domingo, 29 de agosto de 2021

Releituras (a)gosto: dos dois aforismos eficazes

 1. O tédio é de onde brota a filosofia e seu distanciamento do mundo. Perguntar-se é querer ocupar-se. O marasmo é de onde vem todas as reflexões possíveis. Da falta de sentido de tudo, do distanciamento dos humores do homem. No tédio há certa constância de pensar e agir, mínima possível que convida à inação. O tédio e a preguiça compõem o ócio filosófico. O filósofo é um resultado de uma mente que pensa sem parar sobre o próprio corpo que não se relaciona com nada, porque está imerso na imobilidade do ser. Diante do crivo metafísico segundo o qual há o gozo de tudo abarcar porque é alegria, o tédio é a incapacidade de viver, de saber por que se vive, se são apenas naqueles momentos únicos que a vida diz sim. Simpatizo com Cioran e seu Livro das Ilusões, pois é um dos únicos que pensaram isso, um dos únicos que acessaram isso. É essa dualidade, que como eu defini certa vez em Outrora, segundo a qual a vida tem dois pólos de sentimentos ontológicos, duas certezas imediata, a alegria suprema onde tudo é vida e a tristeza profunda onde tudo é dor. No entanto, digo agora, diferentemente de quando disse em Outrora, esses são sentimentos fugazes como toda e qualquer certeza nos nossos tempos. E é aí onde reside a preguiça metafísica. Ela reproduz a forma do tédio, de onde brota todo perguntar-se e todo autojustificar-se que se fez com o nome de Filosofia.

2. Entediado é Platão, entediado Aristóteles. Entediado das mudanças que eles denotam corruptíveis em ambas metafísicas. Entediado por métodos como formas de travas. O pensamento como trava do tempo. Pensamento como trava da mudança. A ideia como ficção e fixação da pausa. O maior perigo é detectarmos essa vontade em nós mesmos. Nós mesmos travando uma metafísica que não quer deixar escapar nada. Nós mesmos lutando contra um fluxo e morrendo de medo. Nós mesmos preocupados. Nós mesmos depressivos. Nós mesmos, os ansiosos do nosso século. As doenças, o terrorismo, as ameaças de uma vida que se pôs contra qualquer mudança e nós mesmos travamos taradamente uma luta interna contra a vida como devir. Nós mesmos, os que não compreendem, incutimos essa metafísica nas mais profundas formas de nosso pensar e de nosso agir.

Jayme Mathias Netto

domingo, 22 de agosto de 2021

Releituras (a)gosto: Apresentação do livro O Homem Ao Avesso

 O “Homem ao avesso” de Jayme Mathias Netto, não é um convite, mas uma inserção tátil ao espaço devastado em que um senhor, espinhento como os cactos do sertão brasileiro, habita as grandes cidades modernas. L, seu nome, é um velho ranzinza consumido pela insônia e atazanado pela enxaqueca fisiológica do século XXI, clamores de um corpo antigo aprisionado pela vigília constante do niilismo contemporâneo. O despertar dele consigo, em sua solidão, traz à tona o reconhecimento de si. Entre o eu e a loucura, L é o homem ao avesso, pois nele o que vive e age não é sua pele, são suas vísceras. Daí seu corpo pulsar libidinosamente com os cheiros, os paladares da cidade, tudo aquilo que termina nas entranhas do seu espírito ao avesso em carne. É o retrato do homem moderno que abarrota sua consciência com as mais variadas vivências em choque nas grandes cidades, mas que guarda nos porões de sua memória, lembranças e sonhos reprimidos.

Como um corpo que fala, as memórias reprimidas de L se voltam contra o tempo saturado da vigília. Sua memória é feita de Fortaleza, a cidade lhe devora, já que L é um alimento orgânico a céu aberto. Seu paladar ostenta dos mais refinados aos mais fétidos aromas da capital cearense. Em alguns de seus robes, como a pescaria, acompanhado do velho amigo K e outros pescadores amadores, permeiam as memórias de L com bagres, anzol, cachaça, e muita prosa. Entre Fortaleza e Paris, se apaixona por tudo aquilo que há de autêntico entre as duas cidades, sua idade avançada lhe garante uma narrativa cheia de temperos do tempo que carrega no estômago. De uma família de classe média, e mesmo com todas as regalias materiais deixadas por seus familiares através de uma herança, L vivia sob a abóbada imperiosa do inferno, ao centro, com o seu cetro, a entidade diabólica que regia o seu mundo na insistência da dúvida, um Daimon totalmente seu.

L é a representação do homem em meio à multidão, infiltrado à uniformidade da massa, que antes de tudo não se reconhece nela, ele se impacienta, a odeia. A insônia sentinela no centro de uma vida infernal abarrota a consciência de L levando-o ao seu extremo fisiológico, uma vigília que faz reluzir em sua mente saturada os pormenores da vida autômata da coletividade. Tal ambiente leva o personagem a perceber uma das mais devastadoras atmosferas diabólicas do mundo contemporâneo, o eterno retorno do sempre igual da vida metropolitana. A condição humana pertencente à L, com sua velhice, enxaqueca e dores no estômago, desvelam uma vida de vísceras, onde não existem mistérios, nem segredos, ou outros dos melhores mundos possíveis, apenas as migalhas desertas do atual. A vivência do sempre igual que se acumula aos seus pés produz a existência do homem esgotado da vida cotidiana. Seu horizonte tem como limites a própria terra, nada além dela. Até mesmo seu amigo K era o seu avesso, L é avesso ao mundo, interno e externo. No mundo de L não encontramos sonhos, seu estado de vigília não permite.

No ponto alto da narrativa do idoso nos deparamos com sua estratégia de resistência à reprodutibilidade homogênea do atual, quando L nos apresenta as lembranças do seu deslumbrante relacionamento com a personagem M, seu grande amor. Confesso meu deslumbramento pois, acredito ser uma das descrições românticas mais lindas que já tive contato. Neste ponto Jayme Mathias Netto revela o quanto é complexa sua análise em torno do existencial humano contemporâneo. E é assim, no olho diabólico da repetição metropolitana que L propõe um ação de amor/resistência, o ato da pausa, do fim, da interrupção, somente ela garantirá o vir a ser da singularidade do amor, do ser apaixonado, da vida autêntica, de outras vidas, vividas ao avesso.


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 15 de agosto de 2021

Releituras (a)gosto: Desutilize-se

 PROcurei temas, dilemas, dúvidas,aporias


CRASso vácuo criativo deixado pela microscopia do terror


STIgmas que tão cedo serão esquecidos


NEIxente, cria, como provavelmente Krenak diria:


"Você não tem que achar utilidade em tudo."


Júlio César

domingo, 1 de agosto de 2021

Releituras (a)gosto: num borrar do tempo, meu amigo

  

por vias dúbias

num segundo me clarifico

num errar do tempo que é meu amigo

que faço ser mais alto que o tempo que medito


quando medito sobre o tempo 

que o tempo pára quando medito


que não há mais tempo 

que suficiente seja


que o tempo encurta quando me dilacero 

que o tempo desacelera quando acelero


que por vias curtas

num segundo me intensifico

num borrar do tempo, meu amigo

que posso ser mais alto que o tempo que medito


que o tempo passa e memória acaba

que o tempo voa e o futuro me povoa


que o tempo volta e meia me consome

que não há tempo para a preguiça


que o tempo se sente e não se tem

que a idade parece que é desse jeito também


que por vias turvas

num segundo me repito

num rio do tempo, meu ofício

que devo ser mais alto que o tempo que medito


Jayme Mathias Netto






Releituras (a)gosto: Onírica

  Estamira está a caminho de casa carregando o seu carrinho de supermercado. Eram 23 horas e o dia tinha lhe proporcionado grandes resgates de objetos valiosos à humanidade. Andava na contramão da história sobre a ciclofaixa, sem desviar sequer uma única vez do choque ciclístico que seguia o caminho indicado nas placas. Já perto da esquina de sua casa, lugar constantemente frequentado por baratas e ratos, enfiou a mão no saco azul anil encostado na calçada que, como cápsula do tempo, lhe trouxe o sonhado celular A 40 da Siemens de 2005, “16 anos de desejo e finalmente o encontro”, fala consigo Estamira após contar nos dedos quantos anos haviam se passado até o derradeiro encontro. Empolgada, adentra em seu lar, cumprimenta seu companheiro Jorge e caminha à estante dos celulares abrindo espaço para o seu mais novo aparelho, proveniente do mundo onírico de sua juventude. Com ele, soma-se o quadragésimo quinto telefone de sua coleção, número há muito esquecido por Estamira que já superou a fase de calcular a quantidade de seus objetos.

Na manhã seguinte ela é acordada por um fiscal da prefeitura que recebera uma denúncia de poluição urbana. “Poluição? Poluição num é coisa de lixo? Quem trabalha com lixo é meu marido e leva pra reciclage, eu pego tesôro, coisas valiosa, importante”. Atrás do entulho de máquinas de escrever sai Jorge aborrecido, “eu disse que ia dá merda, eu disse que só a porra. Senhô se preocupe não, hoje mermo já jogo tudo isso fora. Levo lá pá reciclage, fica a uns três quarterão daqui”. “Não, num leva não. Nem a pau. Aqui num tem lixo não. Isso aqui senhô é um A 40, cum ele você fala cum qualquer outro de longe, a distância mesmo, é uma invenção moderna, um luxo. Essas máquina aqui, escreve sem precisá de caneta, direto no papel, tem até umas pilha de papel alí pra escrevê. Tudo invenção da  modernidade senhô, tudinha. Pra quê jogar fora? Tô rodeada de progresso senhô, do futuro, de lembrança da ciência e da gente. Qual é a diferença da minha casa pro shoppim?”. Jorge, ainda raivoso, se vira para o fiscal e retruca Estamira, “Ela é laudada senhô, toda vida fala isso, ela acha que é moderna, num sei o quê”. “Ai é Jorge!? A modernidade é lixo agora? A tecnologia é lixo? Os sentimento, as memória são lixo? As mercadoria são lixo? Tu que é um lixo”! Enquanto isso, máquinas pesadas estacionam sobre a rua de mão única e se preparam para a limpeza urbana. Estamira, com os olhos esbugalhados e assustados, observa suas mercadorias, toda tecnologia empregada, toda ideia criada, os sonhos materializados, todo o progresso humano acumulado quando, de súbito, desaba sobre os escombros somente desejando que seus restos sejam depositados na caçamba de lixo.

Paulo Victor de Albuquerque Silva