domingo, 27 de dezembro de 2020

Meta



Dirigindo-se à entrega de um texto para concurso literário. Inédita era essa obra tão especial. Fazia dele um verdadeiro poeta. Um verdadeiro artista e sentia-se bem com essas denominações. Excitado, vinham imagens na sua cabeça, a pulsação de um coração que acompanhava as imagens que advinham. A sensação de ser alguém que ele tanto admirou, leve como tudo aquilo lhe inspirava, feliz como tudo aquilo o felicitava. 

Pensava em Kurt Cobain e seus olhos inspiradores, em Jim Morrison e sua serpente xamânica, ia até John Lennon como um símbolo. Descia até à braveza de um Beethoven surdo, à inocência de uma criança pequena e compositora que se chamava Mozart. Cambaleava no pacto de Goethe, encaixava suas palavras como Shakespeare, revoltava-se melancólico como Fernando Pessoa. Pegava-se em pensamentos que compunham dramaturgias como Ariano Suassuna. Mistérios como Poe. Sacadas de um Manoel de Barros, ousadia de um Oswald de Andrade, beleza angustiada de uma Lispector. Daria entrevistas como um Ferreira Gullar. Seria intempestivo como um Hemingway. Louco como um Burroughs e cru como um Henry Miller. Ou qualquer outra coisa de importante que o caro leitor queira considerar: Buda, Jesus, Sócrates ou um desses poetas metafísicos. 

E o fato é que muitos faltavam à excitação daquele dia em que depositava sua esperança em ser reconhecido, como reconhecera dentro dele o que cada um que ele admirava representava. 

A secretária que estava recebendo a papelada para o concurso literário entregou-lhe um formulário: 

- Basta o senhor preenchê-lo e depositá-lo na caixa verde ali ao lado. 

Indicava a moça como se tudo fosse tão simples como escovar os dentes, ou como amarrar os cadarços. Simples como enviar uma carta, simples como dizer a quem ama que está com saudades, simples como um enterro, simples como um parto ou um casamento. Simples como abrir o coração e escrever tudo que escrevera. Simples como ser um poeta! 

Apoiava-se no balcão para preencher o formulário. Preenchia sem pensar duas vezes as partes relativas aos dados pessoais básicos. Titubeou na parte concernente à profissão. Ficou de preencher depois. Tomou fôlego. Seguiu em frente, tinha que dar certo. 

“Pseudônimo” 

Pensava o que preencher ali. Achou que podia ser ele mesmo, hesitou, pulou para a próxima lacuna inquisitória. 

“Defina em poucas palavras suas características artísticas” 

Foi a pergunta mais inconveniente depois de tantas outras daquela inquisição. Parou tudo e se deteve em reflexões sobre o assunto. Nunca havia feito aquilo na vida. A mesma sensação que temos quando, bem longe, lembramos-nos do dia em que nos perdemos de algum adulto que nos acompanhava: pais ou não, no centro da cidade, num supermercado, numa feira, num parque, numa praia, numa rodoviária, num aeroporto, no meio do mar, a onda levando pra lá e pra cá sem colocar os pés no chão, no meio do rio levado pela correnteza sem ter um galho ou uma raiz pra meter a mão ou qualquer outro abismo que o leitor queira. 

Perguntou-se o que lhe definia sinceramente. Sentia medo de não saber a resposta, de não mais ser concebido como poeta, artista ou pensador. Acanhado, tentava ultrapassar os limítrofes do que poderia ser uma boa resposta para conseguir ser aceito naquele concurso. 

Aglutinou proposições, justapôs palavras, tentou ouvir música nos fones de ouvido para se inspirar. O coração palpitava como se um passo errado o desafiasse a não ser o seu próprio sonho, a não ser ele mesmo de verdade, a não ser sua própria verdade, a não ser seu próprio sucesso e seu próprio fracasso, como se pisasse em cascas de ovos, como se num campo minado estivesse, como se estivesse numa corda bamba em um abismo muito alto, pisou errado adeus, ou qualquer tipo de reprovação que o leitor exageradamente queira. 

Nada fazia sua mente se adiantar em uma resposta segura que satisfizesse tanto ele mesmo como o concurso literário, então veio escrever isso que apresento agora. Aliás, talvez mais importante que concursos literários. E esse personagem que hoje nem sei o nome, apesar de tudo, segue sem saber o que é. E talvez a grande meta seja nem querer saber. 

Jayme Mathias Netto 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Realidade turva


   




09 de dezembro de 2020. Carro parado no sinal vermelho. Bairro Benfica, Avenida Imperador, cruzamento com a rua Antônio Pompeu. Dezoito horas e sete minutos na noviça noite nublada. No céu sem estrelas, cinco luzes brancas, cinco vermelhas e uma amarela, resumidas a postes e sinais de trânsito, todas cobertas pela película de vidro do para-brisa manchado de chuva frustrada. Estacionada atrás da imagem está minha esposa, à sua frente, nada além da própria realidade turva. No horizonte, árvores verdes frondosas misturam-se com o azul escuro do firmamento. Um carro vermelho dobra na esquina, do outro lado um carro pequeno segue um ônibus. À medida que o olho corre, pontos ancorados de luzes preenchem a distância num banho de sangue fantasmagórico das trilhas metropolitanas. A calçada espera o humano, o piche acolhe as máquinas. Fios altivos simulam trapézios mortais com redes elétricas, iluminam a noite artificionalizando o que seria o dia na procura de não interromper a labuta do homo faber. O precioso instante, o click mortal numa fração de segundos desvela a relação simbiótica, sem humanos - apenas seus rastros -, entre as máquinas e as plantas, pois quem revela é a lente da câmera.

O foco da fotografia está no painel, no para-brisa ou na rua? E o meu foco, é meu ou da máquina fotográfica?

A imagem fixada pela câmera nos permite voltar ao seu olhar, percorrer a foto, despertar para seus detalhes efêmeros, vislumbrar a fração do segundo. O que vejo? Detalhes do fragmento, do momento preciso em que a fotografia foi realizada. Vejo o que minha consciência, no instante do flash, não viu, um mundo inconsciente estagnado no retrato dos agoras.

Do lado direito um prédio contendo, o que acredito ser, um outdoor. Nele anunciam-se promessas de um futuro próspero. Na frente do ônibus, um motoqueiro freia bruscamente devido a um cão desatento. A senhora no carro vermelho escuta seus louvores preferidos no rádio para suportar o engarrafamento. O homem-máquina pilotando a moto no canto esquerdo planeja subjugar o sinal vermelho, a seu comando. E eu, bem, eu tenho a impressão de que já estive neste lugar antes.


Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 13 de dezembro de 2020

Poetas são...

 Poetas são pontes que ligam dois abismos.

Teleférico entre montes.

Fontes do livresco sem o livro.

Pontos críticos de um abalo sísmico.

Algoritmo que flutua entre verdade e opinião.

Falso silogismo entre escrita e noção.

Sentido sem direção.

Livre escoar da vida pelos cantos,

nos detalhes esquecidos,

nos prantos que secaram e ninguém viu.


São veneno e cura do mesmo mal, elixir amargo e mel doce para a dor banal do vazio.


Poetas são causa sem motivo

São choque sem aviso

e entram sem pedir licença,

ou nem chegam a dar o ar da graça.


São certeza que mata dúvidas e conferem nova vida às células que vivem túrgidas de solidão e acham que por isso estão sós.

Para depois engodar o peito em outros nós e dar a convicção de que nascemos e morremos sozinhos.


São mais de um mesmo que raramente se encontra, mas que facilmente se acha se olharmos com mais atenção aos detalhes.


Poetas são quando convém,

falam quando condiz

Àquilo que conduz ao alvorecer do espírito,

à conclusão de que "não precisa morrer pra verter luz"

nem ser pregado numa cruz online

para que a sua verdade seja ouvida.



Poetas são brasa que marcam na alma eterna cicatriz,

ou mesmo entram pelo ouvido e saem pelo outro.

Voltam pelo nariz como o ar para aqueles que respiram arte.

Um todo, em partes.


Universo particular,

partícula universal,

Região abissal do sentir.


São imperfeições perfeitas

Atmosfera rarefeita para o pétreo

Um sol prestes a se por e ensaiar o nascimento

Amantes da verdade e escravos da mentira

Soco seco na barriga

Projétil de alta precisão e calibre.

O deixar livre a ponta do lápis e dos dedos.


Malabares de palavras

Lavradores de fulgor

Fazedores de pirraça

Lavadores de amor.

Humor que muda a cada linha

Calafrio que percorre a espinha

e termina no cortex central.


Não almejam lucro, nem lacre.

Seu recitar está além das eras,

são o massacre daquele que venera a palavra estática.

Inimigos e amantes da gramática, somam versos onde um mais um é tudo, menos dois.

Fragmentos de um mosaico, matemática do caos.

Festim que fere de morte o orgulho do formal e do cômodo.


Poetas são e a felicidade fugaz inveja,

pois eles são brecha por onde passa o que permanece até depois de saciado o próximo desejo.

Acometem como num lampejo,

mas quando acertam o ventrículo, não há folículo na pele que não sinta sua presença.


Poetas são tanto e tão pouco

Que eu poderia escrever este poema para sempre ou não ter escrito uma letra ou pensamento solto sequer nesse bloco de notas.

Tantos e tão poucos

Hoje tidos como loucos

Pois usam da palavra para viver


Ainda assim. 

Eles permanecem.

Pois em hipótese alguma meramente estão.


Poetas são! E sempre serão.


Júlio César

domingo, 6 de dezembro de 2020

Desperdício

No desdém que o cotidiano tem ao homem de pensamento, houve certa vez uma roda de conversas.

Estavam todos a gabarem-se de seus afazeres e ocupações que trazem o dinheiro, pois dessa forma é que todos querem muito poder. 

Cada qual fervilhava no ardor quente das gabações e vantagens a serem contadas, esforçavam-se para chamar atenção do quanto eram aplicados em suas profissões. 

- Sabe, fui promovido ontem e o chefe vai dá um churrasco pra gente comemorar lá na firma.

- Uau, isso merece um brinde com Chivas.

- Uau, é mesmo. Vou buscar.

E, por detrás das amarguras reais, um homem de pensamento apenas pensava:

"Quantos demônios ainda terei de expulsar de dentro de mim para que essas pestes saiam da minha vida? Quantos ainda tão desconhecidos vão me atormentar? Quero expulsá-los do nada para lugar nenhum para ver se ao menos sangram por algo que não seja preço e números. Não observo muito bem nenhum deles, mas existe ainda luz até no nada?"

No entanto, como que encerrando o assunto, aquelas cabeças voltaram-se com desprezo para ele que ao menos aparentemente e inocentemente nada fazia. E  passaram a fazer valer o mal-estar de seu ócio. 

Ao que o homem de vita contemplativa, para usar um termo mais filosófico, afirmou docemente - com ar de sobriedade de quem trouxe aqueles pensamentos de cumes bem altos e cheios de neve - e como quem odeia com modéstia suficiente para ser um guerreiro em palavras. 

- Bem, eu vos responderia, não faço eu nada? Pois bem. Ousem, sair dessas fervuras egóicas, ousem sair de suas comodidades que querem tanto encobrir com finanças, isso que em excesso torna evidente a vossa insegurança. Ousem tecer em seus espíritos a liberdade, não essa de proatividade que tanto esquentam vossos couros com chibatadas abstratas que vocês se orgulham com o nome de trabalho, mas parecem mais macacos no trono cheio de lama! Ousem ministrar não respostas, afinal vocês têm muitas, mas perguntas silenciadas por conhecimentos que beiram a loucura. Ousem admitir a náusea da descoberta de uma ideia em seu corpo e, depois de muito tempo, ousem aquela suprema alegria, da ideia de gerar um modo de vida próprio, um valor próprio. Ao fazerem isso verão que jamais quem assim vive está de férias, jamais encerra o ato de pensar, jamais deixa de incomodar-se nem mesmo nos seus sonhos. Verão ainda que não temos quase nenhuma recompensa material. Nada que possam dizer férias. Nada que nos faça assumir de fato o orgulho de sequer "ter algo", pois percebemos o domínio que nos encobre e que nos utiliza como instrumento, bem como as entranhas capazes de nos fazerem forasteiros. E verão que tão hábeis para a guerra somos também hábeis para a fuga.

Calaram-se todos, desconversaram como covardes. Quem é lá debaixo não sente o fogo da coragem, querem sempre a novidade. Eles simplesmente mudaram de assunto. Enquanto ele ainda pensava:

"A vida nos pega pela mão e nos ajuda a entender da melhor forma que podemos, ela nos deu a melhor forma que podemos e o que há por aí é muito desperdício."

Jayme Mathias Netto

domingo, 29 de novembro de 2020

Velho mundo

Hoje, acordei procurando algo novo

Na esperança do diferente me deparei com o mesmo

Vasculho o velho baú encostado no porão

Dentro, empoeiradas lembranças do sempre igual


Onde está a diferença que tanto procuro?

Onde habita o novo, em mim ou no mundo?


O novo me vem no velho que me habita


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 22 de novembro de 2020

Diafragma

De onde surge a poesia?
É a pergunta da vez. 
Com quantos anos você fez seu primeiro poema?
Viu na linguagem o primeiro problema entre sentir e dizer?
Respondo que,
como o canto da voz,
como o vento assobia,
como água da foz,
ela "brota no bailão."
Como o regurgitar,
involuntário,
daquilo que não se consegue segurar, um transbordar que se finda no alívio da expressão.
Sem pressão,
feito respiração diafragmática,
ocorre sem que percebamos.
Ray Bradbury disse certa vez que "o homem precisa ter algo para fazer, caso contrário sente-se inútil" deve-se, nestes momentos, lembrá-lo de que existem outras coisas. Lembrá-lo "da honestidade, beleza e poesia que se perdeu pelo caminho."
Aquilo que se fez verbo, possível foi somente por parar para observar na contramão da repetição técnica.
"Homens ativos rolam tal como pedra conforme a estupidez da mecânica."
Camus diz que isso acontece pois:
"Adquirimos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar. Nessa corrida que todos os dias nos precipita um pouco mais para a morte, o corpo mantém esta vantagem inalterável."
Por isso é importante,
que uma vez ocorrido o rompante,
é preciso treinar o olhar, para ver adiante,
tal como se treina o diafragma.
Dar atenção à beleza colateral.
Nela pois, reside a poesia,
na fantasia de sonhar acordado,
de olhar de lado e enxergar, 
por entre as frestas da rotina,
no reflexo da piscina,
durante a sabatina do professor,
o arranjo de palavras, usadas todos os dias, 
ordenadas de tal forma,
como o retumbar de uma metralhadora,
que atinge diretamente a alma,
lembrando o homem daquilo que  criança nunca esquece.
Pois pode ser que no fim das contas,
a junção de todas as pontas, 
a resposta de todas as somas que fazemos em nossa cabeça, 
é de que o sentido da vida é sentir e não pensar.
Expressão,
concretização da impressão.
A tantas pressões somos expostos. Mas é justamente da contramão que nasce a poesia,
da mesma fonte da filosofia que responde a teimosia do corpo em existir e questiona o motivo.
Mas também pelo que foi sentido na pele, nos olhos, nos ouvidos.
Reflexão,
reagir a uma ação.
Como o respirar. 
Relaxar.
E assim, o que começa como um tatear no escuro,
um sapatear no desconexo,
toma forma de sentimento que não cabe em nenhuma gramática.
A muitos porquês atribui-se a causa poética, ao absurdo, ao avesso,
a estar perto do fim,
ou logo no começo,
a resistência,
a essência e a beleza,
até mesmo ao estranho.
Gostaria pois, de adicionar a estes ganhos, o diafragma.
Ele está em todos nós,
move-se silencioso, sem que notemos. Involuntariamente,
tal como ouvimos o silêncio,
como enxergamos a escuridão e consertamos o que quebrou.
Está lá!
E uma vez que passamos a percebê-lo, podemos usá-lo sempre que julgarmos pertinente.

Júlio César 

domingo, 15 de novembro de 2020

Pus

"Fugi do mau cheiro. Fugi da idolatria dos supérfluos. Fugi do mal cheiro. Fugi da fumaça desses sacrifícios humanos. 
Ainda agora a terra está livre para as almas grandes. Vazios estão ainda, para os solitários e os sozinhos a dois, muitos lugares em torno dos quais corre o cheiro dos mares quietos. Ainda está livre, para as almas grandes, uma vida livre. Na verdade, quem pouco possui, tanto menos será possuído: louvada seja a pequena pobreza."
(NIETZSCHE em Assim Falou Zaratustra ) 

A poesia tornou-se um pus da sociedade, anunciando que há uma luta interna entre a cura da doença que a gente vive. Sinalizando a luta do corpo doente. Anunciando a ação de um anticorpo. No futuro, verão esse século e falarão: "Eles eram isso e isso, eram uma transição entre tal e tal coisa”, como sempre fazem os historiadores e acrescentarão: “Mas aquele século era o século onde a arte se disseminou para qualquer um. A Áurea por trás do artista apagou-se e deu lugar ao artista que havia em cada um, porque seu tempo sufocava um por um. Eram seres expressivos por excelência que não queriam deixar sufocar a vida que 
levavam. Tinham turismos acessíveis, viajavam em vários cantos do mundo, tinham informações para saber sobre qualquer tempo de qualquer lugar e época, mas algo sufocava aquele século pelo qual eles tinham que expressar artisticamente sem serem artistas 
consagrados." 
Então pergunto-me hoje: seremos nós a efetivação do triste eterno retorno? Sou uma espécie de Nietzsche não germinado? Um tipo de Spinoza corrompido? Incapaz de operar qualquer mudança na forma de concepção dessa realidade de ‘panem et circenses’? Um decrepto incrédulo e fruto de uma sociedade abortiva que me desceu pelo ralo? “Fugi do mau cheiro”, mas ele não se foi totalmente. Permanece entranhado cada vez que tento me comunicar... E quanto mais passo o rodo da língua, mais sujeira eu vejo que me cerca. Sou o peixeiro que se lava compulsivamente após o expediente e ainda assim não cheira bem. Por hora me concentro em passar o sabão da forma mais intensa que consigo. Que minha tentativa de ser diferente não me leve a uma igualdade qualquer. 

Jayme Mathias & Júlio César 

domingo, 8 de novembro de 2020

Poesia ruim

Não sei escrever uma poesia que preste

Nem minha mãe elogia

Ainda insisto escrevendo, pensando, rimando

É gostoso compartilhar meu infortúnio


Acho mesmo pretensioso chamar isso de arte

Até chego a me preocupar com uma vírgula, pontuação, peço a ajuda de um amigo

Mas é só pra confirmar o inevitável

“Tá uma porcaria”


Cansei de tentar escrever bem

De onde vem sua inspiração? Perguntam

Da mosca que atazana minha cabeça

Respondo me coçando


Vocês já se perguntaram o quanto é difícil escrever algo bonito?

Por isso prefiro o ridículo

Esquisito, medonho, grotesco...enfadonho

Tentar ser bom cansa


Melhor do que a boa escrita é admitir minha falha, a incongruência e ruindade que habitam em mim. A poesia sonoramente inferior é aquela que fere o ouvido, que arde o olho, que fadiga, que causa nostalgia.

Sim!

Nostalgia…

Nos deixa com saudades da boa poesia

Do mundo dos sonhos que se abre na linguagem

Que faz da língua portuguesa um parceiro de dança

Ao som do silêncio que repousa nas páginas e os sinais das palavras cravadas em nossa pele.

Nas extremidades do meu corpo, encontro o limite da boa poesia

Assisto o fracasso do escrito cuidadosamente amparado pelas páginas

Sinto vividamente o sentimento mais puro e honesto dos últimos dias

Me encerro compartilhando a mais doce e velha nostalgia.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 1 de novembro de 2020

Ozymandias

Adrian, altivo, observa de cima de seus ombros bem postados a humanidade em decadência. Tanto tempo se passara e ainda assim quase nenhuma ruga denunciava seus dias. Não fosse a mecha de cabelo prateada, partindo do topo da fronte e descansando serpeante parietalmente, atrás da orelha, lhe diriam ter seus vinte e poucos anos. Sempre bem tratado pelos cativos que enfileirou aos pés do seu intelecto, das mais diversas etnias, religiões e filosofias, ele bebeu. Absorveu o que dinheiro nenhum, mesmo os seus bilhões o proporcionaram. Empírico, se inspirou em grandes conquistadores, atraído por suas perfeições estratégicas. Alexandre, Ramsés, com os quais sonhava e se inspirava, mas que após conhecer detalhadamente suas trajetórias, regurgitou os anseios ao ver o quão pequenos eram e o quanto os livros tinham sido para eles enormes lentes de aumento. Agora suas imperfeições o fascinavam ainda mais. Questionava o que teriam feito esses homens de bom para serem tão honrosamente retratados, por matar e escravizar, por ter em suas mãos culturas e povos desmanchando-os como esculturas de argila. "Esses--refletia ele com desdém-- são os maiores exemplares da humanidade", almejava chegar em outro patamar, construir para si a hegemonia perfeita. Em contramão, era concomitante o quão às vezes pegava-se no introverso cotidiano dos comuns e os observava inquerindo como idiotas erráticos conseguiam errar de novo e de novo e continuar errando depois disso? Como tartarugas a escorregar no lodo da saída do lago e voltar ao fundo para tentar tudo novamente. Mas é do feitio da própria existência que genialidade alguma, de grande homem qualquer, por maiores que sejam suas conquistas, consiga superar o inato. Como que num giro do plot, o destino colocou Adrian junto ao joio do qual tentara a todo custo se separar, quando murmurava repetidamente para si e seus cativos: "Meu nome é Ozymandias rei dos reis, contemplem minhas obras ó poderosos e  desesperai-vos." Adrian julgou que o conhecimento ultrapassa o tempo e o tempo daquilo que ele julgava saber passou e transformou tudo ao seu redor. Como numa espécie de círculo perfeito. Seu Q.I rapidamente assimilou que o tempo engole tudo, até mesmo a certeza científica, fazendo o mais inteligente ser o mais tolo por não ter percebido o simples giro de um ponteiro.
Já com ombros nem tão altivos assim, Adrian se viu espatifado. Dos seus pedaços, sobrou a cara não mais astuta, mas resignada. Em cacos diante de seus próprios pés, repetia seu mantra com os lábios quebrantados em meio aos gentios, que aos poucos sumiram dali deixando Adrian soterrar-se lentamente no próprio deserto de solidão quase inabitável, exceto para si e seu fabuloso ego.
Pouco antes do oblívio, sua mente mesmo convalescendo, em um relance de acuidade, entendeu tarde demais que, defronte ao tempo, a verdade se torna mentira, o absoluto vira relativo, uma quimera é louvada de sensatez, e impérios de reis viram o caos do tolos. 
Que "homens gostam muitíssimo de construir e pouquíssimo de preservar"
E o que um dia fora fidúcia da imponência, hoje se esvai distante na narrativa fantástica de um viajante de terras antigas que certa vez se deparou com "duas imensas e destroncadas pernas de pedra erguendo-se no deserto... e no pedestal apareciam essas palavras: "Meu nome é Ozymandias rei dos reis, contemplem minhas obras ó poderosos e desesperai-vos."
De quase tudo que se vai, o que permanece nos lembrando volta e outra é que, seja pelos olhos de Shelley, ou de Smith, seja nos reinos de Alexandre, Ramsés, ou até mesmo o do impetuoso Adrian, é que todos os impérios caem.

Até mesmo os da mente.

Júlio César 

domingo, 25 de outubro de 2020

À Hilda

As horas chuvosas que trazem essas manhãs tardias são as melhores. Eu não sou poeta se o dia não me vem com essa brisa passageira. Não bastasse a embriaguez matinal que sinto 
apenas por ser manhã, ainda ouvi os gritos de Gaspar e sua amada ao gemerem hoje cedo. Fiquei a imaginar um pornô explícito. Um pornô francês do tipo “Ah Putain! Vas-y, Vas-y.” A língua francesa nasceu para o chuchoter e para o sexo sussurrado, Rousseau notou bem isso numa de suas cartas. Basta ouvir de onde vem os tons e fonemas dessa língua que Gaspar admitia ouvir gemidos e sobrevoos de orgasmos na esteira do tempo. Uma sensualidade nas cordas vocais é o que Gaspar já tinha ouvido de uma puta nas suas primeiras aventuras. Nunca tinha ouvido a palavra ‘cu’ sendo dita de maneira tão poética. Logo Gaspar, que aprendeu logo cedo a exprimir essa palavra como a primeira de seu vocabulário. “Papai”, “mamãe”, não! Foi “cu” a primeira palavra que disse! E anos depois uma puta falava cu no seu ouvido e ele percebia pela primeira vez o poder que as palavras têm! As cordas vocais são provenientes das entranhas sexuais. Chuchoter já é uma palavra sexual aos ouvidos de uma tara perturbadora como a de Gaspar. Ontem eles gritavam, um grito abafado pela vergonha repentina. Um travesseiro ou qualquer coisa do tipo abafou a gozada. Primavera, souberam eles, todas as janelas escancaradas e logo quiseram distrair o gozo tão belo que eu ouvia. Sei lá se tinha a ver com cu, mas ela gritou enquanto ele gemia. Dava para escutar de qualquer lugar ou queriam eles serem escutados. Vai ver que o cu queria expressão! Os órgãos têm vida própria! Deve ficar puto o cu que se exprime quando peida e todos riem! Fazer coisas que as pessoas só riem todo tempo deve ser um saco, enjoa ser bobo da corte! Gaspar estava numa de expressão abstrata nos últimos quadros que tinha pintado. Era mandala oval. Sabia que havia algo de tudo menos vaginal na sua tara expressiva. Ele queria transpor o chakra base em formas de mandalas. No fim, o cu de alguém queria dizer algo! Quando fui hoje no indiano que vende jornais aqui no bairro, vi que os jornais não diziam nada demais, mas a paz que esse cara me trouxe valia mais que qualquer dia de notícias boas. É raro o dia que vivenciamos nós mesmos. Ele trouxe o tempo igual ao que o tempo era no infinito. Ou seja, tudo parou. A paz. Tudo cabia no lugar adequado e o ritmo das pessoas entrou em harmonia no serviço que ele prestava ao tirar xerox e liberar telefonemas nas cabines. Ele previa a orquestra matinal e ritmava cada um em seu tempo certo. Se alguém queria adquirir algo de sua lojinha ou de seus serviços, ele conversava e abençoava cada um com reflexões do tipo: “vale mesmo a pena gastar seu tempo com isso?” Quando o vi pela primeira vez, fiquei estarrecido. Eu permanecia em sua frente, atrapalhando a fila de pessoas que já tinha se formado, apenas para ouvir suas palavras claras. E ele sorria com um conjunto de belos dentes brancos, bem organizados como tudo que ele transparecia. E foi justamente ontem que Gaspar me perguntava o que tinha a ver o cu com o indiano. Eu lhe disse que ambos estão na base de nossa conexão com a terra. No chakra base. Falei-lhe sobre a kundaline e as meditações. Ele, peludo como um boi, levantava sua caneca de triple blonde e voltava o olhar para mim como seu pai fez na época que ele repetia a palavra cu tomando a mamadeira: “Ha ha pobrezinho! Num sabe nem o que fala!” E, até hoje, ele gagueja em qualquer coisa obscena. Mas aí o indiano chegou em seguida no bar. Tomou um gole com a gente e tentava harmonizar para os astros, que é de onde parecia ter acabado de chegar, o sabor do álcool, como se telegrafasse uma mensagem ao além. Ele ensinava aos deuses coisas humanas! E Gaspar finalmente entendeu a espiritualidade do sexo e a sexualidade das coisas espirituais! A vida é mais simples quando o indiano chega em um ambiente! Ele carrega a paz! E Gaspar só susurrava sem que saísse de sua boca a palavra cu! A paz e o cu sempre querem dizer algo.

Jayme Mathias Netto 

domingo, 18 de outubro de 2020

Máquina de moer bois


Eu não passo simplesmente pela Osório de Paiva, eu corro sobre ela. No volante, minha atenção está direcionada ao sinal, ciclista, carro, buraco, meio fio, cooper, pisca, moto, freio, ônibus. A avenida Osório de Paiva, para quem dirige o automóvel, não é a mesma para quem caminha. Quando nela ando vejo o carrinho de doces do Dé, cachorro morto no meio fio, roupas de ginástica emolduradas em corpos que correm, sinal, plantas, mato, ciclistas, churrasco, rachaduras na calçada. Eu simplesmente passo sobre a Osório compondo seu quadro.
Em tantas idas e vindas sempre me deparo com ele. Vem andando sobre o lado direito do meio fio respeitando a direção do fluxo do trânsito. Quando chega no desvio, retorna, ainda em respeito ao novo fluxo que não é uma volta mas somente o outro lado do meio fio. Tem o ombro direito mais elevado que o esquerdo, fazendo com que seus passos respeitem a velocidade de seu desvio corporal. Blusa marrom, não sei se devido ao tempo, calça cinza e empoeirada pelos agoras da calçada. Nunca olhei para os seus pés, não sei se usa sandálias, se caminha descalço, se percebe o chão. No rosto, nenhum sorriso, nenhuma lágrima ou dúvida, apenas a certeza do caminho, a avenida do sempre igual. A pele suja e a cabeleira amontoada em grandes blocos de cabelos concentrados de oleosidade, numa espécie de colmeia capilar, anunciam os longos anos de cuidado com sua trajetória.
Ele caminha. Em meio a tantas incertezas, desejos, procuras, atrasos e disputas, entre acidentes de vida e morte, ele caminha na certeza do seu lugar. Anda sobre o meio fio como o equilibrista sobre a corda no abismo que paira a Osório de Paiva. Nunca o vi parado conversando, observando, cheirando, contemplando, respirando, nunca o vi parado.
O homem que caminha sobre a Osório nunca é percebido, logo, não é interrompido. Seu perímetro é um fragmento da avenida. Ele circula um trecho de vida. Ele movimenta-se não como o Flâneur, não observa a vivência das ruas, antes, ele é o ser pulsador na artéria aberta transitória da periferia de Fortaleza. Sua casa é o passo, a jornada para chegar no mesmo lugar.
Em uma cena do filme de Walter Salles “Abril Despedaçado”, o “menino” questiona seu irmão se a vida de sua família não seria semelhante a dos bois que fazem a máquina de moer funcionar devido ao seu movimento eternamente circular. Pergunto-me o quanto nossa vida é maior do que a atmosfera da Osório de Paiva e se, afinal, o homem que caminha sobre a Osório realmente seria o boi.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 11 de outubro de 2020

Tempo esguio

Dia a mais, dia a menos.
Amenos, já não são os minutos
Que diminutos se transformam em horas flutuando com o vento.
Advento da apatia, advance da monotonia, traduz-se num funk: sequência de dia e noite, sequência de noite e dia.
Esguio, o tempo escorre como num haikai escrito tempos atrás
Fazendo parecê-lo muito mais lento o tempo ali descrito, quando escrito, que hoje.
Embrolho, o abrir e fechar de olhos aproximar-se vertoginosamente do passar dos dias.
Vertigem em nossa mente transitando no piscar.
Pisco é dia, pisco é noite.
De modo que falar sobre tristezas e alegrias do presente é árdua tarefa, antes que o agora vire ontem.
Nem sei mais o que, quando e quanto sinto, apenas que o sentimento existe no instante que sou.
Absinto da alma é ser livre e voar
estando preso.
A única certeza que me resta é o tempo...

   ele 
         tá 
             rolando
                          escada 
                                      abaixo.

Júlio César 

domingo, 4 de outubro de 2020

É o novo!

Um segredo:
o
novo...
repete 

A Repetição virtude?
Repetir 
repetição.

Abecedário da vida,
aprender um modo outro: 
possível.

Como não? 

«Colocar em movimento a matéria pensamento!» 
Deleuze

Escutar gente besta, 
viver a vida besta é
aprender algo para não sê-lo!

Devagar e constante até que algo «velocita»
é um porvir.

Encontro necessário: 
filosofia
atraso, 
retardo, 
latência 
do pensamento
e ...
PLIM: o novo abre fissuras!

Jayme Mathias Netto 

domingo, 27 de setembro de 2020

Cangaço

- Minha literatura é de resistência. - Da terra rachada. - Do conflito de pistola contra a polícia sustentada pelo Estado que assegura o capital. - A bala é minoritária, sai das mãos de Maria Bonita, Lampião e Lunga. - Como no cangaço, a literatura de resistência não tem que produzir espectadores, mas sim novos combatentes. - Armado até os dente, me embrenho nos mato na procura do grande rosto opressor que nos vigia. - Eu não escrevo, eu me armo. - Em minha memória reluzem gritos oprimidos. - Seu Mathias tem razão, a maior munição é a letra, então escreva. - Convocamos combatentes na contramão da rua de mão única, os que foram apagados do grande mapa territorial dominante e que vivem no Bacurau. - Ou como fala seu César, quantos padeiros espirituais silenciados à espera do estrondo do canhão. - Nosso estouro irá ressoar em todos os ouvidos extraviados. - Nossa mira tem como alvo o grande rosto masculino branco, heteronormativo, colonizador, fascista, egocentricamente fálico e dono dos meios de produção. - Queremos diferença, não repetição. - A revolução se faz com a peixeira torta afiada na nossa carne, ou como quando o poeta Zé da Luz fura o bucho do céu. - É da caatinga, do cacto que resiste na seca, da foice que corta cana, do pé que se racha como a terra, é de lá que vem o vigor de quem cria. - Que sejamos os produtores inacabados de nós mesmos. -

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 20 de setembro de 2020

Fractal

Não tenho nada além do que sou.
Não sou nada além do que sei.
Quem então dirá ao certo qual o meu valor?
Quanto vale o amor que estou disposto a dar?
Como medir a distância dos passos que dei por onde passei?
Quanto custa o litro do meu sangue?
Das páginas que li, o que tiro de teoria e prática
é que sou só um ponto em uma linha infinita.
Um fractal em uma nevasca que cai. Bonita, mas fatal para os cristais que se derreterão no solo.
Por que me importar com o que acumulo no trajeto?
Quando tudo que possuo se esvai?
Ganhei o que nunca pedi.
Perdi o que sempre quis.
O que eu tenho?
Sentir, sem ti. Pois sem ter, não sou!
O amor é real?
Ou apenas autoconsolo de um mundo que reza pelo coletivo e idolatra o individual?
"Todo mundo busca desesperadamente algo para idolatrar",  
disse certa vez o dito profeta.
Ser ou ter? O que te afeta?
O que você busca dessa vida?
O que deixará?
Memórias ou fortunas? Observe o defeito nessa pergunta.
Em um mundo perfeito, não seriam essas duas uma mesma coisa?

Em meio a tantas perguntas sem resposta, o que hoje se reposta é o contrário do que penso.
Permaneço então avesso. Não tendo. Sou final sem começo. Sendo como posso. Doando o meu terço, esperando o vosso. Ainda que não venha.
Não tendo nada além do que sou.
Não sendo nada além do que sei.
Existo apenas para mim e para aqueles que entendem onde reside o "valor" das coisas.

Júlio César 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

domingo, 13 de setembro de 2020

bola

Quantos lados tem uma bola? 
O de dentro e o de fora.
Ser redonda ou não, não é lado é razão?

Andando,
Conhecendo,
cada passo dado 
De um lado um herói,
De outro um ditador,

De um lado, quem corrige uma sociedade 
De outro, um filho da puta
Tem lado?

Quantos lados tem uma bola? 
O de dentro e o de fora
Ser redonda ou não, não é lado é razão?

Tolerante até os limites do tolerável
Tolerante até os limites da autodestruição
É lado ou não?
De um lado, os arrogantes são o do outro lado 
De outro lado, os burros são o do outro lado

De um lado, o outro lado é um bando de cultos que não tão nem ai pra sociedade 
De outro lado, o outro lado é um bando de burros que só querem tirar o seu da reta

De um lado, o povo é ele mesmo
De outro, o povo é ele mesmo

Cadê o povo?
O povo tem lado?
Quantos lados tem um povo?
Ser redondo ou não, não é lado é razão?
Um povo dentro de uma bola 
O lado de dentro e o lado de fora

Jayme Mathias 

domingo, 6 de setembro de 2020

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quinta-feira, 3 de setembro de 2020

domingo, 30 de agosto de 2020

Releituras (a)gosto: Manuscrito

 Logo cedo Paulo encontrava-se posto na poltrona trabalhando com sua máquina de escrever o mundo. Ela lhe garantia mobilidade, agilidade, volume. A máquina de escrever. Descrevia o dia, a rua, da janela, com café. Às vezes falava mais do que devia, noutras devia. O fluxo do mundo corria sobre a máquina, na pior das hipóteses a máquina corria sobre o mundo. Afinal, o que seria do mundo sem a máquina? O que seria de Paulo?
 Paulo tinha uma vida simples. Casado, mãe de dois filhos lindos que mais pareciam dois pés de cajú pequenos no quintal de casa. O cuidado com os dois era tamanho que sua unipresença não garantia a segurança das crias na distância. Comprou um aparelho que mostrava em tempo real a exata posição espacial dos meninos. Seus filhos desde bebês conviviam muito bem com as máquinas. Dentro de seus berços existiam aparelhos que captavam seus berros quando não encontravam os seios de sua mãe. Paulo os ouvia de longe, respondia com o peito.
 Sua esposa era ausente. Corria ferozmente pela cidade, mais do que seus passos podiam andar. Ócios do ofício. Toma o carro, que passa à ônibus, que pega trem, que vira a moto, feito máquina. Quando queria notícias de Paulo mandava uma mensagem de voz que viajava pelo espaço até chegar no aparelho receptor de seu marido. Quando queria ver, câmera, quando queria sonhar, pílula. Era um companheiro onírico que retornava durante o sono da madrugada.
 A técnica, intermédio entre a vida de Paulo e o mundo. Percebia os acontecimentos do dia através de seus tentáculos mecânicos. Fazia uso de todos os recursos possíveis há vários anos, mas não esperava que no domingo um mau súbito iria interrompê-los. A máquina de escrever parou. Paulo não via as letras, tela preta. Não ouvia as crianças, a bolinha verde do aparelho apagada. Foi conferir. Estavam plantando bananeiras no quintal. Nesse momento, Paulo percebeu o quanto o mundo ficou pequeno. Cabia na ponta de seus dedos. Então lembrou de algo muito antigo, pueril, que estava guardado no quintal de sua infância. Enquanto ouvia as crianças percebeu seu ouvido. Ele estava lá. Num súbito momento de susto, como se seu corpo fosse arremessado sobre sua pele, deparou-se com carne e ossos. Paulo poderia fazer de seu corpo, máquina. Voltou à sua poltrona, puxou a gaveta, tirou folha e lápis, olho no dia, ouvido na rua, nariz na janela, mão na xícara, língua no café. Como prova de sua mão-máquina decidiu escrever esse texto de próprio punho.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

sábado, 29 de agosto de 2020

domingo, 23 de agosto de 2020

Releituras (a)gosto: Reflexos

 Reflexos de uma poça d'água em meio ao asfalto, dizem muito sobre os dias de hoje.

Entre as brechas do portão, consigo ver na poça refletido, o céu. Cinza, nublado,que não choveu em ninguém.
Aqui e acolá um teimoso passante me lembra da caminhada matinal, exceto pelo uso da máscara, que deixa tudo com uma cara de velho oeste do século XXI.
Apocalipse inesperado oriundo do microscópico. Irônico é que algo invisível aos olhos cause estrago colossal.
A vida mais uma vez mostra ao homem a máxima socrática de que nada sabemos, sobre tamanhos e de quão somos bêbados e equilibristas.
A poesia se ensaia na melancolia, mas se perde nas paredes do exílio particular, falta vivência.
Por isso hoje escrevo sem rima.
Subo ao segundo andar e lá de cima tento lembrar de como era bom ser livre.
Sem cometer nenhum crime volto os olhares à poça, a realidade é como seu reflexo, limitada, turva, distorcida.
Entristeço, filosofo um pouco, mas nada que renda pouco mais de meia página.
Talvez a vantagem de toda essa ataraxia seja o escrever sobre ela quando tudo isso passar.
Vou voltar a ler e esquecer da poça d'água.

Júlio César 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Wikibrasil.org : o samba brasileiro

Por que samba-enredo? Por que samba-canção? O que é samba de roda? Por quem o samba foi criado? Por que o samba tem esse nome? 

Venha conhecer um pouco mais...

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

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domingo, 16 de agosto de 2020

Releituras (a)gosto: O efeito do malfeito...

"É plágio, é plágio!"
Em frente à biblioteca nacional
Mas a língua aqui não é a mesma de Portugal
"É plágio, é plágio!"
A inspiração erra a língua portuguesa
Não obstante preserva a sua beleza
"É plágio, é plágio!"
O poeta que vive de erros brasileiros de Portugal
O poeta que faz poema sem erros é banal
"É plágio, é plágio!"
A língua que se preserva
é a língua que erra naqueles que não fazem reservas
"É plágio, é plágio!"
A contínua variação de coisas que se atestam mal
Diariamente não é plágio ou defeito, é real!

Por Jayme Mathias 

domingo, 9 de agosto de 2020

Releituras (a)gosto : Convergência


      Entrei na sala e vi Roberta sentada no sofá. Aproveitei o tempo curto que tínhamos juntas pra conversar um pouco.
- Olá bom dia.
Comecei.
- O tempo está muito quente hoje.
      Disse. Afastou-se um pouco pro lado do sofá como indicativo de um convite.
- Ah não, desculpa. Não percebi o horário. Acho que já não é mais bom dia.
- Dá pra perceber a chegada do verão. Tá um inferno. É tanto calor que minha cabeça lateja.
- Poxa. Por isso tenho que ficar de olho no relógio. Devia estar de saída para a consulta. O pior de tudo é que lá tem fila de espera. Nós pagamos esses planos de saúde mas no fim das contas essas clínicas são lotadas do mesmo jeito.
- Eu amo o verão sabe, mas esse ano está muito quente. Se ao menos tivesse chuva direto pra amenizar. E ainda tem os bichos de chuva. Lá em casa tenho que deixar as janelas fechadas, ou então ligo a luz de fora e desligo a da sala pra eles não entrarem. De vez em quando você leva um susto com algum bicho pousando no seu corpo.
- Certo dia eu estava com uma febre horrível e fui para a tal clínica. Meu atendimento demorou tanto que o remédio pra febre que eu tomei em casa já tinha acabado com meu sofrimento quando chegou minha vez no consultório. Por um momento o médico chegou a acreditar que eu só queria o atestado pra faltar o trabalho.
     Respondi a pergunta enquanto tirava o cigarro do bolso.
- Num é. Eu lá sei por onde esses bichos passaram antes de pousarem em mim. Aqui tem muito bicho de chuva à noite?
- Muita cara de pau daquele médico viu! Era feriado, pra quê eu iria querer um atestado? DOUTOR ADALBERTO. Não piso mais lá. Aquele velho ta merecendo é se aposentar.
      Percebi a cara de nojo de Roberta com o meu comentário enquanto tocava no seu corpo, como se uma coisa estrangeira encostasse nela.
- Sim, mas como você está?
- Sim, mas como você está?
      Rimos muito alto como nos velhos tempos de criança. “Que coincidência” pensamos.
- Bem, agora eu prefiro ir na clínica lá do outro lado da cidade mesmo.
- Aqui é tudo tão limpinho, não tem lagoa perto. Acho que não deve ter tanto bicho de chuva por aqui né.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 2 de agosto de 2020

Releituras (a)gosto: Anagrama adaptado

Permaneço fatalista!

Sendo assim, não tente me dizer e mostrar que

Aquilo vejo é a metade cheia do copo e há terra a vista

Porque no final do dia

Não há luz no fim do túnel, não há saída

E não é ilusão achar que tudo dá certo no final, que a vida não é uma ferida que

"A esperança é a última que morre!"

no final, lembrarei o quão fatalista eu sou, o quanto o sangue escorre

E nada do que me digam vai me fazer crer que

existe um lado bom em tudo

Não importam quais os meios,

O fim não é suficientemente bom para ser celebrado, que ele é mudo, defronte das soluções e problemas alheios

Porque diante dos fatos não há argumentos que me façam crer que

Se não tá tudo bem é porque não chegou no fim, você vê

Porque cada vez que olho o quadro geral penso

Será que sou tão pessimista assim ?

(Agora, leia de baixo para cima)

Ps:
O que define o significado das pinturas é a maneira a qual olhamos para elas.

(Texto adaptado de Abdullah Shoaib)

Por Júlio César 

domingo, 26 de julho de 2020

De um trecho de A vila dos suicidas - Romance inédito


Mas ele (Isaque) resolvera viver sua aventura e não via ainda um prazo final se aproximando. Tomar aquela existência alternativa tinha sido um processo delicado. No começo, os velhos quase que enlouqueciam. Abandonar a faculdade de Arte visuais – coisa que eles já exprimiam certa dúvida como curso – parecia corroborar firmemente sua vocação para vagabundo. O irmão mais velho, orgulho de qualquer pai e mãe conservadores, entusiastas de padrões, dissera: “Eu entendo o cara pirar um tempo, mas essa de virar mendigo! Porra! Pensei que sua loucura máxima ia ficar só nesse curso sem futuro que você escolheu!” Isaque não deixou se abater. Foi em frente. Decidira viver grandes aventuras, ver o mundo e experimentar uma rotina diferente da grandíssima maioria dos cidadãos. Não bastava se aproximar de uma arte delimitada de um curso universitário. (...) Não tinha cobiça por dinheiro, mas por experiências e uma grande obra. Ia viver intensamente, prometeu a si mesmo. Transformar tudo em arte! Escrever um livro foda como o tinha feito Jack Kerouac, embora, diferente do escritor americano, apenas tivesse só tomado notas no aparelho celular ao invés de estar tentando preencher rolos e rolos de folhas escritas em máquina de escrever. Pretendia também tirar muitas fotos incríveis e fazer filmagens, no entanto, logo nos primeiros dias percebeu que não era viável andar com uma máquina fotográfica profissional. Ele se desfez do equipamento numa loja de penhores e mais uma vez se voltou para o smartphone como fonte de registro das viagens. Aos poucos o hábito de tirar fotos e fazer filmagens foi se reduzindo. Parecia que aquele novo tipo de vida se contentava só com os momentos e memórias (...) Tudo se resumia ao agora, deixava no máximo umas sobras para a memória. Como iria um dia fazer uma grande exposição de fotografia, desenhos ou pinturas sobre seus caminhos? E o livro? (...)
Sentou-se diante de sua barraca e começou a misturar a aguardente com o refrigerante, tomando longos goles e fumando. Uma prática bem comum no meio da malucada que deseja se embriagar e não dispõe de muito recurso no momento. Não demorou para que ficasse alterado e repleto de pensamentos negativos. Começou a se questionar sobre a vida que tomara. Quem sabe depois de alguns anos não se arrependeria de sua vida nômade? Antes de tudo, costumava romantizar as coisas, imaginando as interações incríveis que faria nos caminhos, do que faria em termos de registro. (...) Mas acabou não fazendo nada, deixando sempre para o outro dia e os anos já tinham se sucedido. Verdade que tivera experiências incríveis, conhecera modos de vida interessantíssimos, vira coisas maravilhosas e encontrado figuras na estrada que mais pareciam ter saído de um romance de Gabriel Garcia Márquez ou um filme hollywoodiano. Alegrias vagas e irresponsáveis, lugares lindos, discriminação, privações e um saldo neutro. Nada mal, porém, nada insuperável como uma vida dentro de On the road de Kerouac. Talvez ele fosse pretensioso demais. De fato, sempre se achava melhor que os outros malucos a sua volta. Suas pulseiras eram mais bonitas, ele sabia empreender, era educado, sofisticado, sabia tratar com todo tipo de gente, sem preconceitos e tranquilo. Provavelmente as coisas não eram como ele achava. Ilusão?

J.R.

domingo, 19 de julho de 2020

Julho do leitor: Aquela tal de felicidade



Um « sentimento » curioso, intrigante 
Uma mistura de sentimentos
Algo utópico, até platônico

O que é ser feliz? Quando se sabe que está feliz?
Você sabe que foi feliz quando infeliz estiver
Estado de êxtase, orgasmo, ápice de muitas sensações, intenso

E, como no sexo, o orgasmo é um sensação única, mas a experiência até atingir esse clímax é tão bom quanto. 
O toque, olhares trocados, beijos, carinhos, palavras marcam tanto quanto o momento de « máximo prazer »
Buscamos sempre o estado máximo de êxtase, de deleite, mas esquecemos que somos nós mesmos que construímos o caminho da excitação até ele e que as sensações ao longo desse caminho são tão incríveis quanto gozar

Felicidade é o caminho, não o destino
Cliché, mas necessário.

Bárbara Postal 


domingo, 12 de julho de 2020

Julho do Leitor: A Loteria que se deu e nunca ganhei

Da união do sertão com a cidade bela, venci a primeira empreitada naquela noite singela, ganhei na loteria.
No berço do mais refinado lar do proletariado cearense, fui alimentado com leite e mamadeira quente[...].
Nas andanças aos hospitais, frente as enfermidades da infância, quase sempre recebi pão e esperança[...].
Da mesma natureza enferma, ainda sem saber como, sobrevivi as mazelas, aparentemente, sem sequelas[...].
Na pobreza, cuja situação em que me encontrara (?) era de cárcere, quando não achava quase nada, achara força e coragem[...].
No período dos furacões, fui abrigo e calmaria, ao invés de ventania, ganhei na loteria.
Na vida, aprendi mais do que apanhei e usei tudo que tinha e sabia, com certeza, ganhei na loteria.
Um dia percebi algo que nunca via, definitivamente, tudo mudaria[...].
Achei grandes companheiros no ceio da literatura, de igualmente brilhantismo, doçura e amargura[...].
Ouvindo os espasmos do jovem Kafka, sentei esperando o que a mim era merecido, chegou como um gatilho[...].
Ao som do belo e sórdido poeta maldito, meditei com maestria, ganhei na loteria.
Um dia achei um lar que só existia nas estórias de minha Tia, entrei e gozei como eu previa, felicidade metódica, quem saberia (?)[...].
Nesse período um amigo com tamanho gáudio me falou sobre filosofia, haha[...].
Também, num lindo dia, ouvi falar sobre Agroecologia, que maravilha[...].
Conheci muitos amigos que me afortunariam[...].
A simplicidade e nostalgia havia tomado conta de todo o meu dia, eu sorria, ganhei na loteria.
Um grande ciclo ao qual eu lutava e almejava se fechava, como eu sabia [temia], mas Eu queria[...].
Permaneço na labuta, do jeito que eu merecia[...].
Mas cansado de tanta falta de costura e do materialismo da amargura, por vezes, perco à compostura.
Ouvi dizer que quem não Tem, ninguém atura, às vezes é até posto na rua, é isso a que chamam de vida crua?
Não nasci filho de Banqueiro, nunca herdei mais do que suei com muito esmero, por vezes com tamanho receio.
Mas todo mundo sabe que existe uma fórmula mágica da paz, aquela que mesmo quando a gente dá de ombros ela vem e cai, e faz a felicidade do jovem, do velho e do louco apostador.
"Aeeee, na loteria, puta que pariu, ele ganhou".
Porém, da sorte nunca fui agraciado, aquele belo dinheiro pra suprir todas as contas do mercado, fica só no sonho, igual andar motorizado, ahh pobre coitado... ainda apegado ao espetáculo, igual gado.
Olhei pro Céu enquanto escrevia, quanto infortúnio, nunca ganhei na loteria.

Luiz Tiago Soares






domingo, 5 de julho de 2020

Julho do leitor: Aquilo foram gritos ou gemidos?






Para quem são os ais, camaradas?
Para quem a marginalização e os infortúnios?
Ah, intolerável sujeito da ação maligna, que tanto bate até que fura! Se fura, é porque também mata. E matou.
E essa desproporcional força policial? Jamais razoável.
Por isso eu ouço, tu ouves, vós ouvis e nós ouvimos...
Os ais de fulano, os ais de sicrano e os ais de beltrano, são todos ais negros... Há pouco mataram mais um irmão nesse globo terrestre, Navio Negreiro... Ouçam, por favor! Um instante de silêncio para refletir! Foi-se mais um. Outro abatido, mais um negro morto nessa guerra que segrega e perdura. Dessa vez, foram os ais de George Floyd... Mas e amanhã? Últimos suspiros!... Golpe fatal em outro preto.




Parece interminável essa bruteza, estrutura normalizada entre sociáveis pessoas de bem, respeitáveis cidadãos, justos homens que ferem e matam. Difícil, depois disso tudo, cicatrizar tal ferida e restabelecer a paz de espírito... Daí, tudo o que sobra é ressentimento, marcas profundas da injustiça sofrida... Ferida aberta que gera mais violência, morte e sofrimento. Um punhado de desumanidade e desrespeito pode pôr tudo a perder. Todavia, o que se perdeu, novamente, foi mais uma vida negra.
Ah, amargo preconceito!
Ah, odiosa discriminação!





Tragada foi a vida pelo preconceito e pelo racismo. Onde está ó paz? E tu ó amor? Não há paz! Tão pouco amor! Prevalece o ódio em insultos e violências:
“o quadro negro”, “a ovelha negra da família”, “tinha que ser preto mesmo”. E tome gritos, olhares atravessados, risinhos com ar de superioridade, pauladas, pontapés, e tiros, muitos tiros... Alguns perdidos. Isso, perdidos! 
Arde-se em ódio aberto e em ódio disfarçado, no pensar, falar e agir.
O racismo, ah...! Esse é alvo como a neve. Velada linguagem, de total e sutil violência racial ao longo dos séculos.




E cada vez mais empolado em sua roupagem sofisticada e institucionalizada, resguardada por uma minoria que pensa ser dona do mundo, ela é destituída de solidariedade, compaixão e, principalmente, respeito para com o outro.

– Ei, cala a boca, deixa de “mimimi”!
– Parece “mimimi”, meu amigo?
E ginga, e gesticula e enfrenta com o intelecto e a força física que tem.
– É “mimimi”, porra!
E pow! Pow! Pow! Carteirada sobrou.
– Quão poderoso parece ser! E quão importante se acha.
– Ah, é?
Dizia o moço em tom de deboche, mas sem saber ao certo como contra-argumentar. Assim, nada se resolve... O momento fica tenso e confuso... E pow! Pow! Pow! Acabou.
E enfim, ceifada vai sendo as ovelhas negras apenas por serem o que são
Apesar disso tudo, resistem, pois são, e sempre serão, o que quiserem ser.



Valterlan Tomaz Correia

segunda-feira, 29 de junho de 2020

extremo

Quantas vezes separados?
Eu provocarei o encontro comigo.
Treinar dia após dia uma nova percepção disso.
Uma passividade levada ao extremo.
Só alguns escritores valem realmente a pena nesse sentido.
Solidamente possível.
Embriagar-me pelo frescor da manhã, do vento, do pólen e dos pássaros.
Desviar de maus afetos como de balas. Campo de concentração de forças contrárias.

O tom e a luta de Artaud para o ritmo, eficaz e libertador.
Forças espermáticas.
Tudo faz sentido.
Ouço Aratud falar mais que escrever.
E com o ouvido se grava muito mais coisa que com os olhos.

-Bom dia.
-Bom dia. Tudo bem?
-Tudo bem. Moram aqui há quanto tempo? Vocês trabalham longe?

Conversas para quebrar o gelo.
Eu só sei lembrar.
O que tenho feito de mim?
Boa pergunta. Eu quero uma iantividade extrema.

Das inúmeras coisas que começo após o amanhecer tardio, dificilmente me foco em uma. Facilmente começo, mas nada termino.

"Riam como quiserem" grita Artaud, 
e isso é mais real que qualquer coisa.
Perdemos para a intrasigência.
E tudo tem que ser bem justificado para 
não cair nas amarras das confabulações e extremidades
da opinião toscamente elaborada.

Toscamente fardada nos moldes da classe influenciada pelas redes sociais.
Sempre, sempre estão a espreita de haver um combate interno. Uma merda!

Jayme Mathias 

sábado, 27 de junho de 2020

Julho do leitor

Como todo ano, estamos fazendo a chamada de textos dos leitores do nosso blog Vivissecção.
A ideia é que no mês de julho, aos domingos, postaremos textos dos nossos leitores.


Como alguns leitores se interessaram pela nossa escrita, pelo conteúdo do blog e querem também espaço para suas ideias e sentimentos, a gente decidiu abrir esse espaço de produção de pensamentos dos leitores. 

Uma​ forma de interagir com novas ideias e questionamentos.

O conteúdo dos textos são experiências singulares, poéticas e filosóficas, são vivências de recortes de intensidade que nos trazem de volta à vida, que nos fazem sentir de outra forma e também questionamentos viscerais.

Caso você queira postar seu texto, envie para : jaymemathias@gmail.com ou, na aba direita do nosso blog, está, a partir de hoje, disponível a opção de nos enviar uma mensagem com seu texto. 

Envie:

 seu texto com seu nome (nome do pseudônimo caso queira), 
 e-mail para contato
 e suas redes sociais (Instagram, Facebook etc.)

Enviar textos até 10 de julho 

Jayme Mathias
Júlio César Dantas
Paulo Victor de Albuquerque

domingo, 21 de junho de 2020

Lete

Você sabe quando está sonhando? Já teve um sonho tão longo que se perdia na duração de seus acontecimentos? Você nunca sabe quando começa, às vezes desperta no fim, noutras é consumido pela dúvida se realmente tudo não foi uma fantasia, se aquela lembrança era real. Conversando com os meninos do blog perguntei o que eles achavam do mundo onírico, quais suas impressões. O Júlio me falou sobre a relação do sonho com o inconsciente, como sua força se manifesta logo quando vamos dormir ou quando estamos perto de acordar. Falava ainda sobre as várias emoções intensas que temos quando sonhamos, o quanto criamos histórias fantasiosas e absurdas. Completou dizendo como ficamos vulneráveis ao julgamento crítico, aceitando o desenrolar dos episódios que se acumulam sem nenhum juízo analítico. O Jayme exemplificou as várias sensações bizarras que vivenciou no seu mundo onírico. Recordou como é difícil relembrar os detalhes dos seus delírios mentais. Apontou o fenômeno do sonho como materialização dos desejos inconscientes, toda obscuridade da libido humana elevada à superfície, o que fazia das fantasias uma transcrição sensível dos desejos, não uma tradução linguística através de imagens representativas.

    Terminei de ouvir os áudios. O celular estava com 20%. “Tenho que passar menos tempo no whatsapp”. Olhei pro lado. A Suely estava lá. Não percebi. Tive que fazer as compras. A barriga inquieta de fome. Tentei adivinhar o horário pelo ponteiro do sol. Confirmei no celular que estava errado uns trinta e poucos minutos. Peguei a chave do carro no quarto. A máscara no armário. Carteira no birô. Beijei-a na sala. Maçaneta. Carro. Volante. Portão. Depois de cinco esquinas desci no mercantil. O carro refletido na vidraçaria. Portal de imagens entre o interior e exterior do firmamento. Mistura de mundos.

A cabeça de uma cachorra na janela do carro.

Álcool nas mãos. Os olhos falam. O  que dirá o resto do corpo?

Uma criança corre entre as lacunas.

As pessoas mantêm distância. Espaço permutado. Dois corpos não ocupam o mesmo lugar.

Bolas de encher flutuando.

A cada prateleira o vir a ser da mesma sensação, “acho que já comprei isso, devia ter anotado”. No caixa, sacolas e débito. “Acho que já estive aqui”.

Cabeça da gata na janela.

Olhei pro lado. A Suely estava lá. Bilhete na mão. “Não esquece a lista das compras”.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 14 de junho de 2020

Monocromático


Mesmo o uníssono tem vários sons.
Daquela própria briga pela compreensão do "Uno", ou da "Díade" eterna, se especula que surgiu o outro, como aquilo ao qual se contrapõe, como uma necessidade, um complemento, ou um nêmesis.
Cristalizou-se na sociedade a individualidade, subjetividade em que tudo é relativo, tudo "visto de um ponto".
Motivo para o qual aquilo que não era EU de repente passasse a ser avesso a mim, ou ainda, tudo aquilo que almejo ser.
Desejo e aversão, sim e não. Aquilo a que digo sim é bom pra mim, aquilo que nego, ruim. Rotulamos assim, conceituando, em pequenas latas de visão limitada, tudo que nos é alheio. E classificamos de quais delas queremos proximidade, ou distância.
Bem, tenho a ligeira impressão de que a existência não obedece à ordem de nossa estante de latinhas. Talvez seja mais como um oceano cheio delas. Estamos a sua mercê. Encontraremos incontrolavelmente com elas, sejamos a elas abertos, ou avessos. Encontros.
Buscamos ser especiais e únicos, mas mesmo o uníssono tem vários sons, como entre preto e branco existem vários tons. Temos cada um também vários dons.
Buscamos independência, enquanto atestamos a constatação da falta que sentimos, ao mesmo tempo em que bradamos aos quatro cantos o quão nada nos faz falta. Autossuficiência é um conceito orgânico, mecânico, não social. Ninguém vive só. Ninguém vive em repouso. Viver é movimento.
Fato é que, talvez haja verdade no pêndulo de Schopenhauer, que resume a vida como constante oscilação entre angústia e tédio. Que a vida seja doença e remédio vá lá, mas só isso? Ela é muito mais. Doença e remédio, ambos munidos de amargor, antes da doença, no entanto, havia doçura da saúde e depois do remédio, a cura. A vida não é repouso. Nem quando estamos parados. É movimento entre sim e não, alívio e aflição. É muito mais que optar pela sede, ou pelo bucho cheio d'água. É também o primeiro gole, garganta seca sendo molhada pela água gelada.
A questão poética que afligia William talvez não fosse "ser ou não ser", mas tudo aquilo que está entre eles.
Nem mesmo o monocrático contém  uma só cor.
Tendo então esboçado essa tentativa filosófica parca, fico por aqui entre o silêncio e a tagarelice, na justa medida Aristotélica.
Talvez viver entre os extremos não seja ser medíocre, mas prudente.

Júlio César 

domingo, 7 de junho de 2020

toupeira

Meu belo trabalho de toupeira é cavar e armazenar minhocas e nozes presas nas minhas armadilhas diárias. Escavei ontem um texto, fiz-me de traça. Escavei tão profundo o mundo que vivo que vi deus. Tão pouco e tão raro são os orifícios de onde ele respira através de mim e sei da raridade e rarefeito que sou nesse ápice momento de ferocidade. E penso de forma como se faltasse oxigenar uma parte do cerebelo, caricata e ímpar. Não sou sapiens, sou toupeira viva da vida. Quando sinto o cheiro de verde capturo a alegria do dia, choveu. Eu anunciava a saída diferente para a superfície. Com a chuva as minhocas escorregadiças caeam na minha armadilha. Subterrâneas frágeis, dilaceradas, confusas. Não. Mamífero domínio do meu mundo. Mamífero feroz faz-tudo. Não há um elemento que não saibamos liquidar e gerenciar para nossa vida. A forma mamífera humanóide se repete em outras instâncias de inteligência viva. Só o fato de mamar é o ímpar domínio da vida. O calor do corpo de nossos pais. Penetrando na vida o calor diário dos ambientes dominatórios. Deparei-me que era mamífero pelo cheiro da verdade. A verdade é o verde transformado em verdidade. Para nós são as tetas do sulco quente. Dos poros de nossas fibras musculares, das contrações e das manias de esfregar-se. Bicho desejante de esquentar-se. A gente sua e sente o suor cheirado de nosso grupo vivo. No sexo contagiante da palma de mão ardente da espécie. As hienas riem lá de cima. As baleias bocejam migrando nos diversos oceanos. E eu sou uma toupeira fria. Pobre de quem é minhoca. Raiz viva é a minhoca. Eu sou terra. Mais terra porque o fluxo oxigenável da vida sou eu que transporta. E a minhoca morre para que eu dê à raiz mais vida e atenção. Mas a hienas vociferam que a vida na terra é melhor que debaixo. Minhoca é o fluxo cego, só anda em bando mas tristes e solitárias. Os morcegos, que conhecem o noturno pelos ares bailantes, vociferam que o modo de vida verdadeiro é o das aves. E eu só quero ser toupeira. Desconfio de quem ri e acha tudo maravilhoso, como desconfio de hienas. Também desconfio dos altares. Desconfio da superfície da vida e a hiena é o símbolo da superfície. Atraio para a profundidade o cheiro verde que eu mesmo quero. Na conexão íntima dos mares, o verde da superfície que as baleias vibram. Sinto e apalpo a profundidade da terra ao mar. Eu sou a essência penetrante na aparência. Quem fez a palma da minha mão fez a dos humanóides. Até o tatu tentou ter da terra domínio de hiena. Eu disse que não valia a pena. Mas o tatu é de terra outra e tenta ser eu com meu delírio de verde raiz 
que protejo de minhocas carnívoras, prezas. Tatu num cava, se contenta com cupins e formigas. Ele é o rei da superfície e eu da magia profunda. Protejo a esperança do momento futuro. No banquete embriagado de lucidez em que ouso ir à superfície, às manadas e bichos em bandos, humanos e pisadas vibrantes ficam em meu tato.

Jayme Mathias Netto 

domingo, 31 de maio de 2020

O canto dos pássaros


    Com sua mãe enferma no quarto, Miúda habitava a maior parte sua no quintal. Voava feito passarinho e pousava em frente à imensa gaiola para assistir o cárcere das aves. Os cantos lhe atraíam. Eram vários, cada cantoria com sua cor e tamanho. O menor deles era o de Miúda. Cantava cedo da manhã. Cantava a história de cada ave como poeta canta à vida. Só voltava à casa para comer sua ração, posta por seu Pai triste. Sua gaiola era um quintal feérico de ilusões.

    Há meses Miúda não saía da morada familiar, as paredes do agora ruíam e sua mãe não poderia habitá-las por muito tempo, por isso, como Maria Fumaça, viajou até o fim da estação dos pássaros. Desembarcou na terra seca. Sentada, ela espera o voo do passarinho amarelo, “mais lindo que os cactos do Papai”. Achava que o canto mais belo vinha do assobio, não da palavra que saía da radiola no centro da sala. Na ambição de voar com o bicho amarelo, Miúda entoava seu canto num convite harmonioso que se confundia com o pranto do passarinho.

    No amanhã chegado, o Pai de Miúda lhe chama ao quarto. Pede para que sua filha se despeça de sua mãe, pois ela tem uma viagem que deve fazer sozinha. Miúda solta o canto mais doce que sua mãe até então ouvira de um passarinho. A genitora aceita o convite e parte.

    Miúda voa desesperadamente. Pousa no quintal. Abre a gaiola. Pega o passarinho amarelo de cima do galho. Os outros pássaros, assustados, se recolhem no canto da jaula. Do lado de fora com o bicho na mão, Miúda sobe a árvore mais alta e dá liberdade ao amarelinho. Desnorteado ele voa sem rumo e pousa na telha da casa de sua, até então, companheira de elevação. Do telhado o horizonte lhe apresenta a morte, que com uma abocanhada de seu predador arranca-lhe o suspiro.

    Como criança, ao chão, Miúda chorava sua perda, e tinha, pela primeira vez, a consciência do morrer. Só restaram os cantos dos pássaros de um quintal com terra e tijolos. Na mente, um novo desejo, com a esperança de não sentir dor, “eu queria ser um passarinho”.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 24 de maio de 2020

Reflexos

Reflexos de uma poça d'água em meio ao asfalto, dizem muito sobre os dias de hoje.
Entre as brechas do portão, consigo ver na poça refletido, o céu. Cinza, nublado,que não choveu em ninguém.
Aqui e acolá um teimoso passante me lembra da caminhada matinal, exceto pelo uso da máscara, que deixa tudo com uma cara de velho oeste do século XXI.
Apocalipse inesperado oriundo do microscópico. Irônico é que algo invisível aos olhos cause estrago colossal.
A vida mais uma vez mostra ao homem a máxima socrática de que nada sabemos, sobre tamanhos e de quão somos bêbados e equilibristas.
A poesia se ensaia na melancolia, mas se perde nas paredes do exílio particular, falta vivência.
Por isso hoje escrevo sem rima.
Subo ao segundo andar e lá de cima tento lembrar de como era bom ser livre.
Sem cometer nenhum crime volto os olhares à poça, a realidade é como seu reflexo, limitada, turva, distorcida.
Entristeço, filosofo um pouco, mas nada que renda pouco mais de meia página.
Talvez a vantagem de toda essa ataraxia seja o escrever sobre ela quando tudo isso passar.
Vou voltar a ler e esquecer da poça d'água.

Júlio César 

domingo, 17 de maio de 2020

ler

Ler é um ato de poder, como diz Alberto Manguel em um vídeo no YouTube.
Eu mesmo percebi que a leitura é um muro de defesa contra aquilo que te colocam 24 horas por dia: ser belo, bem sucedido, encorajado, às mulheres exigem a moda, foram mulheres para serem envergonhadas ou putas dominadas. Ler é um combate, serve para cultivar nossa própria maneira de imaginar e de cultivar nossas crenças e imaginações, para preservar nossos desejos e não na enganação vivenciada cotidianamente. Apenas 5 minutos do dia, uma dose diária para você mesmo e contra a obediência servil, leia.Dentre os inúmeros benefícios já divulgados como ler evita o stress, ler aumenta a empatia, ler aprimora o vocabulário, digo que na leitura você cria uma voz, uma imagem, utiliza os sentidos, os raciocínios, as ideias e a complexidade dos sentimentos, você passa a gerir um novo sistema simbólico e passa a gerenciar seus desejos. Seja um leitor... Essa parece ser a minha conexão com a terra, o aterramento que entro em contato direto com vibrações interplanetárias: fazer não apenas as pessoas lerem, mas emprestar olhares. Talvez seja isso o que falte hoje, a empatia, estamos impacientes demais para ler. Estamos estressados demais para escutar o outro, para adentar na complexidade de seus problemas ou sequer para saber se aquilo é de fato identificável com aquilo que sinto ou em que medida
isso ocorre. As imagens estão prontas e acabadas, depositadas em nosso cérebro, construindo um eu cheios de desejos irreais. Somos incapazes de fornecer nós mesmos nessas imagens,
mas achamos, ludibriados, que quando dizemos que queremos algo, somos donos do nosso desejo. Ser leitor é um ato de liberdade e de coragem. É a capacidade mesma de não ser esse eu projetado exteriormente e incutido interiormente. Isso pelo menos ocorre por alguns instantes na leitura. E, ao mesmo tempo, é possível recriar a forma como você se constrói. Numa sociedade imagética como a nossa, 
a leitura é uma grande parceira da conquista de si mesmo. Daí porque entro nessa conexão firme, forte e constante com a terra. E a leitura não necessaraimente está ligada à ideia de ler palavras, podemos ler também as imagens, essa é uma força de quase criação conjunta entre leitor e escritor, de uma nova maneira de ser e estar no mundo novo. Um olhar próprio e autêntico sem ser rejeitado pela força externa que nós internalizamos sem saber. Podemos ler o mundo ou a natureza, lembrando a ideia spinozana. Podemos inclusive interpretar, ora porque não, gozar 
de uma liberdade ímpar que já está em nós vindoura. É isso a leitura, mas não de qualquer jeito, estamos falando de construir. Chega de ódio, está na hora de começarmos a unir as diferenças, caminhar para a própria diferença de cada qual, sem medo e com amor. Você tá lendo isso? Bem vindo à uma nova força no ar. Um grande abraço, de um eu leitor, porque ler talvez seja a nova forma de darmos as mãos e nos abraçarmos. Força!

Jayme Mathias Netto 

domingo, 10 de maio de 2020

Oráculo

ó seres mortais blasfemadores de metrópole
dirijo-me a vós, sob a tutela daquele que governa
trago na boca a serpente que proclama a sorte do futuro
não me venham com súplicas e agonias contrárias ao que vos digo
o destino é um fardo que arrasta consigo tudo aquilo que vive
que grandes desgraças estão reservadas à nosso povo
ó deusas e deuses imaculados, porque me sobrecarregam com tamanho apuro
a vós, cidadãos, proclamo tua sina, desvelando as amarguras do meu próprio destino
a união trará a morte de nosso povo
a natureza se reerguerá com seu majestoso ábaco subjugando a cidade
dela tudo provém, nela tudo findará
súplicas serão feitas com sacrifícios entre genitores
covas serão abertas a espera dos imolados
o último suspiro será da morte, extraindo almas de seus corpos por entre suas narinas
mas vós, idólatras, venerarão o falso deus, que
por crer na humanidade, trará à tona o porvir na anunciação divina
que abençoará o solo com seu mais singelo e acolhedor sepulcro.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 3 de maio de 2020

Poema de quarentena




Pensamento preso entre quatro paredes. Se me imagino fora, quero correr, não posso.
Desligo as redes, me inundam o ser daquilo que não quero.

Na escrivaninha,
caneta e papel disputam espaço lado a lado com dipirona e álcool gel. 

Deito na rede, mudo de cômodo. Sem ver o céu.
Mato a sede da sensação de voar. Me balanço com força.

Busco a todo custo a fuga do incômodo, cerro os olhos, me transponho, em campo aberto, sonho o concretizar do incerto.
Procuro sentir o longe perto, quem sabe curo a angustia de estar, sem poder. É tudo muito brusco...

Me espremo em um canto que não dos pássaros, mas onde não ouça os passos dos impacientes de casa.

Ao supremo peço em oração que sejamos antes impacientes, que pacientes a procura de um leito que não existe.

Na bolsa, o dólar sobe, o petróleo despenca.
Circuit Breaker no pregão
me pergunto quanto estará a cotação do aperto de mãos?

Leve moleza, desconfio! Segue o fio! Sinto frio nas horas mais quentes do dia. Será? Deve ser só ansiedade. Tremo, temo o arrastar das horas.

Desenham-se senhoras que seguem em marcha lenta no meio da calçada, travando sua luta com a idade.
"Como se fosse possível matar o tempo sem ferir a eternidade."

Convivência forçada. Não há segredo.
Até respirar, dá medo.
Pandemia convertida em pandemônio.
Pantomima travestida em feromônio.
De feras "civilizadas" acuadas pelo invisível.

Me policio como nunca. Dúvida invade.
Sinto cheiro? De quê? Suspeito. 
O peito dói. Corona? Não.
Saudade!

Saudade de fora, da mesa de bar, de cheiros, lugares, amigos, e ares, causos, andares, tolhidos e mesmo daquele perigo só de estar no aberto. 

Só vejo Máscaras, queria mais caras.

Do Covid só espero sair com vida, o isolamento do lamento. 
Me permitir um estardalhaço.
Presenciar o ressignificar do abraço e do arrochamento dos laços se engodando em nós cegos que tempo ou doença alguma, são capazes de desatar.

E esperar, na fé, na ciência, na data limite de Chico Xavier, na consciência, na divina providência, no que for...

Que o Covid, convide todos a perceber que, apesar de parecer, uma letra a mais ou a menos, faz toda a diferença na distância de um abismo que separa livre de live.

Júlio César 

domingo, 26 de abril de 2020

O que é isso: a filosofia?

Sempre que estou a mercê do tempo e penso em nutri meu dia com bons 
pensamentos, afinal é burrice só pensar nas coisas ruins da vida, eu penso em um dia na UECE. 
Eu tomo de volta aquele ar de novas descobertas diárias, aquele cheiro do pé de manga que parece de suvaqueira, aqueles locais caindo aos pedaços que parecem ruínas da Grécia antiga, alimento minha mente com essa 
dádiva e me espanto como eu me sinto bem após isso. Essas imagens só me fazem bem!
Um dia no pátio da UECE em meados de 2007 ou 2008 sei lá, ou até 2009, 2010 
pela manhã, principalmente, era comum filosofarmos sobre tudo e falarmos de todo pensamento ocidental numa só mesa, achando que poderíamos resolver muita coisa. Aquele clima de manhã, quando a mente ainda está um pouco desconexa da realidade, era especial. 
Bastava algum professor faltar para a gente filosofar. Se tivesse aula era melhor ainda, a aula e os professores eram os combustíveis de nossas ideias. Talvez a gente resolvesse mesmo vários 
problemas filosóficos nas conversas, depende da narrativa. Mas quem via a gente perambulando ali ou sentados, chegava para debater mais e mais e a conversa não tinha fim. 
Mas filosofar, todos ali filosofavam com certeza. Quem viveu nesse período por ali, via que o pátio, a sala, o auditório, a cantina, o bar, a quadra, a fila da xerox ou o refeitório esbanjava filosofadas:
- Ei doido, tenho lido Terence Mckena.
- Quem mah?
- Terence
- Terence o que, tá chapado é? 
- Mckena
- Ah, sim. Sei quem é não.
- Aquele doido que disse que há uma hipótese plausível do símio chapado. É algo entre o elo perdido da evolução dos primatas.
- Sim, sim, da Califórnia né? Tou ligado, é irado. Eu vi que até os golfinhos se 
chapam com baiacu, né? Os elefantes também lá na África, comendo aquela frutinha... Isso quebra altos preconceitos de que a natureza é pura necessidade. Ela é liberdade.
- É mesmo viu. Aí mah ele diz que tinham primatas que se chapavam em vez de só 
fazer a necessidade da natureza, justamente isso. Esses primatas se chapavam e foram responsáveis para outro desdobramento da inteligência que não só a inteligência cotidiana.
- Ah mah, então foi tipo o começo do “espírito”. Da noção que a gente tem de 
alma etc.?
- Não mah, o Nietzsche no Humano Demasiado Humano dizia que era o sonho né? Você sonhar com um morto, fazia na mente mais remota da humanidade pensar que havia outro mundo. Mas olha a perspectiva do cara, olha aí doido.
- Vixe aí lá vai Platão, Aristótles e a galera toda pensar em dois mundos possíveis. Caralho, o que é a metafísica doido? É bonito oh.
- Tu é doido, demais!
- Mah metafísica é a poesia mais bela que existe, porque há um gozo em compreender e sentir. Mah, é a poesia mais bela que pode existir. Mas vê o que vou te dizer.
- É oh, a metafísica é massa, mas, sim, o que tem o Terrence Mckenna? 
- Ele fala sobre a linguagem. Que a linguagem determina a narrativa do mundo. 
Na verdade, ele pega uma autora que esqueci o nome. Mas ele pega esse argumento e diz que a narrativa que a gente acessa sobre o mundo, que é rodeada pela linguagem, importa mais 
que o próprio mundo. A nossa narrativa foi acostumada ao raciocínio mecânico, e colocou de lado os xamãs, as tribos e vários povos que tinham como narrativa um mundo além desse, mas não como a gente tá acostumado. Era um mundo que é acessado pelo êxtase. Outra metafísica 
vamos dizer assim. Vários povos e tribos tiveram seus meios de êxtase: abstinência sexual, plantas alucinógenas, respiração, rituais com tambores. 
- Entendi, caralho mah faz sentido demais.
- Mas, aí, mah, olha aí, ele diz que quando experimentou a ahyuasca ele foi com 
essa narrativa ocidental civilizatória e científica, masculina e o escambal, tomou, acessou o êxtase e viu o feminino, caralho, e viu toda essa desconstrução que para ele foi mais real que essa narrativa racional. Ele viu guerra de conexões energéticas que achava que a ciência explicaria, mas era mais real, via espadas de deuses e xamãs como energias etc. Não era uma questão de raciocionar sobre isso, mas de sentir. E aí esse êxtase pode ser acessado pela arte 
também.
- Vixe, aí o Baudelaire entra com tudo aí né. O cara é um Padre praticamente. Baudelaire força a barra e quer que esses êxtases sejam acessados pelas vias sóbrias, ocidentais. Vai se fuder Baudelaire.
- É, vai se fuder Baudelaire.
- Oh comédia viu. Ai, ai!
- Num é mah... Oh comédia. Sim, oh, eu tava pensando aqui sobre essa coisa da 
narrativa. Quando a gente fala “Se eu tivesse...”, por exemplo, é como se tivesse usando uma 
ilusão gramatical com a qual medimos as condições de agora e a deslocamos para outro tempo que nunca existiu ou existiria diferente do que agora é. De qualquer forma nunca sob as mesmas condições com as quais pronunciamos aquelas frases.
- É mah, a nossa narrativa pessoal determinaria então quem somos também.
- É. Caralho. Isso faz sentido demais.
- Faz viu.
- Faz.
- Eu vou escrever um texto.
- Eu também queria escrever mais, muitas ideias mah, mas não me enquadro 
nessa coisa de artigo, produção.
- Nem eu oh, eu queria algo livre.
- Bora fazer uma revista doido, um fanzine.
- Bora doido.
- Bora.

Jayme Mathias 

domingo, 19 de abril de 2020

Cinzeiro

A memória do tempo era um fardo para Maria. Na sala, ela espera. Sentada no sofá com o controle na mão procura o passado, onde o tempo não corria. “Antes tudo era quieto, calmo como cadeira de balanço na calçada. Tenho saudades do tempo”, conversa baixinho com a lembrança. Em cada canto da casa há recordações do que era. O livro de cem anos de solidão do marido, ainda com seu cheiro - fica no lado esquerdo da tela. A xícara da melhor vó do mundo - fica sobre o balcão da cozinha próxima da garrafa de café. O lenço para enxugar o olho que tanto lacrimeja, dado por sua filha - fica no bolso direito do vestido, que fora comprado em família na última reunião de natal dois anos atrás. Na tarde, 15 horas, liga o radinho presente de casamento do primo na estação favorita - foi posto por Joaquim no criado mudo que ficava do seu lado na cama. Ao chegar de noite senta na poltrona favorita do filho para assistir as velhas notícias da televisão e fumar seu cigarro. Antes de dormir veste seu pijama amarelo costurado ao longo do mês enquanto ouvia a programação do rádio. Deita sobre o lado da cama do seu falecido esposo, agarrada ao que sobrou de Joaquim.
No outro dia tudo era igual. Maria temia fazer algo diferente e apagar todo o mundo ao seu redor. Há dias não saía de casa, nem podia. Cada território deveria ser remarcado partindo do quarto à cozinha, do banheiro à sala, do controle à reminiscência. O hábito não deixava esquecer. “Amar é guardar na memória”, sussurrava o fantasma de Joaquim ao seu ouvido. Na medida em que essa ideia crescia, Maria era consumida pela rotina. Logo passou a se confundir com os móveis e os lugares, tornando-se um mobiliário só.
Amparando os territórios de suas recordações, Maria passou a alimentar o eterno retorno de si mesma. Tanto o apego aos rastros do passado, quanto a cristalização do seu eu mais pedante, a fizeram esquecer o peso do tempo em sua memória. Os dias estavam distantes, imensuráveis, irreconhecíveis. O agora são as cinzas que lhe restam entre cada tragada no cigarro. O aqui é seu único lar, além de qualquer mundo possível. A história repousa em seus rastros. Daí em diante Maria habita o sofá, o livro, a xícara, o lenço, o vestido, o rádio, a cama, o cigarro, o controle e as cinzas.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 12 de abril de 2020

Illusion Serinus

Ergui para mim um ilha de cartas.
No pacífico sul da ilusão.
Ao pé de uma espatódea empilhei carta por carta, edifiquei uma a uma por década e meia...
De tão sozinho que era, criei também um amigo imaginário, na forma de um lindo canário, que me acordava todo dia a ouvir o seu canto.
Vivia solto, livre, dourado.
Fascinado pelo bater de suas asas e sua liberdade, a ele me prendi. Em seu canto me perdi assim como na incerteza de quem um dia fui. Nas frias noites, suas asas eram manto que me enrolava a alma, me trazia a calma de não ser mais só.
O EU passado, não queria mais,
era apenas EU, sozinho. O que importava agora era o passarinho, que de mim surgira, mas tão melhor era.
Continuei empilhando as cartas da minha ilha, era torná-la maravilha para o meu canário desbravar, para que ele sempre ali estivesse a cantarolar alegre, satisfeito. Que não encontrasse nenhum defeito, que o levasse a levantar vôo pra qualquer outro lugar.
Criatura minha, despejei nele toda alegria que me sobrava, meus planos expectativas passaram a ser seus. E como "és responsável por tudo que cativas", criei para mim mesmo um cativeiro do EU.
Como a lua com a terra, passei a orbitar em sua volta. Até que um dia como outro qualquer, sem nenhuma explicação, tsunami, ventania, minha ilha da magia, bomba relógio de teimosia, enfim desabou.
Todo o meu mundo planejado para o canário sucumbiu, olhei para cima e percebi, que no bater de suas asas meu mundo ruíu.
Sua plumagem dourada estava branca, lívida.
Me olhou uma última vez consternado como quem diz: "eu não posso mais."
E se foi, como uma brisa passageira.
Sequer sobrou uma pluma que a ele me remetesse.
Triste cenário, diante dos meus olhos se desfez.
Sem ilha, sem cartas, sem canário, sem aviso do soco que me atingiu a alma. Perdi a tez.
Preferi ser um outro que eu mesmo, e o outro se desfez perante mim. Como um personagem de jogo, que some ao desligar um console.
Menti para mim mesmo por todo esse tempo.
Nada me sobrou a não ser a lembrança do canário, saudade de alguém que por muito tempo amei e nunca existiu, remo no oceano, em busca de um pedaço de terra que seja real. Ainda que imerso nesse mar, em nada me sinto envolto, sigo a flutuar, preso embora solto, condenado ao que dizia Mia couto que o "Morto amado, nunca para de morrer."
Em dúvida entre nadar ou simplesmente afundar,
Miro meus olhos ao longe, algo se desenha em pé...

A espatódea era real.

Nado.

Júlio César