domingo, 20 de janeiro de 2019

Provehito in altum

Certo dia, cansado de embriagar-se de problemas pertinentes ao "know how" de pagar o aluguel no fim do mês, Erasmo resolvera chutar o pau da barraca e encher a cara de vera. Desgostoso da rotina de lascado, gastara o restante do insuficiente ordenado com um doce e 2 garrafas de rum. Lá pelas tantas, já bastante viajante, resolveu entrar em uma birosca para não correr o risco de dormir ao relento e ser violentado ou incendiado, confundido com um mendigo na "pacata" Fortaleza. Na espelunca não havia quase ninguém, exceto por uma mesa no canto na qual sentavam três figuras estranhíssima, as quais Erasmo não sabia distinguir o que eram. Viajando no céu de diamantes, tampouco fez questão de fazê-lo. No entanto, fortemente influenciado  pelos sentidos, Erasmo foi gradativamente captando o estranho diálogo que ali se desenrolava. Os homens falavam sobre algo como um exame vivo de partes funcionais do corpo, ao que pareceu mais um encontro de legistas que uma conversa informal de bar. Ainda que involuntariamente, Erasmo se viu tragado pela torrente de pensamentos dos homens que falavam dos mais variados conhecimentos. De desinteressantes passaram a sábios bardos da modernidade que agora contavam as mais fascinantes histórias que o jovem proletário ouvira em seus vinte e poucos anos. Um par de horas depois, um assunto em particular chamou atenção do viajante. Os mascates falavam sobre a história de um anjo que desafiou o firmamento, porém não referiam-se a Lúcifer. Fascinado, Erasmo transportava-se para dentro da história da mesa ao lado. O ser celestial possuía outra reivindicação, diziam, não tinha ambição de ser maior que Deus, apenas buscava igualdade entre as criaturas do céu. Por possuir as asas negras, diferente de seus irmãos, o anjo fora condenado a viver aos pés da árvore do conhecimento onde recolhia os frutos imperfeitos que ali caíam. Certa vez, encorajado por um transeunte, burlou as regras e comeu um fruto inteiro que lhe fora dado pelo passante indignado ao ouvir sua história. Em seguida o celestial teria voado às portas do céu onde clamou a Deus que o explicasse por quê da diferença entre ele e os seres que ali habitavam. Para sua surpresa, descobriu pela boca de Chamuel, arcanjo da devoção, que Deus não estava ali, o príncipe celestial no entanto concordou em mostrar o verdadeiro conhecimento negado ao caído e notando a fúria que aplacava o mesmo, incumbiu Raguel, anjo da justiça, por levá-lo ao reduto da verdade. No entanto, ao deparar-se com o conhecimento pleno, o caído perplexo chorou lágrimas de sangue enquanto dizia: "era por isso então! Meu pai sabia que eu não estaria preparado, que eu não suportaria esse fardo! Eis que a luz finalmente cegou meus olhos por querer enxergar!" Tomado de desgosto, o anjo caminhou até a beirada do infinito, arrancou com as próprias mãos as asas negras como a noite e se lançou triste e "livre da aflição de não saber". Enquanto percorria o trajeto contrário ao de Ícaro com suas asas de cera, o anjo sentiu a mortalidade tomar conta do seu corpo em forma de dor. Melancólico e convicto desaparecera no infinito.
De volta à mesa do bar, um dos três homens na mesa olhara para o relógio e exlcamara: "deu minha hora! Falou doidos! Tenho que ir! Falou!" Inconformado com o final trágico e abrupto da história, Erasmo foi em direção à mesa dos bardos e exclamou: "e o resto da história? Que fim levou esse anjo? Qual a moral?" Um dos três homens, de cabelos longos e aparentemente ressaqueado respondeu: "que moral?" O segundo de barba loira interrompeu: "alguns dizem que ele morreu na queda. Outros que ele vaga eternamente, cego, sentindo a humanidade sem perecer." Enquanto pagava a conta, o terceiro homem complementou: " E alguns poucos dizem que ele deixou de ser alguém e se transformou em uma ideia, que de vez em quando acomete um ou outro sob a forma de inspiração. Quando isso acontece, dizem as más línguas que ele fala através dos outros sobre a verdade que presenciou." Os três homens então seguiram separados seus caminhos. Já Erasmo saiu em direção ao seu AP quarto/sala, enquanto pensava:  "Preciso urgentemente de asas!"

Por Júlio César

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