domingo, 22 de setembro de 2019

O lar de Fransquinha.

A poeira vem com o vento, às vezes com o carro que passa.
É sertão, interior do ceará. Nas pedras, rastros da minha infância. Nas árvores, rastros de menino. Nas cadeiras, rastros de conversas, se for de balanço, o rastro é mais velho.
A placa da estrada sinaliza Itapeim. Pra mim, Cruzeiro.
Na entrada, a casa de forró de frente para o cemitério, do sagrado ao profano.
Após a curva um outro mundo se abre, distante da civilização e próximo do peito.
Ao centro desse universo a pequena igreja acolhe a vida seca.
Em mim, até hoje, tudo se resume ao centro cortado por dois desvios, o da volta e o do rio.
Minha imagem do sertão dá uma volta de 360° graus em torno da igreja.
Vixe! De lá virei bicho, risquei o chão, corri de abelha, joguei bola e bila.
Eu vi o tempo parar, se arrastar entre as horas.
Ao chegar a noite vinham as histórias misteriosas nas rodas de conversa.
A Cruzeiro noturna é outra cidade, habita meus sonhos.

Essa noite voltamos. Para mim o tempo não parou, tenho idade, mas Cruzeiro, não tem tempo.
Retornamos à igreja, mais tarde, ao cemitério. Hoje não terá forró.
Em frente a estrada está a casa de minha tia Fransquinha, dando boas vindas ao seu mundo. Por muito nos acolheu com toda a calma, sempre tinha uma cadeira à mão.
Da cadeira, assistíamos o filme da vida narrado por minhas tias e tios, o cenário, Cruzeiro.
Família reunida, muita comida, lembranças, boas risadas e lágrimas.
Nesse dia o centro da viela não é mais a igreja, é o caixão.
Dentro dele, o fragilizado corpo narra no silêncio o que de nossas vidas carrega.
Cruzeiro que tanto me ensinou sobre a vida, agora me revela a morte.
Talvez sempre tivesse me falando sobre isso na entrada, da poeira do forró ao pó do cemitério.
Antigamente, o misterioso Cruzeiro era para mim uma morada de sonhos. Hoje tem outro rosto, falta tia Fransquinha.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

3 comentários:

  1. Um dos melhores textos dos últimos tempos...

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  2. Maravilhoso Paulo Vitor. Parabéns pela tia e pelo texto.

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  3. Ah! Amigo foi na alma dos " retirantes" pense....fazemos está caminhada...pense....e de quem possui familiares "retirantes"... só vc ...pense ..

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