingo, 11 de julho de 2021

Julho do Leitor: Há momentos que o peso da vida é ciclópico

Há momentos que o peso da vida é ciclópico.
Atmosfera fatigante, encoberta de blocos de fumaça sem vida.
Corpo dilacerado, delongado  entre inércias sombreadas.
Uma parte de mim almeja o pulsar visceral, embora o despenhadeiro acolhe-me aconchegadamente.
Quero inebriar-me na sua volúpia.
Contrações lunares ao desprenhar um novo ser.

Elaine A.

domingo, 4 de julho de 2021

Julho do Leitor: Buraco Negro

 

Sua existência provada como uma faca crava em nossos corações. Ora, como se já não nos bastasse a baixeza da nossa mediocridade intelectual para com o sussurro das folhas e dos pássaros.

Mas o sofrimento aqui é vento, sopra forte e isento. Que até parece acalento, mas enchem reservatórios de lágrimas e de suor, em plena noite de frio entregue ao relento.

Ecologia dos doentes, frente a terra plana dos dementes e o meu corpo que sente a singela conexão com o pó. Uma dor de dente me acomete, adiante de mais um ente querido que adoece, o que é isso?! Pensa o jovem enquanto adormece.

Mas que complacente, o meu corpo, que teima em lembrar-me que és pó, puro pó.

Falo aqui do meu ócio, que desintegrou os meus ossos e me pôs em meu lugar...

Noite fria do sertão estrelado, nebulosas no céu e eu penso firme enciumado: que a via láctea tem uma escada, ao qual nos leva da água, ferro, prata, ouro à glória do espaço-tempo.

E nem mesmo à vontade, maldade, amor e bondade, escapam a atração da verdade, que nos leva ao encontro de uma nave, que do alvorecer ao crepúsculo de nossos tempos, nos oferece viagem num murmúrio quase que sem vontade: é tempo de voar.

Repetirei na vantagem, que escapa à mim e à idade - estão certos, há tanto tempo que nem mesmo a relatividade esteve tão à vontade pra dizer: da luz ao pó.


Luiz Tiago Soares

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Apresentação do livro “O homem ao avesso”

O “Homem ao avesso” de Jayme Mathias Netto, não é um convite, mas uma inserção tátil ao espaço devastado em que um senhor, espinhento como os cactos do sertão brasileiro, habita as grandes cidades modernas. L, seu nome, é um velho ranzinza consumido pela insônia e atazanado pela enxaqueca fisiológica do século XXI, clamores de um corpo antigo aprisionado pela vigília constante do niilismo contemporâneo. O despertar dele consigo, em sua solidão, traz à tona o reconhecimento de si. Entre o eu e a loucura, L é o homem ao avesso, pois nele o que vive e age não é sua pele, são suas vísceras. Daí seu corpo pulsar libidinosamente com os cheiros, os paladares da cidade, tudo aquilo que termina nas entranhas do seu espírito ao avesso em carne. É o retrato do homem moderno que abarrota sua consciência com as mais variadas vivências em choque nas grandes cidades, mas que guarda nos porões de sua memória, lembranças e sonhos reprimidos.

Como um corpo que fala, as memórias reprimidas de L se voltam contra o tempo saturado da vigília. Sua memória é feita de Fortaleza, a cidade lhe devora, já que L é um alimento orgânico a céu aberto. Seu paladar ostenta dos mais refinados aos mais fétidos aromas da capital cearense. Em alguns de seus robes, como a pescaria, acompanhado do velho amigo K e outros pescadores amadores, permeiam as memórias de L com bagres, anzol, cachaça, e muita prosa. Entre Fortaleza e Paris, se apaixona por tudo aquilo que há de autêntico entre as duas cidades, sua idade avançada lhe garante uma narrativa cheia de temperos do tempo que carrega no estômago. De uma família de classe média, e mesmo com todas as regalias materiais deixadas por seus familiares através de uma herança, L vivia sob a abóbada imperiosa do inferno, ao centro, com o seu cetro, a entidade diabólica que regia o seu mundo na insistência da dúvida, um Daimon totalmente seu.

L é a representação do homem em meio à multidão, infiltrado à uniformidade da massa, que antes de tudo não se reconhece nela, ele se impacienta, a odeia. A insônia sentinela no centro de uma vida infernal abarrota a consciência de L levando-o ao seu extremo fisiológico, uma vigília que faz reluzir em sua mente saturada os pormenores da vida autômata da coletividade. Tal ambiente leva o personagem a perceber uma das mais devastadoras atmosferas diabólicas do mundo contemporâneo, o eterno retorno do sempre igual da vida metropolitana. A condição humana pertencente à L, com sua velhice, enxaqueca e dores no estômago, desvelam uma vida de vísceras, onde não existem mistérios, nem segredos, ou outros dos melhores mundos possíveis, apenas as migalhas desertas do atual. A vivência do sempre igual que se acumula aos seus pés produz a existência do homem esgotado da vida cotidiana. Seu horizonte tem como limites a própria terra, nada além dela. Até mesmo seu amigo K era o seu avesso, L é avesso ao mundo, interno e externo. No mundo de L não encontramos sonhos, seu estado de vigília não permite.

No ponto alto da narrativa do idoso nos deparamos com sua estratégia de resistência à reprodutibilidade homogênea do atual, quando L nos apresenta as lembranças do seu deslumbrante relacionamento com a personagem M, seu grande amor. Confesso meu deslumbramento pois, acredito ser uma das descrições românticas mais lindas que já tive contato. Neste ponto Jayme Mathias Netto revela o quanto é complexa sua análise em torno do existencial humano contemporâneo. E é assim, no olho diabólico da repetição metropolitana que L propõe um ação de amor/resistência, o ato da pausa, do fim, da interrupção, somente ela garantirá o vir a ser da singularidade do amor, do ser apaixonado, da vida autêntica, de outras vidas, vividas ao avesso.


Paulo Victor de Albuquerque Silva


terça-feira, 22 de junho de 2021

Julho do Leitor 2021

 Como todo ano, estamos fazendo a chamada de textos dos leitores do nosso blog Vivissecção.

A ideia é que no mês de julho, aos domingos, postaremos textos dos nossos leitores.


Como alguns leitores se interessaram pela nossa escrita, pelo conteúdo do blog e querem também espaço para suas ideias e sentimentos, a gente decidiu abrir esse espaço de produção de pensamentos dos leitores. 

Uma​ forma de interagir com novas ideias e questionamentos.

O conteúdo dos textos são experiências singulares, poéticas e filosóficas, são vivências de recortes de intensidade que nos trazem de volta à vida, que nos fazem sentir de outra forma e também questionamentos viscerais.

Caso você queira postar seu texto, envie para : jaymemathias@gmail.com ou, na aba direita do nosso blog, está, a partir de hoje, disponível a opção de nos enviar uma mensagem com seu texto. 

Envie:

 seu texto com seu nome (nome do pseudônimo caso queira), 
 e-mail para contato
 e suas redes sociais (Instagram, Facebook etc.)

Enviar textos até 10 de julho de 2021

Jayme Mathias
Júlio César Dantas
Paulo Victor de Albuquerque

domingo, 20 de junho de 2021

34

 Das poucas palavras

Que por hora me escorrem dos dedos

Sem grandes enredos e tramas

Sem grande comédia ou drama

Derramo aqui o instante da alma.


Às vezes não tem motivo, intuito, razão

Senão sair da penumbra do peito apertado.

O que ficara guardado, que arrocha o nó do miolo do peito

bem no miocárdio e só passa quando sai.


Não tem moral, rima, script nem personagem.

É produção e produto.

Motor e engrenagem.

Funciona porque vive, não obedece a nada senão a si.

Necessidade que não necessita.

Apenas flui.


Nem tudo se funda em propósitos externos.

Nem tudo que se busca são carros e ternos.

Mas a autossuficiência dos seus próprios processos.

Naquilo que secreta e constantemente agrada, satisfaz e aperfeiçoa

E que ninguém sabe.


E quando o exterior é só caos,

pandemônio e pandemia são sinônimos de democracia.

Talvez olhar para dentro e se derramar sem pensar no agrado alheio seja o melhor a fazer.


Júlio César

domingo, 13 de junho de 2021

Minhas multidões

 Esses dias, me toquei de uma coisa. Sou operário das palavras. Capatazes cobram rapidez e qualidade do meu trabalho diário de tradutor com elas, mas eu faço as minhas revoluções. Há muito gozo em tratar mal os capatazes. Uma palavra mal escrita e eu riu da cara dela, deixo ela lá. Ela tá feliz, a bichinha. Elas riem entre si. Juntos quebramos o sistema. Adeus aos cifrões e padrões sociais. Minhas palavras só gostam de ser inventadas criativamente. Para todo o resto a gente faz nosso trabalho muito mal, a gente faz maior auê. Pus até isso no meu currículo e minhas cartas de recomendação: "Trato mal os capatazes e as minhas palavras também fazem o mesmo". Sou real amigo delas e não deles. Elas são escudo e lança da caça da minha fome de coragem. Juntos, vamos até o infinito e deixo essa minha declaração. A declaração que não convenceria ninguém a me contratar. E tá aqui estampado para qualquer um. Mas faço isso pelo amor delas e pelo meu amor próprio. Ah, as minhas palavras artísticas, quero delas o bem e o melhor! Para todo o resto eu digo au revoir!

Jayme Mathias Netto

domingo, 6 de junho de 2021

Placa de venda

 No dia 21 de Fevereiro deste macabro ano de 2021 escrevi um texto sobre minha produção artística. Hoje, resolvi escrever um outro, novo, contra mim mesmo. Decretar minha finitude, meu limite, o ridículo e efêmero de minha arte, pensamento que, para a filosofia analítica, nem rigor é capaz de possuir. Agora, de forma livre, posso afirmar que não sou um artista/pensador, sou um produto. Quem sustenta a produção de minha arte é meu público. A arte que não é minha, nutre as multidões de plástico e oferece-me no envelope como presente. Num dia mastigo cifrões, noutro rumino máquina. A arte que me devora, faz de mim sua mercadoria.

Escrevo para servir de consumo, embalagem, reciclagem, escrevo para acomodar, confortar, reprisar. Me enquadro em texto como água da piscina para que, sem correnteza, não deságue em rio. A reificação de mim é coisa, habita mercados, alcança prateleiras, irrompe na fachada das vitrines iluminadas do sempre igual. Já vi o que a indústria cultural provocou em grandes artistas, uma arte de vidro.

Existe no capitalismo uma maravilhosa relação de subserviência entre o artista e seus consumidores. A arte que deve ser definida pela lei da oferta e da procura. Mas a arte é plastívora, ela devora o ser do humano fazendo dele obra sua. Quando o produto toma corpo no mundo ele se reproduz nos rótulos, embalagens, nos valores, e fica ali, empacotado, lançado na caixa do tempo e seus espaços fantasmagóricos.


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 30 de maio de 2021

Central do Brasil

 

Fulano furou a fila da vacina.

Forjou o atestado, se fez de abestado para melhor passar. Olha a sina!

Mas a quem ele enganou além de si?

Quem ele lesou? 


Morreram 28 na última chacina, entre as vítimas, meninos e meninas sem nome, sem dó.

"Normal, imagina! Morador de comunidade, se não for bandido, viciado, no mínimo envolvido com gente errada era." Diz Vera, após ingerir sua ritalina adquirida sem receita.


Quantos deles você realmente conhecia?


A dor a qual sentimos, somos sujeitos por amar. Não conhecer é normalizar o brutal, seguir o fluxo, tocar a vida banal sem sentir o ardor da ferida causada a outrem.


A coisa muda de figura quando alguém que amamos toma o tiro. Quando "está a nossa altura".

Quando somos nós, a vítima e o bandido.

Quando quem eu firo reflete a dor sofrida, de volta em mim. 


O outro não é o próximo.

Há um muro espesso entre os dois.

O outro é só mais um indivíduo, sem rosto, improfícuo, sem depois posto que se morreu, foi porque "Deus quis".

Inevitável era.


O outro é alguém que morreu e tá coberto ali, no chão do mercantil há 2 horas, enquanto eu compro o meu Danone grego de amoras.

Sobra frieza, falta tudo.


Ou é alguém que para muitos, só serve de porteiro, camelô, faxineiro, que mesmo após séculos de escravidão, nunca deveria ter saído do navio negreiro.


O outro é um quadro macabro para o qual ninguém quer olhar, o da indiferença. Pois quem olha e enxerga, como racional que é, pensa, que até no adágio: "que vença o melhor", é preciso partir da mesma largada. Pois do outro pinga o mesmo suor, mas o sprint é bem mais longo.


Outro nunca cidadão, sempre marginal. Um número presente em uma página que abro do jornal da matina.No meio de tantas outras mortes, desgraças e infortúnios. 

Cova rasa na campina, defunto sem nome, sem flor, sem lápide.

Aí eu te pergunto: de que adianta nutrir a crença em uma força maior, de misericórdia infinita, quando chama de maldita a mãe que recebe o bolsa família, "sem fazer nada"? Quando chama de doença o desejar do humilde de mudar pela luta.


Ninguém quer olhar o quadro porque sentir é transformar o outro em culpa, ressentimento, lembrar do livramento de estar vivo e produtivo.

De ser cobrado a fazer o bem sem olhar a quem e, ainda assim, escolher virar a cara.


Porque furar a fila sempre vai ser mais fácil que levar a bala por alguém que você nem conhece.


Os "próximos" a quem você amou e tem amado como a si, eram outros? Ou só mais de você mesmo?


Que Dora, você foi para os milhares de Josués que circulam por aí?


Mais um dia na central do Brasil.


Júlio César

domingo, 23 de maio de 2021

2789


O ano é 2789, mil anos após a dita revolução. Há mais números no ano que na minha conta bancária. Todo mundo tem em média dois mil dinheiros na conta para viver o próximo mês no mundo todo... Marquei minha ida ao médico num App desenvolvido por um PhD em TI do MIT, hoje deve ganhar uns dois mil dinheiros. Meu médico era PhD em Harvard e pedi para ele me receitar um colírio descoberto por uma farmacêutica PhD na Sorbonne, ambos devem ganhar uns dois mil dinheiros. Encontrei antes de entrar, na calçada um PhD em Filosofia da Universidade de Heidelberg, pedindo uma grana para o almoço, ele deve ganhar um mil dinheiro e pede uma grana complementar na calçada da padaria. Fui ao mercado, o caixa era PhD em contabilidade na Universidade de Princeton deve ganhar também seus dois mil dinheiros. Preparei meu almoço em casa, mas antes, cumprimentei o dono do restaurante do lado de casa e disse que hoje não ia comer lá, ele é PhD em gastronomia em Oxford e renomado na Cordon Bleu de Paris ganhando seus dois mil dinheiros. De tarde, liguei para o pedreiro colocar meus móveis da cozinha. Ele e toda sua equipe formada na UCLA ganhando seus dois mil dinheiros. Marquei minha terapeuta, ela deve ganhar mil dinheiros e também pede na rua do supermercado uma grana para complementar seu mês. Fora isso, a rua estava cheia de mendigos, todos eles escritores e poetas que não chegam nem à metade de mil dinheiros por mês, então pedem uma grana a mais todo dia, letrados e formados com cinco idiomas ou até mais, dos clássicos aos contemporâneos. Sabem todas as filosofias, as teorias políticas, as contradições sociais, estudam a fundo as relações humanas e conhecem o humano demasiado humano como a palma da mão. Aí eu dormi com os olhos atentos numa palestra de um economista da USP que faz isso para complementar o seu mês, pois ganha também menos de mil dinheiros. Ele dizia que os multimilionários são cada vez mais minoria e aí eu soube, com isso, que todos nós trabalhadores somos cada vez mais especialistas no que menos importa, justamente por sermos incapazes de mudar nossa sociedade humana demasiada humana. Tudo o que é humano é marginal. Peguei um livro de um marginal na estante e falei para o barbudo na capa: meu caro amigo, o problema não era a alienação. E dormi... amanhã será o ano 2790, um número a mais que não tenho na minha conta bancária. Feliz ano novo, caro Carlos Marcus!

 

Jayme Mathias Netto