domingo, 27 de janeiro de 2019

Prefiro não dizer.


As palavras nos ajudam a dizer.
São preciosas.

Cada PALAVRA.

Então não preciso de muitas, somente das valiosas.
Poupo o que digo. Mal falo.
Prefiro interrogar. Esperar as palavras.
Elas vêm carregadas. Chuva, relâmpago, trovoada.
Na calada da noite, cala.

Cada PALAVRA.

Em mim, vão, não sei onde.
Eu sento e espero, vejo seu nome.
Sua rima me consome.
Teimosia sonora de um megafone.

Não rimo mais.
Elas brincam com minha fala.

Cada PALAVRA.

Por isso prefiro não dizer.
Melhor esperar que não venham.
Pra ser honesto, gostaria de nunca mais usá-las.
Coisa chata, cada palavra.
Só dizem o que querem no instante que cala.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Provehito in altum

Certo dia, cansado de embriagar-se de problemas pertinentes ao "know how" de pagar o aluguel no fim do mês, Erasmo resolvera chutar o pau da barraca e encher a cara de vera. Desgostoso da rotina de lascado, gastara o restante do insuficiente ordenado com um doce e 2 garrafas de rum. Lá pelas tantas, já bastante viajante, resolveu entrar em uma birosca para não correr o risco de dormir ao relento e ser violentado ou incendiado, confundido com um mendigo na "pacata" Fortaleza. Na espelunca não havia quase ninguém, exceto por uma mesa no canto na qual sentavam três figuras estranhíssima, as quais Erasmo não sabia distinguir o que eram. Viajando no céu de diamantes, tampouco fez questão de fazê-lo. No entanto, fortemente influenciado  pelos sentidos, Erasmo foi gradativamente captando o estranho diálogo que ali se desenrolava. Os homens falavam sobre algo como um exame vivo de partes funcionais do corpo, ao que pareceu mais um encontro de legistas que uma conversa informal de bar. Ainda que involuntariamente, Erasmo se viu tragado pela torrente de pensamentos dos homens que falavam dos mais variados conhecimentos. De desinteressantes passaram a sábios bardos da modernidade que agora contavam as mais fascinantes histórias que o jovem proletário ouvira em seus vinte e poucos anos. Um par de horas depois, um assunto em particular chamou atenção do viajante. Os mascates falavam sobre a história de um anjo que desafiou o firmamento, porém não referiam-se a Lúcifer. Fascinado, Erasmo transportava-se para dentro da história da mesa ao lado. O ser celestial possuía outra reivindicação, diziam, não tinha ambição de ser maior que Deus, apenas buscava igualdade entre as criaturas do céu. Por possuir as asas negras, diferente de seus irmãos, o anjo fora condenado a viver aos pés da árvore do conhecimento onde recolhia os frutos imperfeitos que ali caíam. Certa vez, encorajado por um transeunte, burlou as regras e comeu um fruto inteiro que lhe fora dado pelo passante indignado ao ouvir sua história. Em seguida o celestial teria voado às portas do céu onde clamou a Deus que o explicasse por quê da diferença entre ele e os seres que ali habitavam. Para sua surpresa, descobriu pela boca de Chamuel, arcanjo da devoção, que Deus não estava ali, o príncipe celestial no entanto concordou em mostrar o verdadeiro conhecimento negado ao caído e notando a fúria que aplacava o mesmo, incumbiu Raguel, anjo da justiça, por levá-lo ao reduto da verdade. No entanto, ao deparar-se com o conhecimento pleno, o caído perplexo chorou lágrimas de sangue enquanto dizia: "era por isso então! Meu pai sabia que eu não estaria preparado, que eu não suportaria esse fardo! Eis que a luz finalmente cegou meus olhos por querer enxergar!" Tomado de desgosto, o anjo caminhou até a beirada do infinito, arrancou com as próprias mãos as asas negras como a noite e se lançou triste e "livre da aflição de não saber". Enquanto percorria o trajeto contrário ao de Ícaro com suas asas de cera, o anjo sentiu a mortalidade tomar conta do seu corpo em forma de dor. Melancólico e convicto desaparecera no infinito.
De volta à mesa do bar, um dos três homens na mesa olhara para o relógio e exlcamara: "deu minha hora! Falou doidos! Tenho que ir! Falou!" Inconformado com o final trágico e abrupto da história, Erasmo foi em direção à mesa dos bardos e exclamou: "e o resto da história? Que fim levou esse anjo? Qual a moral?" Um dos três homens, de cabelos longos e aparentemente ressaqueado respondeu: "que moral?" O segundo de barba loira interrompeu: "alguns dizem que ele morreu na queda. Outros que ele vaga eternamente, cego, sentindo a humanidade sem perecer." Enquanto pagava a conta, o terceiro homem complementou: " E alguns poucos dizem que ele deixou de ser alguém e se transformou em uma ideia, que de vez em quando acomete um ou outro sob a forma de inspiração. Quando isso acontece, dizem as más línguas que ele fala através dos outros sobre a verdade que presenciou." Os três homens então seguiram separados seus caminhos. Já Erasmo saiu em direção ao seu AP quarto/sala, enquanto pensava:  "Preciso urgentemente de asas!"

Por Júlio César

domingo, 13 de janeiro de 2019

J.

O sol tenta aparecer em meio as nuvens amareladas e já de um entardecer de primavera. A poluição é vista do monte  alto onde caminho. Encontro J. Ele senta no banco de entrada do parque, finge que está falando com alguém no celular. Traga discretamente sua cannabis, para que eu não veja. Há algo de discreto em J. como em todos os adolescentes. Acho que não confia em mim para essas coisas. Duvida um pouco. Mas parece normal. Aos poucos percebo que decolou. Lembro de um canto no bosque mais adiante para levá-lo, não queria constrangê-lo. Caminho, mas canso rápido corroído pelos pensares. As pessoas olham para J. como um nada e começam a andar rápido. Adolescentes passam com algum vídeo idiota no celular ou coisa burra que J. sempre diz "esses merdas, só fazem isso o dia todo". J. afugenta qualquer um com seu ar ébrio. Uma fitness passa correndo e transpirando, J. está exageradamente chapado e desconexo. Tonto e atento. Observa tudo. Tonto. Pássaros, sombras, um homem fotografa J. na passagem do tempo, tenta fazer contato com sua perspectiva por detrás dele. J. sequer enxerga a sombra das árvores que animava o fotógrafo. As pétalas das rosas brancas caídas no chão. J. entrou dentro de si. Meio sonolento e preguiçoso. Senta. Sons de pássaros. Quer dizer algo. Sons estranhos de um bixo noturno. E a Luz do dia é breve. Que grande viagem de J. ensurdecido. Vestido como se fosse assassinar crianças e velhinhos nesse parque. Como se fosse um maníaco. Imagem destrutiva de J. mesmo. Chapado. J. diz que quer sair, ir para casa não quer conversa. Quer fugir de algo que não é. Ele me diz: "Ouso dizer nos olhares dessas crianças minha inocência neandertal. Minha cara. Devo estar horrível, um monstro procurado pelo medo."
Ele sorri e eu disfarço o meu desespero. Talvez seu sorriso fosse mais desesperado que meu olhar. Desvio do sorriso. Está sombrio como o cheiro de cadáver que sobe nas árvores do Père Lachaise. Há um fundo triste em J. Não sei o que. Como se precisasse resolver algo constantemente. Uma atenção e tensão pelo nada. Ele disfarça no celular trêmulo. Travado e com medo do não-sei-o-que. Ele me olha turvo: "Eu caço como um bicho de rapina."
Aconselho dar passos mais leves no caminhar. Explico que o espírito capta as entranhas do caminhar e reabro o jogo a meu favor. É importante praticar isso. Ele dizia: "Uma criança quer amadurecer em mim. Eu estou grávido de crianças-ideias. De sentimentos vindouros. Eu sou o pai da vida. Devo protegê-la. As ideias todas da humanidade são sementes, cujo jardineiro sou eu. Eu sou a fábrica de sementes. Eu sou a própria abundância da natureza em florear. Ideias são sementes. E eu sou uma fábrica de amadurecimento. Caço os solos prediletos de ideias mães." Passa estranhamente uma polícia a cavalo. Algo raro. Misteriosamente e aos poucos nos acostumamos com a discreta guerra que nunca deixou de haver. Ele diz "Coincidências chapantes." De repente ele entra em um devir... é o próprio policial do parque. Exuberante em sua pose indômita. O barão da bondade onde a sociedade deixa guardar o sentimento de tranquilidade. Projeta-se no herói. O bem aventurado adormecido em todos. De repente ele se diz a própria bondade. Anuncia gritando: "Não sou o erro. Não sou o chapado. Sou o próprio prazer da copa das árvores na luz do sol. Sou um neanthertal nessa terra. Sinto-me assim sem mais nem menos. Como se quando eu falasse e sorrisse eu quisesse uivar, grunhir e subir nas árvores para imitar os pássaros." Gritava igual o corvo todo preto que homenageia a obscuridade das entranhas da terra.  Eu lhe dizia que havia algo de uma energia solícita nos montes. Povos migratórios pisaram onde pisávamos. Ele sentia-se meio neanthertal meio corvo. "Milhares de anos e sou ainda capaz de chorar a mesma solidão." O corvo apanha um sapo. Parte a cabeça do bixo ao meio. Um isqueiro no banco do lado surge. Não tínhamos percebido. J. diz "O fogo neanthertal, o fogo como instrumento sentado ao lado. O fogo da caça e num botão frabricado. Abandono de ritual." Um cara forte e sua mulher fumam um beque gigante. Encontramos o tal do homem do século xxi que ele tanto falava, quando saíamos caminhando no bosque. São duas emas gigantes. J neandertal na conexão nua com um passado remoto. Volto para casa e me despeço. J anuncia "Pareço ter milhares e milhares de anos. Velho como o sol." E bebe água como uma nascente. Deitou-se e dormia como uma besta. Sabia eu que quando voltasse, voltava como quem retorna de um passado interno e desconhecido. Rico de proezas misteriosas da própria vida migrante e  da caça que grunhe e geme. Havia algo nele de uma atenta tensão de caçador. Usufruindo de radares atentos e de paixões ameaçadoras. Agora estava mais liberto.

Por Jayme Mathias

domingo, 6 de janeiro de 2019

O satanás da revolta.


Pobre diabo, só quer a revolta, nada mais.
Não é o dinheiro, a carne, a glória.
Tudo conversa besta. Ele só quer a discórdia.
Satanás, o grande NÃO. Não quer ser ouvido.
Nunca disse uma palavra sequer. Ele atenta!
O cão atenta nossa consciência, negando o que nunca foi negado.
Nega o texto e a poesia.
O Satanás diz não.
Para toda regra há uma exceção.

Ele não é o espaço em branco. Não é a dúvida, nem o vazio. Não é o nada.
Ele é o não.
Ele não é a maldade. Não é inimigo de Deus, nem da civilização.
Ele é o não.

O diabo não é a santíssima trindade. Ele é uma só serpente que engole o próprio rabo.
Círculo que não é aliança. É eterno não.
Nossa vida seria vazia sem o diabo. Jesus não teria companhia na solidão.
E até Deus não percebe que para resistir às tentações do Cão no deserto ele também disse NÃO.
Paulo Victor de Albuquerque Silva.