domingo, 29 de dezembro de 2019

2020: uma odisseia na terra



Pela janela, nada de carros voadores, longe do teletransporte, só se pode contar com a sorte para chegar na hora marcada. Amarante olha pelas venezianas e do que vê só conclui regressão.
Na tv a retrospectiva do retrocesso.
Um ano inteiro, desde janeiro, resumido em miséria, tragédia e status quo. Mantido, remido e glorificado.
Mais um ano de seca no nordeste, sem que reste quase nada a quem já não tem. Segue a redundância do cabra da peste, que sofre mesmo é de fome e endurece que nem pedra. Sob o povo, jamais pairou tamanho torpor. Defronte a sucessivos causos gritantes, repercussões gigantes, começam e terminam em 140 caracteres, ou menos. Amarante pensa, pega o caderno e escreve. Depois de muito tempo. A letra demora a assentar, acostumado com o dígito, esquecera de sua tão familiar caligrafia, garranchuda, mas legível.
Nas linhas, incompreensão.
"Como nos distanciamos dos carros voadores?" Indaga. No pensamento a ideia de repetição se concretiza sem alternativas, a quebra dos paradigmas é cada vez menos alcançável. "Eu poderia ter feito diferente!" Poderia?
Se somos a semente daquilo que plantamos, provavelmente somos monocultivo e, da soja, somente soja virá. O que de daninha houver é arrancado na mão e na enxada, ou envenenado pelo herbicida que tolhe o diverso. Amarante pensa ser uma daninha indomável, resistente a tudo, a germinar no entulho, ou na lage recém batida. Pensa mais Amarante! Age mais! O jovem tenta escrever diferente, mas só sai igual. "Será que também sou soja?" Pensou em falar sobre política, desistiu. Nesse âmbito nem tinha o que escrever. "Seguimos mansamente, sendo gado perdido no próprio pasto." Pensava.
Somos gado sendo abatido um a um com a pistola de pressão, no mesmo brete.
Sai um, entra outro.
Sai um, entra outro.
Celular nas fuças.
E tome.
Tome.
TOME!
 Sem ter sobre o que escrever, o estalo do óbvio adveio. "Se somos os porcos no campo de centeio, nós é que temos que mudar e não o que nos cerca!"
"Para quê buscar solução no espaço longínquo, se aqui restamos? Que odisséia parece mais 'odissêica' que a da vida na terra?" Amarante achou! A brecha quase microscópica que o coloca no patamar de daninha. Escreveu a tarde inteira. Mais questionou do que concluiu, mas viu na poesia o adubo pra crescer mesmo contra a enxada e o arado de aiveca.
Finalizou com um aviso: "Esqueçam os carros voadores e desenhem para si mesmo asas, para que, caso daninhas forem, não sejam arrancados do chão, a não ser por si mesmos."

Júlio César 

domingo, 22 de dezembro de 2019

Gaspar

A mendicância sábia dos olhos vidrados de Gaspar dizia muito que nem tudo tá perdido nesse céu metálico. O ódio virou uma espécie de religião no peito dos homi, mas eu ainda confio no sorriso e queria mesmo era roubar de deus a beleza da verdade. E não era tão tarde da noite quando decidi voltar pra sarjeta e encontrei o véi no ônibus, não deus, mas Gaspar que é muito mais importante. Encontrei e foi do nada. Ele tava indo também pro barraco em Jaures. Ele vinha com Carlito, o cão esbofeteado, desnorteado, doido e pura a lama seca. Os dois pareciam que tinham matado um bixo e enfiado nas calças. 
- Gaspar, seu carne de pescoço, tu tá pura a mijo!
 - Num gasto mais um centavo de banho público, Zé. Os fia da puta dos seguranças num libera a gente pra num espantar turista, sabe como é né? Último banho faz um mês ou mais e foi junto com os rato que nadavam ali no canal St Martin. Eu fiquei pura a peixe.
- Sei como é, mas faz tempo marvado tu tá sumido demais...
- Ah disgramado, mas esse mal cheiro também é tu né? Achava que era o Carlito aqui peidando.
O cão tava pôde e ninguém nem via os zói do bixim. Escondia todos os tipos de carrapato e piolho na pelagem cinza. Ele me olhava sem reconhecer, mas também veio até mim com preguiça de latir roçando na minha perna. Se falasse, ele diria "vai tomar no cu, e deixa eu peidar na sua cara". 
E eu fiz um carinho nele, mas quando vejo de volta Gaspar tá de olhos vidrados, como quem tem uma alegria de repente:
- Toma um euro procê. Um procê e procê e procê - saiu dando pra cada um do ônibus, em vez de pedir. 
Eu sei lá que merda ele tinha tomado pra não pedir nosso ganha-pão, ele tava distribuindo nosso lucro pra todo mundo.
- Ei cara de bagre, que merda é essa. Tá louco de ácido é mané? Parece que tá comendo rato pra cumer...
Desajeitado, tentei falar pras pessoas: senhoras e senhores perdoem nosso mau cheiro e estragar essa noite maravilhosa, mas nos devolvam, por favor, cada centavo que nós demos, é nosso trabalho de um dia inteiro e o colega aqui não tá muito bem.
Voei nos peitos de Gaspar e empurrei o gatuno pra ele sentar e as pessoas se afastavam fácil por conta do cheiro.
- Dá aqui de volta sinhora, obrigado viu deus te abençoe... obrigado garotim, deus passe na sua frente. É que meu amigo ali tá meio doido. Sabe como é né? E eu fazia gesto com as mãos pra criancinha rir.
- Mas profeta vocês vêem poucos hoje, né? – Gargalhava Gaspar de novo olhando no fundo do olho de cada um, já em pé. Seus olhos iluminavam e ofuscavam os olhos dos outros.
- É um euro fio duma mãe, um euro, como é que a gente vai pra casa sem nada? O pessoal do barraco tá fazendo a cota pra gente se mudar antes que o verão acabe. - Eu dizia pra ele acordar daquela viagem da cabeça dele. - Tá maluco das ideia fi de puta? 
- Zé, eu lá quero saber de dinheiro, eu num sou lacaio do capital não porra. - Ele respondia de olhos ainda vidrados e sorria como quem tivesse descoberto algo - eu sou a verdade. - ele dizia arrogante como um bosta.
- Gaspar, pera porra, tu tá é com dor de barriga, truta. – Sinhô, desço na próxima. Ai não, é aqui que aperta. Pessoal num chamem a polícia não viu, já tamo indo já viu? - Eu dizia pras pessoas e cochichava baixinho pro Gaspar: - Ei zé ruela, para de gritar, porra.
Até que ele profetizou algo que me fez rir e chorar ao mesmo tempo:
- Pra cada conservador reacionário foi isso que a extrema direita investiu todo esse tempo procês votar. Um euro fias da puta. Esses fia da puta em qualquer canto do mundo só investem isso em vocês, vocês ai nesses celulares de merda nem olham pro céu. Eu escapei da armadilha e hoje tou aqui pra vos revelar a verdade.
Eu não me contive e dei-lhe um abraço rindo da sua ideia, querendo disfarçar meu choro. 
- Pessoal, desculpe viu? – Eu dizia.
- Basta cês ir pra escola e aprender a contar. Não sabiam disso? A escola não vos ensina. Eu vos ensino: vocês valem um euro não mais que isso.
Um garoto bonitim dos zoi azul disse comendo uma batata do mc lanche feliz:
- Eu sei sim meu senhor.
Eu comecei a rir. O menininho encucado não entendia. 
- A verdade tá escancarada. Foi apenas um euro ou menos, só isso já basta. Não é muito. 
Eu só conseguia rir cada vez mais e um vulcão estendeu no meu peito. Dizem que os doze profetas sentiram isso com cristo. 
- Se a escola tivesse ensinado a calcular, não tinha um euro que pagasse esse voto docês. O adestramento escolar que todos chamam de ensino é barato demais pro poder. Esses celulares aí nem se fala, é migalha. Eles querem garantir que cês num façam esse cálculo, saibam o preço de tudo, mas o valor de nada.
Saí correndo daquela porra de ônibus. Gaspar e Carlito saíram atrás mandando todo mundo ir tomar no cu. Compramos vinho barato com o resto que sobrou. Entramos no barraco. 
Ninguém falava com a gente. A lua foi brilhar noutro lugar e eu abraçava o marvado como um velho bandido. Eu fui dormir com o velho mendigo da rua e cão de botequim e só pensava em tudo que ele dizia naquela noite. Carlito, desconfiado comigo ali desistia de latir. Só eu chorava porque eles pareciam anjos dormindo. Eu nunca tinha visto anjos pelo ar, mas Gaspar me falava do amor. Dizia que aquilo que os fia da puta do estado e do capital falam não se deve jamais ouvir, e que o amor sempre vencerá o ódio... E a vida fazia muito mais sentido agora. Eu abracei Carlito pra dormir:
- Sabe Carlito? A porra do ódio dos nossos tempos é uma moda passageira que se vai tal qual fumaça. O amanhã quem sabe vai ser outro dia.

Jayme Mathias 

domingo, 15 de dezembro de 2019

O professor e a pós-verdade.

Pensar que os estudantes das escolas básicas, em uma época permeada pelo fenômeno da pós-verdade, são completamente influenciados ideologicamente por seus professores, demonstra a falta - para não dizer ignorância - de uma análise detalhada do que seria a realidade escolar por parte daqueles que defendem tal hipótese. Diariamente somos bombardeados com informações do mundo inteiro através das redes sociais. Se na origem histórica da imprensa contávamos basicamente com as notícias impressas nos jornais, agora dispomos do rádio, televisão, computadores, celulares, tablets, da internet em sua totalidade. Saímos da escassez, ou melhor dizendo, de uma realidade restrita em que a informação era privilégio de grupos específicos, para a era virtual da notícia globalizada. Hoje temos acesso à informação, somos ativos no processo de busca. Que transformações se fazem presentes no campo cognitivo dos indivíduos contemporâneos que em poucas décadas se viram deslocados de uma sociedade da informação restrita, para outra, da informação ativa, virtualmente dinâmica?
A sociedade informatizada, permeada pelo fenômeno da pós-verdade, impõe aos profissionais da educação um novo desafio: despertar nos discentes a manipulação crítica sobre as informações ininterruptamente produzidas e que são transmitidas aos mesmos. Ou seja, a nova geração de estudantes chega às escolas, não enquanto tábulas rasas em branco, mas com seu sistema cognitivo diariamente sobrecarregado ideologicamente. A mesma necessidade com o cuidado do conteúdo que se faz presente no planejamento das aulas por parte do professor, que procura tanto evitar entrar em contato quanto disseminar notícias falsas em sala, deve ser uma máxima ao alertarmos a juventude quando se deparam com o bombardeio de informações virtualmente modificadas. Mas qual seria a relação entre a notícia falsa e o virtual?
A virtualidade não é algo novo na história da humanidade. Tomemos como exemplo o amor platônico - ele é uma idealização virtual de um outro ser que habita os espaços da alma do amante. A virtualidade é um fenômeno ideal, mas que em alguns casos se pretende concreta, ou melhor dizendo, transfigura a materialidade em nome do seu ideal. Daí afirmarmos a diferença entre a mera mentira e o fenômeno pós-verdade. A primeira tem por objetivo esconder uma faceta da realidade circundante, a segunda propõe uma transmutação do real em detrimento da virtualidade, permeada e estruturada pelo cunho ideológico. Aos educadores cabe a tarefa de despertar a percepção cognoscível sobre as camadas de realidades construídas pelo mundo pós-moderno. Dizer que as escolas encontram-se atreladas a um plano doutrinário da esquerda - seja com a “ideologia de gênero”, “marxismo cultural”, “sexualidade infantil”, etc. - diz muito mais sobre o projeto de politização da virtualidade do que sobre a materialidade existencial da prática escolar. Eu, enquanto professor do ensino básico brasileiro, reconheço a importância dos aparatos técnicos digitais em nosso contexto escolar, mas devo, eticamente e politicamente alertar sobre nosso novo papel educacional na promoção da distinção cognitiva das camadas entre a virtualidade e a concretude do real.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Sucesso

Sempre mal agradecido.
Nunca notei que os pedaços do meu coração, comidos por mim, encheram meu próprio bucho.
Morrer não morri.
Aqui estou e mais uma vez regresso.
Talvez o sucesso não esteja no que dizem que está.
Sou campeão de mim mesmo, todos os dias.
Venço fantasias vãs de uma vida que nunca tive.
Será o sucesso, excesso e falta ao mesmo tempo?
Excesso de fracassos acumulados na cicatriz que mal fechou e já arranquei outro pedaço com a boca. 
Falta da vicissitude de abocanhar o outro, falta de malícia, de maldade, de achar que o mundo é dos mais espertos e não dos mais bondosos.
Fato é que me devoro e, aos poucos, sobrevivo de mim.
Já não sou o mesmo, pois o tecido que cura é novo.
E juntando minhas migalhas é que enxergo o quanto elas me salvam. 
É do verbo que se fez carne e foi devorado, que hoje sou nova folha em branco, amassada talvez, mas inteira.
E dessa maneira decidi que meu sucesso é na medida em que venço o pior de mim.
E arranco pedaço a pedaço o que me dói. Me reescrevo.
As armadilhas que nunca encontrei, foi porque tinha caído em cada uma  delas, estava só. Sobrevivi das migalhas. Do pedaço que se desprendeu em cada uma.
A elas sou grato, são meu prato principal e sobremesa.
Sou canibal de tudo que me desagrada.
Dizem que triste é quem precisa de muito. O intuito é cada vez mais deixar de precisar. Até se bastar.
Meu analista diz que talvez eu esteja com síndrome de Estocolmo, e me apaixonei pelo meu captor. No caso eu mesmo. Até perceber que também sou meu próprio analista. Seria ele uma migalha de mim?
Talvez eu o devore, se ele me encher o saco!
É provável que eu esteja com a doença da vaca louca, vai saber!
Certo é que do ponto de vista que é vista de um ponto, não sobrou pedra sobre pedra  do que me cerca.
Mas minhas migalhas permanecem aqui. São minhas.
Sucesso é encher o bucho de migalhas.
O coração, hoje, serve apenas de saco de pancadas, melhor então que esteja no meu bucho.
Minha casa é o mundo, o caminho que ficou atrás não importa mais.
Sucesso é como me despeço de tudo que dispenso.

 Adeus!?

Júlio César 

domingo, 1 de dezembro de 2019

Café

Nas inúmeras substâncias da vida, eu fui capaz de chorar como uma criança simplesmente porque tomei café. O fluxo de consciência foi tão rápido e dilacerante, logo pela manhã, na superdose que havia feito, que passei a delirar. Minhas mãos suaram frio e eu escrevia algum objeto de meu trabalho num apego intenso e verdadeiro. O meu estômago exprimia-se todo. Eu tinha alta sudorese. A respiração era ofegante e os pensamentos muito acelerados. O nervosismo da mão em estar digitando rápido produziu textos que tive que reiterar completamente, porque comi muitas letras e consoantes como a traça. Era uma ansiedade que parecia que eu estava guiando para algo bom. Como se o medo pudesse ser guiado. E tomei à frente com muito trabalho a fazer e fiz, fiz de uma forma mais conectada à própria raiz de onde me fiz como trabalhador. Eu me vi exalando o cheiro de café para todos os lados e bebia água para ver se passava logo. Cerca de duas horas depois julguei-me mais tranquilizado, quando me acometeu uma azia e uma fome ao fim da manhã e para hora do almoço. Fiz um poema ao café nesse meu delírio único. Posteriormente, quero que a água me faça assim e quem sabe mesmo o vento, o sol, a chuva, o cantar dos pássaros, eu quero delirar com qualquer coisa de forma alegre. Hoje vi uma traça andando pelo meu livro. Não matei. Depois de saber dos meus delírios ativos, deixei também a traça comer letras e consoantes, talvez ela esteja tomada pela vida. Uma alegria que ainda não fui capaz de ver, mas apenas de sentir que existe. Eu era uma traça cósmica, que consumia livros e replicava outros tantos. Ela podia estar delirando na química preta das letras e confabulando que era no cosmos um homem lendo e digitando. Acontece às vezes, e sem querer, a vida nos apresenta esses sorrisos.

Jayme Mathias 

domingo, 24 de novembro de 2019

Fracasso.


Não me lembro quantas vezes eu tentei.
A vida atenta, nos joga migalhas.
Aí você junta os pedaços. 
O problema é quando a estrada está cheia deles.

Seguindo os rastros percebi uma coisa, comia os pedaços do meu coração.
Errante, procurei as armadilhas na estrada.
Nunca as encontrei.
Conclui que aquelas migalhas tinham sido arremessadas por mim, só não sei quando.

Acho que tudo foi um engano.
Estava no labirinto de retalhos meu, e esqueci que haviam saídas.
Claro, comi as migalhas.

O que pode ser feito é uma nova refeição, até encontrarmos outros pedaços.
Autofagia do verbo, que na bíblia se fez carne.
Não há esperança no prato, antes o gosto do que a digestão.

O bucho vazio, é a única certeza que nós temos.
Eu só queria falar sem tá de boca cheia.
E no bucho, NADA!

Sempre achei todos os restos da vida, nunca o que importa.
De dia acreditei que poderia ser diferente, mas somente recebi o que tenho agora.
Nu, à beira do acontecimento, esperei algo grandioso.
De grande só meu eco.

Não sei até quando continuar tentando.
Meu analista disse que devo estar de bucho cheio.
Meu Pai empurra garapa de suco pra descer mais rápido.
Meu filho pergunta por que demora tanto.
E eu? Erro.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 17 de novembro de 2019

Homens comuns não olham para o céu



Homens comuns não olham para o céu.
A não ser quando se reflete em uma poça d'água que, por acaso, cruza seu caminho inoportunamente.
Ele tem na mente outras prioridades.
Homens comuns, não no sentido de ordinários ou medíocres. Esse texto não é sobre ser superior, mas sobre o homem comum, de comunidade.
Imersos em gothans particulares, pendurados em celulares, tablets e smartwatchs.
Homens comuns não olham para o céu, pois tem no rosto um véu que deixa espaço apenas ao "necessário". O extraordinário está fora de questão. A preocupação está no salário e nos descontos do fim do mês.
Não é também, como se ele não quisesse olhar, mas pelo dinheiro que se torna tempo e que reflete a folha de pagamento de onde se tira o sustento dele e de mais três.
Ele deixa de olhar, pois como se fosse um jogo de pega varetas, está tão imerso naquilo que urge sua atenção, do que tem diante de si, que pouco importa contemplação das estrelas e a lua, o que é vital está nas ruas, é tirar a próxima vareta sem mexer nas outras cem.
E assim, distraído, atenta somente ao requerido, esquece a colorida mistura de azul celeste, laranja e negro, enquanto anda pelos becos apressado para fazer a próxima integração.
Ser homem comum é cada vez menos escolha, cada vez mais necessidade, a cidade é o ímã que magnétiza seu olhar.
Mais dia menos dia, a paisagem é uma só, muros de concreto, prédios e engarrafamentos. Reclamações e lamentos regem a maioria de seus murmúrios.
O homem comum não olha mais para o céu e passa a ser eterno réu do julgamento do sistema. "Por que não ganhou mais?" "Por que deixou de lucrar aqui?" "Anda no mundo da lua?" Antes fosse...seria bem mais doce o destino de quem anda nas nuvens.
O homem comum não olha para o céu e quem perde com isso é a vida, regida pela pressa do que "tem que ser feito" por um sujeito cada vez mais rejeito de si.
Eu mesmo tenho esquecido...não por escolha, mas por precisar estar dentro da bolha, no mundo onde o trabalho dignifica.
Roguo a mim mesmo e a quem mais possa se interessar, com esse texto, um lembrete, que não se encolha e deixe de olhar para o céu.

Júlio César 

domingo, 10 de novembro de 2019

O efeito do malfeito é o defeito perfeito sem ter feito acordo com o sujeito

"É plágio, é plágio!"
Em frente à biblioteca nacional
Mas a língua aqui não é a mesma de Portugal
"É plágio, é plágio!"
A inspiração erra a língua portuguesa
Não obstante preserva a sua beleza
"É plágio, é plágio!"
O poeta que vive de erros brasileiros de Portugal
O poeta que faz poema sem erros é banal
"É plágio, é plágio!"
A língua que se preserva
é a língua que erra naqueles que não fazem reservas
"É plágio, é plágio!"
A contínua variação de coisas que se atestam mal
Diariamente não é plágio ou defeito, é real!

Por Jayme Mathias 

domingo, 3 de novembro de 2019

Rogério, o laboratório do céu não tem estrelas.

Quando Rogério Skylab escreveu sua coletânea de sonetos “Debaixo das rodas de um automóvel”, ele sabia bem quem era o seu público. Não me refiro à análise daqueles que propõe uma percepção cômica de sua obra, pautada em uma loucura consciente, mas aos espectadores das grandes metrópoles pós-modernas, que consomem o mundo descartável enquanto transitam entre fluxos sensoriais com seus choques do inconsciente. O consumo descartável, que lê com os olhos, sem profundidade, na leitura dentro do ônibus, no intervalo da programação, do cronômetro enquanto o arroz seca. Curto. Rápido. Um corte. É a vida tanto do escritor quanto do consumidor de plástico contemporâneo. Skylab: poeta da superfície. Neurótico melancólico da metrópole. Serial Killer da produção.
Lembro-me quando começamos o processo de vivissecção do corpo social em nosso blog e compreendi um pouco mais como é estar debaixo das rodas. O fluxo nos transpassa. Na linha de produção a vertigem não escapa do texto, o papel (tela) é o leito do tombo. O dissecar nada tem de cirúrgico, não é um processo prolongado, não visa a cura. Ele é uma fábrica serial do corte. O corte não é para o abate, não consumimos a carne. Somos descartáveis, tanto quanto o saco preto que cobre o cadáver. O tempo infernal, que é o agora das grandes cidades, nos obriga, cada vez mais, a cortar apressadamente a carne. Não há tempo para todo o tempo do mundo.
Aqui estamos novamente, tu e eu, na mesma linha de produção. O que nos separa de Rogério Skylab é somente o modelo do automóvel, máquina desgovernada sem freio de mão. Enquanto tomamos um café, em mais um dia de labor, escrevo esse texto para justificar minha breve despedida.
Fim do intervalo, ao sair não esqueça de descartar.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 27 de outubro de 2019

Padeiros do silêncio

Quantos poetas seguem silenciosos entre os passantes da rua?
Quantos miram os olhos na lua ensaiando o não dito?
Em uma multidão, quantos dão à escuridão o palco e escrito de suas palavras?
Quantas estrófes presas no regurgito, quantos versos sufocados no grito que nunca rasga a garganta?
Quantas Clarices, quantos Drummonds, quantos Alcântaras, sem emitir o som, da âncora de suas palavras tão necessárias?
Escondidos atrás de uniformes, de necessidade, de saúde, de trabalho e educação?
Quantos Bukowskis deixaram de escrever pelo caos que rege suas rotinas, pela falta de gasolina ou por não terem pago a conta de luz?
Quantos Nerudas seguem na rua usando surradas Bermudas e pedindo um trocado?
Padeiros travestidos no silêncio da roda que não para de girar.
Engolindo seco métrica e rima, rolando morro acima suas sinas, empurrando seus fardos inadaptados ao mercado.
No tempo em que a palavra é mais arma que afago, quantos Saramagos são calados pela necessidade? E se ao invés de mais armas e quartéis, tivéssemos mais Rachéis de Queiróz?
E se cada quina do mundo fosse um  "Café Java" ou um "restaurante Iracema"? Imagine a cena!
Se se multiplicassem os Antônio Sales por todos os lugares, se houvesse em cada beco um Lívio Barreto?
Como seriam os ares? Hoje tão poluídos de blasfêmia e difamação vaga.
O fato junto à história atesta, a arte não cessa, ela está entre nós! Eles estão!
A míngua da poesia é a sua não declamação. Mas ela ainda segue escrita até achar outra língua de quem como com um choque dê ao coração novo batimento.
Como foragidos e anônimos, detentos com armas de transformação da alma, todos os dias, eles passam por entre nós, despercebidos, silenciados pela mão invisível, mirando o intangível, alargando o limite da razão.
Esperando o dia em que presenciarão novamente o rito que se conclamará na convocação:

"Padeiros do mundo, uni-vos!"
O mundo precisa de pão!

Júlio César

domingo, 20 de outubro de 2019

Eles não soltam a mão de ninguém!

...Seja bruto ou líquido é mais-valia
Imposto, obrigatório ou de livre vontade
Conquistado e expropriado
Certo ou errado, indepedente
Sempre há força em excedente
Daquilo que ainda chamam dignidade
Do boi morto no prato diário
Estado é a violência sutil
E porco, como somos, comemos tudo
Crendo abundante sermos
Ele é amigo-irmão do capital febril
Andam de mãos dadas e piscam nos olhando
Vendem tudo e não tem valor nenhum
Querem nossa própria percepção desapropriada
Do nosso espaço e do nosso tempo
Afinal, gostamos dos cacarecos e dejetos axiomáticos
Lá onde os tentáculos desses dois polvos ainda vão
Leviatã que ainda se expande e cresce
Com nossa energia e força voraz
Não é à toa que crianças brincam de Slime
Estética amorfa dos dois irmãos e amigos
A violência do extremo oposto que o fazem borbulhar
Para nos pegar sempre desapercebidos
E eles sorriem gargalhando
Aquilo que no fundo é nosso lento suicídio...

Jayme Mathias

domingo, 13 de outubro de 2019

Infante

Lira sempre foi forte, de um jeito que eu sonhava ser, bem como quando as telas nos iludem. Forte. Passava o dia inteiro mergulhada na vida, encontrava nas veredas sempre o destino, às vezes o acaso. Era de fácil conversa, de bom ouvido, daquelas que escutam o silêncio, ouvem o som do abismo.
Nunca esqueço o dia que teve uma conversa com um senhor de rua. Os céus sabiam dar seu tom ao diálogo, grunhiam, até tudo desabar sobre suas cabeças. Lira absorta, não ouvia os anúncios do céu, tinha ouvidos para o velho, ele era gigante, desmontou Lira.
Voltou pra casa debaixo da tempestade. A chuva era tanta que afogou suas lágrimas. Ninguém percebeu, era somente roupa molhada.
- Cuidado com o resfriado, tire essa roupa.
O vestido novo saiu, mas a roupa encharcada de sofrimento posta pelo velho, dormiu em seu corpo.
Daí em diante nada foi igual, o gosto das coisas mudou, as nuvens lembravam nada além de chuva.
- Antes elas tinham o peso do algodão.
As conversas encontraram novos rumos, estava perdida. Na estrada, as placas sinalizavam todos os caminhos, nenhum era ela.
De volta ao lar, só havia uma pessoa que poderia acionar o alarme de incêndio. Deságua em mim.
- Eu juntarei os seus pedaços.
Disse.
“Em mim”? Seria Lira… eu?

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 6 de outubro de 2019

Anagrama adaptado

Permaneço fatalista!

Sendo assim, não tente me dizer e mostrar que

Aquilo vejo é a metade cheia do copo e há terra a vista

Porque no final do dia

Não há luz no fim do túnel, não há saída

E não é ilusão achar que tudo dá certo no final, que a vida não é uma ferida que

"A esperança é a última que morre!"

no final, lembrarei o quão fatalista eu sou, o quanto o sangue escorre

E nada do que me digam vai me fazer crer que

existe um lado bom em tudo

Não importam quais os meios,

O fim não é suficientemente bom para ser celebrado, que ele é mudo, defronte das soluções e problemas alheios

Porque diante dos fatos não há argumentos que me façam crer que

Se não tá tudo bem é porque não chegou no fim, você vê

Porque cada vez que olho o quadro geral penso

Será que sou tão pessimista assim ?

(Leia, de baixo para cima)

Ps:
O que define o significado das pinturas é a maneira a qual olhamos para elas.

(Texto adaptado de Abdullah Shoaib)

Por Júlio César

domingo, 29 de setembro de 2019

Ratatatá !!

Aos pés de um pequeno balcão meio púlpito, meio palanque, permanece Clarisse. A cara pintada, mas não é palhaça, ao menos ela pensou que não fosse. Diante dela uma multidão branca, enfurecida, permanece Clarisse. Brados de pessoas que só gritam e nada ouvem, permanece Clarisse.
E fala em vão.
Espera por uma brecha para ir até o banheiro prantear na privada.
Não há intervalo.
Eu quero ir pra Dubai! eles bradam. Clarisse reza às 3 da manhã para que o salário caia logo logo, enquanto o escroto cliente a enraba  por trás na frente das duas crianças. Clarisse levada à desalfabetização funcional para respeitar todos os pedidos da companhia aérea e todos os direitos aos clientes. Até  onde vão os vouchers  distribuídos por Clarisse? Até  quando ela vai doar a alma para o bem estar da clientela? E os homens  de direitos e deveres que a circundam e sorriem com ironia dizem: você vai perder o emprego, se não me garantir um voucher e um táxi. Clarisse arrombada. Dubai, Paris, Londres, qualquer nome desse é  mais importante que o seu. Todos eles vão esquecer quando baterem uma selfie na Torre Eiffel, no Big Ben ou em qualquer símbolo que justifique enrabar e empalar Clarisse dia após dia, dando o nome disso de trabalho e dignidade. Charles ou Clarisse... os mesmos pedaços de carne que escafederam-se ao sabor do capital. Porque minha conexão para se batizar no Rio Jordão é sagrada, minha filha! Clarisse sendo esfolada pela selfie mal tirada e que muito provavelmente, dentro de horas será  completamente esquecida num cartão de memória qualquer. Clarisse fudida pelos direitos de quem defeca a indigestão de tudo que engoliu de um sistema podre!
Clarisse indigesta. Traquitanas que giram a engrenagem movida à mão de obra humana, um moedor de cana onde jogam todos os dias homens e mulheres... Em nome do caldo que alimenta a tradicional família dos quintos dos infernos! Mal deglutida é Clarisse pelas camisas da cbf, e  por quem brada  que aeroporto é  igual rodoviária e que a democracia causou tudo isso. Ela mesma, empalada Clarice, levada a acreditar que podia decidir, decidiu também por um número qualquer naquele dia fatídico. Papai, papai, escandaliza o pequeno Rubens! Quero chegar logo na Disney! Quero o Mickey, papai! Enquanto o pai vermelho como um pimentão, fode Clarisse sem dó nem piedade! Chame o gerente sua puta! Um número qualquer de protocolo e a própria Clarisse decide também, sem assim saber que fodia a si mesma, e Rubens, o Mickey e o papai também escolhiam por se autosabotarem, numa espécie de voyerismo na frente da plateia, que agora resolve colocar a mão na massa dos seus fetiches particulares, mas chamam isso de trabalho, dinheiro e dignidade. Quando os dois filhos de Clarisse, que nem sei o nome, porque também já fui engolido e deglutido por essa narrativa, enfim, quando eles iriam a Disney? Com essa pergunta na cabeça  ela engaveta as etiquetas, sorri aos mesmos putos que desfilam chamando isso de direitos do consumidor, mas amanhã  eles embarcam em paz e pra ela só mais um dia de trabalho normal. Seu chefe bate nas suas costas. Assustada como uma égua domada, ela olha para trás e ouve com medo: "Clarisse , hoje não há  mais atraso!"

Por Jayme Mathias e Júlio Cesar

domingo, 22 de setembro de 2019

O lar de Fransquinha.

A poeira vem com o vento, às vezes com o carro que passa.
É sertão, interior do ceará. Nas pedras, rastros da minha infância. Nas árvores, rastros de menino. Nas cadeiras, rastros de conversas, se for de balanço, o rastro é mais velho.
A placa da estrada sinaliza Itapeim. Pra mim, Cruzeiro.
Na entrada, a casa de forró de frente para o cemitério, do sagrado ao profano.
Após a curva um outro mundo se abre, distante da civilização e próximo do peito.
Ao centro desse universo a pequena igreja acolhe a vida seca.
Em mim, até hoje, tudo se resume ao centro cortado por dois desvios, o da volta e o do rio.
Minha imagem do sertão dá uma volta de 360° graus em torno da igreja.
Vixe! De lá virei bicho, risquei o chão, corri de abelha, joguei bola e bila.
Eu vi o tempo parar, se arrastar entre as horas.
Ao chegar a noite vinham as histórias misteriosas nas rodas de conversa.
A Cruzeiro noturna é outra cidade, habita meus sonhos.

Essa noite voltamos. Para mim o tempo não parou, tenho idade, mas Cruzeiro, não tem tempo.
Retornamos à igreja, mais tarde, ao cemitério. Hoje não terá forró.
Em frente a estrada está a casa de minha tia Fransquinha, dando boas vindas ao seu mundo. Por muito nos acolheu com toda a calma, sempre tinha uma cadeira à mão.
Da cadeira, assistíamos o filme da vida narrado por minhas tias e tios, o cenário, Cruzeiro.
Família reunida, muita comida, lembranças, boas risadas e lágrimas.
Nesse dia o centro da viela não é mais a igreja, é o caixão.
Dentro dele, o fragilizado corpo narra no silêncio o que de nossas vidas carrega.
Cruzeiro que tanto me ensinou sobre a vida, agora me revela a morte.
Talvez sempre tivesse me falando sobre isso na entrada, da poeira do forró ao pó do cemitério.
Antigamente, o misterioso Cruzeiro era para mim uma morada de sonhos. Hoje tem outro rosto, falta tia Fransquinha.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 15 de setembro de 2019

Luiz

Ah Luiz, se eles soubessem,
o quanto a vitória significa pra nós,
se conosco estivessem, engodados nos cegos nós,
debaixo do fogo na trincheira,
se subissem a ladeira,
descalços no sol do meio dia.

Ah se eles soubessem,
o quanto quisemos não ser quem somos,
para só então descobrirmos que não queremos ser mais ninguém além de nós mesmos.

Porque hoje, diante da ocasião, percebo que não existe esmo no êxito
e a persistência trata de ser apenas  mais uma tentativa,
De resistência a loucura, de uma responsabilidade a qual não se opta, que se incuta nas costas de quem ainda não cuida nem de si.
E de repente carrega várias vidas na mochila, junto aos livros.

Ah Luiz se soubessem que a vida não escolhe, que ela não alisa,
que engole quem se encolhe, que não suaviza,
Que só há guisa de conclusão se for por meio da peleja
que de vez em quando, tomar uma boa cerveja é desafogar da pressão.

Que não há cereja no bolo
que não há perda sem dolo,
ainda que de um fim de semana de luxo da aldeia,
se antes não estiver na "pêia" de um UFC, onde os adversários são hidráulica e química,
se não correr na vêia a vontade de mandar a fitopatologia para o escambal.

Talvez, se eles soubessem Luiz, seriam gratos, gratos por tudo,
até pelo ossobuco, pelo feijão com gorgulho, pelo que se acha no meio do entulho,
talvez entendessem que o que importa não é o embrulho, mas o presente,
de viver com saúde  e milagrosamente sorrindo de contente,
no final de um dia de cão.

Ah Luiz se se pudesse medir a luz que irradiava dos olhos de uma mãe, refletidos numa sala cheia de doutos e bacanas, pessoas de primeira, com vida ganha,
Em plena segunda feira de fim de semestre regular.
Se pudessem ver além da foto tirada do celular
o que se esconde por trás do diploma

Se se pudesse pesar as noites mal dormidas, os penares da vida, nenhum papel jamais obteria tal gramatura.

Talvez se eles soubessem, entendessem meu choro bobo,
ao soar da leitura da ata,
do Soares que realizou o sonho da mãe,
de falar bonito igual professor,
palavras complicadas que creio eu, talvez, a maioria ela não entenda,
mas que soavam mais belas que o poema que ensaio agora nessas linhas poucas.
De ver o "seu menino" transformar em páginas toda a dor em um projeto que mede o labor de quem tá no pé do morro, onde uma vez esteve e transformar toda dor em indicador de um caminho para viver melhor.

Como um farol que "alumia" a cumieira do morro é que morro de orgulho de ver o Luiz transformar linha de costura e algodão doce em sonho realizado, como se fosse mágica, só que não.

É Luiz quem diria, que a tal da "filusufia" daria as caras no final das contas, que faria mais uma vez meu dia melhor, só de ver a felicidade e o rasgo de elogios à "IDEA"  de quem subiu comigo descalço a ladeira.

Por Júlio César

domingo, 8 de setembro de 2019

Erro gramatical

Sobre a má fala e má escrita, prefiro. Um texto sem defeito, só texto é. Sem pessoa. Texto intacto, duro, bem feito, é terrível. E do contrário, a maior delícia é ver um texto interessante que escorrega num erro gramatical. Ah! ali constatamos: "tem alguém, talvez". Não falo dos erros reproduzidos. Falo do erro genuíno, do erro bem feito. Esse é delicioso. O "foi sem querer" de alguém que escreve bem e escreve coisas interessantes. Um escorregar de uma letra a mais ou a menos, uma vírgula, um erro de concordância, uma repetição desnecessária, tão natural quanto o redemoinho que se infiltra no vento. Ele causa até surpresas, quem está lendo, ou ouvindo de repente desperta. Eu mesmo, quase dormindo, quando vejo isso, acordo, e, por isso, agora acordei de verdade para isso. Pois quero mesmo é que escorregue o artífice da gramática com suas regras. Vão para bem longe as traças de lupas que caçam tudo tristes nos textos. No fundo, sinto pena de um texto sem defeitos. E da fala, ave maria a pobezinha, como é chato ouvir alguém ouvindo tudo corretamente, bem de acordo, é impossível até acompanhá-lo até o fim, impossível até de conectar o raciocínio. Isso soaria bem para alguns pseudo-contentes, de ouvidos que não digerem bem e uma boca que vomita tudo, e diriam que ao menos isso saberíamos fazer bem, desobedecer, ele complemetaria, risonho, esse novo brasileiro nascente, patriota, verde verdadeiríssimo e de riso amarelo! Soaria bem para ele, mas nem se engane. Quem sabe fomos levados a separar as coisas, a produzir essa ideia, pois toda ideia é produzida, mas na maioria daz vezes reproduzida: aquele que fala bem é bem educado e faz coisas boas e puras e só ele tem mérito, ao passo que aquele outro que fala mal é ruim, pobre, misturado. Está aqui o cerne da coisa e isso vai até nossa ação. O pobre, mal educado, mal sucedido financeiramente e que fala errado são todos sinônimos. Se um rico, branco, bem educado, bem sucedido tropeça, trona-se doente, por que será? Apenas sei dizer inicialmente que o fato é que há capatazes na língua portuguesa. E eles têm nojo de quem escreve ou fala errado, claro, eles são lacaios, suas lanças com pontas de veneno estão apontadas contra nossa pobre liberdade – pobre, preta, indígena, trans, nova, sem nome, sem título e nesse veneno há muito da língua. Eu lá quero saber se é certo ou errado o jeito que falo ou escrevo. Há algo mais imbecil que caçar isso nos outros? Há algo mais incoveniente que essa tarefa de capataz gramatical a favor da escravidão latente em nós? Um erro gramatical é tomado também no meio acadêmico e educacional ou qualquer outro canto dito de alto nível uma falta de caráter, uma pobreza de espírito, uma descrença na capacidade intelectual tanto mais initeligível ele é. A que ponto chegou nossa escravatura, não querem deixar espaço para nada! Até em nossa fala e escrita, elas são reproduzidas para bem aprisionar. Por isso é que repito, é coisa triste falar e escrever correto e bem encadeado, em cada texto bem escrito vejo algemas, contratos de compras e vendas de escravos, chicotes, ferro em brasa, castigos, para que, embrutecidos e adestrados, não falem nem escrevam direito, porque não podem ter direito algum.

Por Jayme Mathias Netto

domingo, 1 de setembro de 2019

Teu olhar.


Tenho vários sentidos, entenda-os como quiser.
Vários deles eu domo, mas um se desfez.
Logo aquele que me faz enxergar, que no fim de mim, repousa teu olhar.
Quando errante, vaga, ascende à superfície, longe do ninho.
Mas teu olho é âncora, mergulha em mim.
Durante a aurora renasço, no crepúsculo re-enlaço.
No jogo do silêncio ele é o único que fala,
Diz sentir o que no olho brilha.
Sempre que há desgosto, chuva. Se for primavera, rega-me.
Teu olhar me consola, nele deito e descarrego o peso do dia.
Em tua íris me envolvo, encontro o cobertor que é tua pele.
Possuído pelos teus braços tenho os olhos como testemunha do que sinto.
Para mim é fácil dizer que te amo, pois me sai da boca.
Tu me pagas com a moeda da janela da alma, a mesma que o barqueiro aguarda nas portas do submundo.
Contrariando o desfiladeiro do rio, antecipo-me ao destino, acompanhando-te no veleiro da vida.
Rogo aos céus para que até o fim de nossa jornada toda riqueza, que recebo diariamente dos teus olhos, seja convertida no passaporte da tua companhia,
Pois no meu submundo já abri as portas para que tragas minha felicidade.
Da gratidão em ser visto pelo seu interior, ao querer te pagar na mesma moeda, prontamente Antunes me faz recordar,
Que é teu o meu olhar.
Paulo Victor de Albuquerque Silva.

P.S. O texto é dedicado a minha esposa Ana Suely em homenagem ao nosso aniversário de casamento.

domingo, 25 de agosto de 2019

Releituras (a)gosto: Vox Populi

Eis que é chegada minha vez  e hei de ser, logo hoje, nesse dia cinza e cheio de insensatez, o rei que com o dedo declara a queda no tabuleiro de xadrez.

No jogo de hoje, no entanto, todos perdem, pretos ou brancos, ledo engano!
Os pinos serão colocados dentro da caixa de madeira. Eu e vocês! Segue o plano! Onde amontoados, estaremos lado a lado, no escuro da impotência.

E logo eu, que não sou lá muito fã da raça humana, logo a mim foi legada a missão insana, de deixar a mensagem poética que intentava falar de algo que nos valesse.
Da ética ou da polidez de um povo que na busca pela sobriedade, só encontrou embriaguez.
Embriaguez do espírito, consumindo para si algo muito pior que álcool líquido, o veneno que escorre da mordida da víbora sorrateira, que com a língua bífida profere ser temente a Deus, enquanto aperta a presa indefesa que não concorda com os seus...

Queria chorar, mas não consigo. Queria abrigo. Onde não tivesse que escolher entre flutuar sobre um pato amarelo, no mar  vermelho do sangue de trabalhadores enganados, ou dos menosprezados, pretos, pobres, minorias que pra os nobres "tem mais é que morrer!"

Difícil acreditar em tamanha fantasia, mas se olho de um lado vejo Franciscos e Marias depositando suas esperanças e alegrias em um falso Messias, que da palavra sagrada só levou em conta o apocalipse.

E, se viro a face, vejo de dentro do cárcere nove dedos regendo a orquestra da perpetuação de uma laia que esqueceu que, à parte de todos os malotes, tem sob os ombros a luz de todos os holofotes, apontando à espada de Dâmocles, que pendula sob a tensão de um fio de cabelo.

É gritante e, além, no mínimo paranóico. Que da polarização do povo heróico, o brado retumbante que se ouve é: "vai pra cuba! Vai pra Venezuela!"

Saudade daquele povo que só se preocupava com novela, pois, pelo menos nela, a ficção não saia nas ruas batendo panela, acreditando, vã, no fim da corrupção.

E a inteligência, hoje, nos põe em definitivo, na previdência da providência, vira burrice em sua essência e de nada nos impediu à chegada deste triste fim.

Ele sim,
          ele não,
                   no final,
                            tanto faz!

Aqui jaz um pátria chamada Brasil.

Por Júlio César
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 18 de agosto de 2019

Releituras (a)gosto: Texto sem pretexto

O texto de hoje é sem pretexto. Política. Qualquer coisa, nem leia. Uma expressão multíplice de várias partes que querem virar texto. Um amontoado de retalhos que digo ser um “eu” no espelho. Vejo o velho Aristóteles em sua Política, li e reli, tinha muito a falar sobre sua Ética, li e reli sobre os demagogos, militares e tiranos. Tinha tanto a acrescentar, palavras belas a dizer, argumentos concisos para convencer, entender, refazer e como era belo, oh Deus! Mas afoguei-me no pensamento. Por isso o texto não fala de política nenhuma. “Que pena!” diz um leitor de dentro de mim, ardendo para se alegrar se a sua verdade fosse igual a minha ou para me destruir se não fosse, e, principalmente, ardendo para falar mal, discutir, caluniar, xingar e querer me matar. Afinal, não falar, não ter nada a dizer é como se tivesse faltando um braço ou uma perna hoje em dia. Não ter opinião é como se fôssemos doentes dos olhos ou sem ouvidos. “Burro, alienado, idiota” - utilizam palavras bonitas esses meus fantasmas, explicam a etimologia greco-latina das duas últimas. “O texto é assim mesmo, desconexo e por se fazer. Barroco.” Explica outro a tal da parte estética. “Orgulho-me de não ter posição, sequer opinião”, sussurrou o próprio texto no meu ouvido. As teclas anunciaram: “Covarde e ignorante”. Uma voz qualquer que dizia ser da consciência grita: “quantas vezes devo te dizer que tu pode mudar e fazer a diferença”. Diante de tantas cabeças célebres e pensantes dentro de mim mesmo, perguntava: “que sou eu?” Diante desses príncipes vaidosos, “que sei eu dessas doxas e ortodoxas?”; “E como ousa tudo isso ainda querer resposta e ainda digitar um texto?”; “algo que faz dentro de mim achar que é como um homem de filia e sofia?” Uma dessas partes toma parte e diz que não tenho certeza de nada, que não se prevê nunca o futuro, que não sigo a estrutura da lógica, mesmo duvidando de tudo. Como se a lógica não devesse nada à parte que palpita no peito e também não fosse só mais uma que quisesse a vez na orquestra. “Se isso, então aquilo!”; “Se ele, então não ele”, brinda outros no canto. Por essas coisas já se amou e se odiou e tantas outros entre esses dois sentimentos. Um amigo anarquista reverbera dentro de mim: “contra as estruturas”, outro vai e assume a posição sócio-crítica mais atual, com mais dados atuais, com mais atualidade que os dados atuais, pois ele antecipa o futuro, o vidente. “Se isso, então aquilo” e conta  suas razões e diz suas verdades e calunia os outros por não entenderam nada sobre a verdade, acusa-o de estar ludibriado: “Se isso, então isso”, clama pelos cálculos monetários e pelas paredes sólidas da corrupção, anuncia um novo país. Outro pedaço de mim, quase morto: “ainda tem olhos de criança?”. Outro acusa que esse negócio é cristão, outro diz que é melhor matar e comer capim pela raíz. “Todo mundo tem a porra da razão e ninguém se resolve”. Uma parte de mim chora, outra ri, uma ama e a outra odeia. Fragmentado como o maquinário de moer carnes, como teria eu qualquer certeza se a carne em que habito sequer sei como funciona? E ainda assim tenho estômago, olhos, bocas, braços, pernas, cu. E atrás de mim toda a histeria histórica como exemplo, mas continuo tendo uma parafernália que funciona mas nunca compreendo. Banhado de certezas estão todos saindo de casa, banhados de vômitos uns dos outros, comendo os dejetos putrefatos. Cada qual vomita sua verdade, mastiga, engole. E eu que nem sei qual merda sou, qual dejeto tem aderência melhor, seria eu quem deles? Qual desses fragmentos de mim me agarro para ser amigo ou inimigo? E eu que nunca soube o que saber ou sequer sei o que é saber algo, será eu o que? Vai longe essa parte de mim que chamo de razão e vai longe tudo que ela propôs de forma tão racional, tão previsível, monótona e inútil. Todos os argumentos são racionais, belos e "para o bem de todos". No entanto, num tenho nem a certeza do próximo passo dado. Ninguém chega ao consenso, mas os dados são todos reveladores e que que isso muda? E que que alguém ganha com isso? Porra nenhuma! Um pedaço finalmente conclui: "Que inveja tenho eu das plantas!"

Por Jayme Mathias Netto
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 11 de agosto de 2019

Releituras (a)gosto: O satanás da revolta


Pobre diabo, só quer a revolta, nada mais.

Não é o dinheiro, a carne, a glória.

Tudo conversa besta. Ele só quer a discórdia.

Satanás, o grande NÃO. Não quer ser ouvido.

Nunca disse uma palavra sequer. Ele atenta!

O cão atenta nossa consciência, negando o que nunca foi negado.

Nega o texto e a poesia.

O Satanás diz não.

Para toda regra há uma exceção.

Ele não é o espaço em branco. Não é a dúvida, nem o vazio. Não é o nada.

Ele é o não.

Ele não é a maldade. Não é inimigo de Deus, nem da civilização.

Ele é o não.

O diabo não é a santíssima trindade. Ele é uma só serpente que engole o próprio rabo.

Círculo que não é aliança. É eterno não.

Nossa vida seria vazia sem o diabo. Jesus não teria companhia na solidão.

E até Deus não percebe que para resistir às tentações do Cão no deserto ele também disse NÃO.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 4 de agosto de 2019

Releituras (a)gosto: A morte de Acteon

Somente aquele que teve o infeliz acaso de encontrar-se com a evanescente sensação da perda de si, acometer um ente próximo, consegue ver os pormenores semelhantes ao momento histórico que vivemos. Sim, porque nada mais somos que uma grande catarse coletiva que destrói a si.
Vivo no país do Alzheimer e vos direi o porquê.

O enfermo que apresenta tal moléstia perde-se, por vezes, entre a infantilidade e a incapacidade. Os dias, alternos, por vezes, são de manutenção de uma falsa estabilidade, outrora, de total regressão.
A sombra de quem um dia foi traduz-se em um vulto cada vez mais distópico.

Aos poucos, volta-se ao momento do infante e tudo parece novo de novo. O simples abriga a graça da descoberta. A inocência se mistura com a incompreensão de cometer os mesmos erros, que de alguma forma gritam de um lugar ermo no inconsciente e que "já foram cometidos". O conflito de "quem é" com "quem era" provoca choques turbulentos, que submergem o acometido em um torpor cada vez mais intenso e os dias bons tornam-se cada vez mais escassos.
Progressivamente, esquece-se de quem é, das necessidades fisiológicas, de respirar e, por fim, de sobreviver.

Pois, se lhes parece triste a sina ao tratar-se de um ente querido acometido por esse mal, imaginem o quão desesperador seria descobrir que somos nós também a massa cinzenta que a cada dia se autodestrói!?
Pois, se para Hegel a história tem um espírito, vos digo: ele tem Alzheimer.

Somos nós brasileiros, ou mundiais, a prova viva da regressão e transgressão primeira para tudo o que é torpe. Ora, se não somos a inversão de valores, o discurso de ódio, a "fake" news, então o que somos? Se não é a "memetização" do "politicamente correto", a brincadeira "inocente" do Alzheimer com tudo o que demanda seriedade?

E assim somos e vamos, acometidos por uma corrupção metafísica, incorrendo nos mesmo erros, elegendo os mesmos inaptos e nos isolando cada vez mais em nossas ilhas digitais de indignação. Cercados pelas tsunamis do ultraconservadorismo, sofremos continuamente a plasmólise da vida social, buscamos pelo bote esclarecido da salvação que nunca vem. A autorreflexão torna-se ilusão de grandeza e opinião e razão viram sinônimos.

E os que pensavam ser Ágora, eram senão mais uma multidão doidivana a clamar por sangue no anfiteatro Flaviano. Torcendo para que Acteon seja devorado por seus próprios cães. Abrigamos o lobo e atiramos na chapeuzinho, enquanto as cadelas, das quais nos alertara Brecht, continuam a esgueirar-se impacientes, seduzindo os ébrios que cruzam seu caminho.

E o que se entende por reviravolta do absurdo,  tratam-se dos "glóbulos brancos" no cérebro enfermo, atacando repetidamente a si. Na esfera macro ou naquilo que se entende por estado, estas mesmas partículas denominadas "bolsominons" ou, ainda genialmente definidos por Albuquerque (2018) como frutos de uma "ontologia do progresso", atacam o próprio organismo pensando estar poupando-o de um stress maior, enquanto empurram-no incessantemente ao colapso.

Autoimunes, resta-nos agarrarmos à leve sensação de alegria das descobertas já feitas e não lembradas, enquanto voltamos a engatinhar sem entender bem por quê.

Que possamos então aproveitar nossos dias bons, até que não reste nada mais e voltemos a ser poeira cósmica.

Por Júlio César Barbosa
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 28 de julho de 2019

Julho do Leitor: Rosa de Anne Jamille Sampaio

Por que tu choras? Por que demoras em um pranto manso?
Por que não vais e encontra o que é teu?
O que é teu, na verdade, sem ira e maldade

Segues, bela rosa, segues
Com tua vermelhidão
Ascensão
Feminino
No teu inocente jeito de amar
Amar o vermelho que de ti faz-se forma
definição
Beleza que não comporta a razão

Reza, bela rosa, reza
para que
o amor te aches
Mas que não te mates, de tanto sofrer

Que habite em ti, escorra de ti
Volte-se pra ti

Mas que não seja como o vermelho vivo do fogo
Que queima

E, ao passar o vento forte, deixa levar o perfume da calma
Restando cinzas ao relento e mais nada

Que o teu vermelho sangue
Tome para si a serenidade do vinho
Que vive seu mistério e se delicia a cada sensação provocada por seu gosto
No qual o passar dos tempos acusa a melhoria
Que voe com o gosto da liberdade pueril
Que faça morada na serenidade do amor mais gentil

De Anne Jamille Sampaio

domingo, 21 de julho de 2019

Julho do Leitor: O que eu também não entendo de Luciana Lis

"Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que nós somos"

- José Saramago


Ao observar a natureza e o homem torno-me de forma inerente parte dos verbos de ação que conduzem o universo, sei que assimilo através dos contornos diários um conhecimento pífio sobre a realidade humana - jamais saberei de modo palpável o funcionamento de todo esse cosmo, terei apenas muito humildemente a previsão de alguns fenômenos gerais: os dias de perder, de viajar, parir e outras tantas armadilhas óbvias e disseminadas dentre toda gente.


Vejo os homens debruçados diante de fórmulas, defensores de histórias vulgares, trajetos perpétuos, e quando inadvertidamente declinam diante do amor, da cólera, da pena, são o próprio atropelo diante da emoção inesperada, abalroados pelo susto. É bem possível que este seja o primeiro tracejo da massa da qual somos feitos, meus desejos silenciosos determinam acertos e erros que carrego ao longo da vida.


Diante das janelas, do alto de um balão, vejo que não somos uma tautologia, nada nos adequa e diz tão facilmente quem somos. Não sou cruamente um ser empírico e é certo que minha existência é cada uma de minhas possibilidades: ser, perder, diminuir, permanecer viva ou não.

De Luciana Lis

domingo, 14 de julho de 2019

Julho do Leitor: Os velhinhos me olham sorrindo de Julia Pereira

Quero encontrar Deus, 
vou para Morella.
Quero chegar no Flamengo, 
desço no Largo do Machado.  

Um passo atrás, uma parada à frente...
Nunca no exato lugar na hora certa.  

Tropeço nos velhinhos do Flamengo,
Recordo Morella, 
Penso nos meus pais. 
O olhar suplicante…            

Adoro velhinhos,            
que reencarnam em bebês,            
que choram, que esperneiam,            
que birram. 

Então, lembro o prazo perdido.
Então, lembro que me endivido. 

Fui pra longe que é pra ver se esqueço, 
Mas há ainda essa imunidade de merda! 

Sugada pelos anos indecentes 
Que consomem minha juventude, 
A saúde frágil, 
O corpo que não aguenta…              

Choro            
Esperneio            
Grito 

Mas Deus não escuta.
Meus pais não escutam 
Os velhinhos do Flamengo não escutam, e me olham sorrindo.   

Por Julia Pereira

domingo, 7 de julho de 2019

Julho do Leitor: Ritual de Jorge Raskolnikov

Os dois homens chegaram quebrando a escuridão com velas. Falaram palavras inteligíveis um para o outro. A noite avançada nas horas, na penumbra que beneficiava medos e terrores obscuros. Os homens se posicionaram diante da vítima. Ela abriu os olhos e reconheceu seus algozes. Não haveria como resistir. Eles a tomaram sem esforço. Iniciou-se a cantilena monótona, e das sombras surgiam vultos assumindo seus devidos lugares. Era impossível que o mal puro, na mais primitiva forma não se fizesse presente. Puseram a vítima sobre uma espécie de altar, lugar onde se ama e se descansa, verdadeira profanação. Nesse instante usada para fazer o ódio. O som se intensificou, o ato estava prestes a começar. Ela foi privada das roupas num instante. E os olhos oriundos da escuridão se arregalaram satisfeitos. A degradação máxima, o vilipêndio da pureza tinham agora lugar na terra, exatamente ali. Um insulto ao Criador, a tudo que era benéfico e inocente, o gesto obsceno aos céus, a jura de pecado mortal. No altar a vítima sofria, ouvia os rogos e adulações justificando aquele ritual. A música não cessava. O sermão diabólico se elevando em palavras no momento da celebração. Os sacerdotes do demônio se revezando na liturgia maldita. A dor, o sofrimento de alguém sem culpa, abandonada à própria sorte, sofrendo a violência da missa satânica. O anjo caído veio correndo. Como não fosse onipresente, precisava de pernas para chegar, de mãos de carne e osso para roubar e genitálias para mijar e violentar. O louvor do mal chegou ao extremo, se intensificando até ao ápice, as sombras se contorcendo jubilosas. Os sacerdotes exultavam satisfeitos, o sacrifício no altar chegando aos termos finais, embora não fosse a oblação máxima, pois ainda teria vida física. Um pouco de sangue fora derramado, mas foi logo lavado pelas lágrimas da garota. Os homens cuspiram em seu corpo como parte final do ritual. As sombras foram se retirando. Eles a pegaram, estranhamente carinhosos e a levaram de volta. Ela ficou encolhida no canto, catatônica pelas imagens de puro horror. O mal na terra, verdadeiramente realizado.

Jorge Raskolnikov
Livro do autor: "Cadernos de Sombras"
Leia mais no ebook :
https://www.amazon.com.br/Caderno-sombras-hist%C3%B3rias-curtas-terror-ebook/dp/B07PWGW77M

domingo, 30 de junho de 2019

Des-Cuidado!

Perdi meus olhos só porque me impaciento ao ler?
Perdi minha cabeça só porque não penso?
Gozamos de direitos e autoridades
Vendemos o intelecto e a cultura como salvação.
Vendemos todo o espírito para incluir, não sobra nada.
Não há espaço vazio.
O resquício, o resto, o desperdício é reciclado: descarte!
Trapos, trapos e farrapos. Estamira diz: “o que há no lixão são restos e descuidos”
Está tudo preenchido de sentido nunca de fato sentido,
Sempre des-Cuidado! porque o descuido se tornou bonito.
O homem aos poucos foi criando maneiras de fazer múltiplas coisas ao mesmo tempo. Num
mesmo espaço, várias opções de preenchimento. Os tablets, a internet, os carros, tudo é
Smart. Todos nós somos Smart porque temos preenchimento, vários vazios ao mesmo tempo.
O I da Apple, Icloud, Ipad, Iphone. O I (“ai”) de inteligência. Somos função de uma inteligência
artificial (A.I). Até a inteligência, o nosso monolito kubrickiano, é artificial, ficou banal.
Inteligência para funcionar muito bem, nunca deixa de funcionar, nunca pára! Que inteligência
é essa que nunca pára? É inútil como uma memória que nunca esquece! Serve de nada! Aptos,
ágeis, hábeis, móveis. Simplesmente não acessamos mais outro tipo de inteligência e andamos
por aí clamando pelos Et’s. Cadê o Eu que pensa caro Descartes?

Jayme Mathias Netto