domingo, 28 de outubro de 2018

Às portas da contemplação - A beira do abismo parte II

Manicael me olhou de volta, seus olhos denunciavam, sem foco, a busca a uma resposta que fizesse sentido. Meio acabrunhado e ainda sentindo um pouco de vergonha, com o dedo indicador direito em riste, apontou para cima e disse: "somente quem tem asas brancas como as nuvens tem esse privilégio. Minhas asas são negras e, por isso, denunciam meu lugar de direito aqui em baixo. Só me resta escalar."
Olhei novamente para o corpo divinamente esculpido de Manicael, procurei por defeitos, quaisquer imperfeições que fossem, não achei nenhum. Nenhuma simples cicatriz ou deformidade. Examinei suas asas minusciosamente, pedi humildemente que as abrisse. Deveriam ter uns cinco metros de envergadura. Eram formidáveis. As plumas internas, macias, conferiam leveza e flutuabilidade e as penas das extremidades, longas e afiadas como uma espada samurai, ostentavam aerodinâmica de uma rapina, brilhavam de um azul profundo e lustroso ao refletir os raios do sol, que reinava absoluto acima do dossel das frondosas árvores.
Tentei entender em que residia tamanha diferença do belo Manicael, além da coloração de suas penas. Ainda confuso, perguntei ensimesmado: " quem atribuiu a ti, criatura celestial, a sina de reprimir tua divindade, entregando-te o fardo da imperfeição de realizar uma tarefa tão humana?" Surpreso com minha admiração, Manicael respondeu:
"Os outros. Eles me jogaram aqui. Disseram que não sou perfeito como eles, que, portanto, não devo comer as frutas perfeitas, mas sim as defeituosas, assim como eu. Isso, segundo eles é o meu sacrifício e a justiça divina." Com a têmpora denunciando minha pulsação já acelerada perguntei-lhe, ainda: "e por que aceita de bom grado tamanha barbaridade?" Com os olhos verdes safira, agora marejados de lágrimas de cristal, Manicael respondeu: " porque nunca comi do fruto, não conheço, pois, nada sobre o bem e o mal, além do mais, eles são a maioria. Que posso eu, contra uma multidão de asas brancas?"
Em um reflexo rápido, usei uma das poucas perícias que me fora herdada, da minha vida no campo. Habituado e com uma agilidade demasiadamente humana, subi na árvore, peguei o maior fruto e o entreguei a Manicael, altivo. Nunca me senti tão útil debaixo da minha incompletude quando exclamei:  "Não seja o que dizem de você! Voe!

Seja a dinamite do firmamento!"

Por Júlio César
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 21 de outubro de 2018

Todo medo

Todo medo. Todo modo. Perigo de liberdade. Apenas quero ver. Liberdade do perigo. E te deixo livre. Como a louca borboleta esvoaçante, mãe terra quer paz.
Lagarta de traje colorido largada em cada curva-abismo. Cheiro de verde e gosto de clorofila. Ventos cortantes na proa de balançada asa e vejo a liberdade corrompida e ultrajante.
Qualquer coisa muda, muda de mudar não de que muda.
Eu ouço o sol maior da música inebriante dos metrôs. Um louco cruza o quarteirão fumando charuto descartável, plásitco e qualquer coisa vagabunda.
As molas do freio metálico do trem. A falta de força para parar o tempo. Ferrugem mantida para corroborar com a bem ordenação dos horários de abertura e fechamento dos estabelecimentos bem estabelecidos e do dinheiro enfiado em bolso mudo.
Da urbanoide fábrica de delírio pessoal e de contas para pagar. Desapercebido delírio meu de cada dia. Desencaixe.
Consumação da fábrica de cimento remota. Expele uma fumaça cuja duplicata esvoaçou até o comissariado da polícia.
O alvará de funcinamento permaneceu intacto.
E ninguém fez nada. "A fábrica funciona amanhã".
Chorava ele quando ainda achava que era livre. Triste pesar de uma segunda-feira.
Deu-me o último abraço antes de dormir e fui triste voltando.
Pressenti a dor vinda, que nada faz, o cimento é mais importante que o ar respirado.
E as nuvens negras permeiam uma manhã de calor.
Charles mete sua cara na manutenção do rotor lateral cíclico.
"Não fosse o alvará, puta merda!"
Ele tinha decorado o manual para passar no teste antes que a sogra jogasse de novo um balde de água fria todo dia para ele arrumar emprego.
"Bombas helicoidais e eixos de suporte",
falava disso dia e noite, sorrindo gordo de que teria futuro.
Disse que ia dar tudo certo agora que era homem de não se conformar, mas ser uma resitência viva.
Agora é pó! Meu deus, é pó! Que dor!
Ele queria o mundo artístico, a vagabundagem não permitida, mas a transição prima dos astros havia esquecido. Sol em gêmeos ou câncer. Dispensou.
Quando o cimento explodiu de puro pó em sua cara, a trepidação do eixo central expeliu como esperma queimado na fusão dos novecentos graus de calcário puro.
Reclamava seu supervisor que deveria evacuar em mil graus antes que a merda toda encerrasse. E o que adiantava?
Eu ouvi o papouco de longe e logo pensei na morte do peçonhento. Mas os melhores morrem primeiro.
Na mesma hora em que sua mulher exprimia pimenta no whisky, na fábrica de pimenta e molhos Mexicana.
Pensara em sacar-lhe no bolso um sachê para o marido que nunca mais viu.
O pó deixado sequer vale algo que se diga corpo. Os padrinhos de casamento de Charles e Ester, enquanto isso, chutavam os cachorros da porta principal do almoço voluntário aos presidiários de segurança máxima, amançados pela fuga geral que tramavam.
Quando souberam, olhavam frios a desgraça de serem sabotadores.
Deixavam escancarar a algazarra.
Os comissários de vôo da Catar saboreavam no céu de dor o champanhe borbulhante.
Enquanto filhas de shakes eram disvirginadas pelo ânus em nome da bendita fé e aclamados pela safadeza geral.
O fato é que o mundo expelia qualquer coisa de si.
Não tinha mais suporte nem grito. Nem reza nem lenda, nem o que mentir nem verdade.
E eu servia à comunidade cavando o buraco desigual da cova onde havia guardado uma carta do passado na minha cidade de infância.
Qualquer coisa me dava esperança de não ser. Ameaçavam-me os olhares vivos e prontos para apanhar-me cavando.
Cheiro de terra molhada e nada. Quente como suor que esquecia de evaporar.
Eu comia terra, barro, vapor e gases borbulhantes. O estouro pré-pronto nunca antes tinha sido coveiro de tão próximo olhar.
Cadê o filho da puta do Dijalma? "Metia seu pênis em qualquer lugar uma hora dessa". E quanto mais eu cavava mais lembrava disso tudo. Até que o abismo anteveio. Não era o outro lado. Era o nada.
O buraco se abriu sobre a terra e uma grande escuridão sacudiu o alarido. Qualquer coisa viria dali. Chamaram polícia, bombeiros, forças de segurança máxima e o verde cheiro do buraco, combatido desde quando o homem é homem e guardado.
Cheiro de guardado era o sentimento empoeirado. Virgem. Não tinha voz, não tinha cor, forma ou qualquer coisa.
Alguns perceberam a ameaça e implantaram sobre ele o fator central da vida.
Lágrimas e suor faziam combinações infindas. Mas era só a porra de um buraco. Esqueceram de enterrar Charles, irreconhecível. E eu chorava a dor de não ter onde cair morto.
Toupeira! Merda! Era o supervisor que eu enterrara. O tempo nunca volta,  mas eu já começava a me sentir criança. Negando na carcaça adulta do triste dia em que o conheci. E Charles escafedeu-se no ar.
A única coisa que eu fazia bem feito na vida, não fiz para ele. Ele deve ter pensado nisso. Susto puro de esperança. Fuga. Sem tempo. Escafedeu-se. Como a borboleta esvoaçante. Como o cheiro verde dessa joça, onde estão todos menos ele.

Por Jayme Mathias Netto
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 14 de outubro de 2018

A beira do abismo

Manicael estava sentado junto ao tronco da árvore. Olhava para a densa floresta e suas copas cheias de frutos. Ofegante, não aguentava mais tentar subir o bloco vertical de madeira maciça onipotente a sua frente. Quem aprendia a escalar comia os melhores frutos, frescos, suculentos. Esses últimos viam a vida de cima, flutuavam sobre o abismo. Diziam que o fruto das árvores lhes dera o conhecimento do bem e do mal.
Aos pés de Manicael cai mais uma fruta mordida, ele come. Ouviu dizer que as frutas que caem de maduras ou que são lançadas ao chão não possuem o mesmo sabor. Seus dias eram assim, procurava no solo as frutas remanescentes do céu. Carregava consigo um paninho para retirar a terra que restava nos seus alimentos. O fruto dos deuses - pensava o decadente enquanto olhava agradecido para o outro abismo acima das árvores.
Quando eu entrei na floresta me deparei com Manicael com seus incessantes esforços tentando subir as árvores. Ele era belo como um belo dia. Veio a mim, tentou se explicar para não parecer um louco, afinal tudo aquilo deveria possuir sentido. Estou atrás dos frutos, falou. E porquê não recolhe os frutos da terra?, indaguei. Faço isso pois esses alimentos estão sujos de terra, não pertencem mais ao céu, não nos oferecem o bem e o mal… Olhei para Manicael com espanto, vi seu corpo, sua potência. Em minha mente a dúvida se implantava como as sementes das árvores. Por que ele acreditava que as frutas vinham do céu se elas estavam na árvore? Por que a terra faria com que elas perdessem seu sabor? Por que o bem e o mal estariam no fruto? Toda essa curiosidade tomou conta de mim. Parado eu refletia observando aquele quadro que se pintava a minha frente, então decidi questionar. Manicael, se você é um anjo por que não usa suas asas?

Paulo Victor de Albuquerque Silva
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 7 de outubro de 2018

Vox Populi

Eis que é chegada minha vez  e hei de ser, logo hoje, nesse dia cinza e cheio de insensatez, o rei que com o dedo declara a queda no tabuleiro de xadrez.

No jogo de hoje, no entanto, todos perdem, pretos ou brancos, ledo engano!
Os pinos serão colocados dentro da caixa de madeira. Eu e vocês! Segue o plano! Onde amontoados, estaremos lado a lado, no escuro da impotência.

E logo eu, que não sou lá muito fã da raça humana, logo a mim foi legada a missão insana, de deixar a mensagem poética que intentava falar de algo que nos valesse.
Da ética ou da polidez de um povo que na busca pela sobriedade, só encontrou embriaguez.
Embriaguez do espírito, consumindo para si algo muito pior que álcool líquido, o veneno que escorre da mordida da víbora sorrateira, que com a língua bífida profere ser temente a Deus, enquanto aperta a presa indefesa que não concorda com os seus...

Queria chorar, mas não consigo. Queria abrigo. Onde não tivesse que escolher entre flutuar sobre um pato amarelo, no mar  vermelho do sangue de trabalhadores enganados, ou dos menosprezados, pretos, pobres, minorias que pra os nobres "tem mais é que morrer!"

Difícil acreditar em tamanha fantasia, mas se olho de um lado vejo Franciscos e Marias depositando suas esperanças e alegrias em um falso Messias, que da palavra sagrada só levou em conta o apocalipse.

E, se viro a face, vejo de dentro do cárcere nove dedos regendo a orquestra da perpetuação de uma laia que esqueceu que, à parte de todos os malotes, tem sob os ombros a luz de todos os holofotes, apontando à espada de Dâmocles, que pendula sob a tensão de um fio de cabelo.

É gritante e, além, no mínimo paranóico. Que da polarização do povo heróico, o brado retumbante que se ouve é: "vai pra cuba! Vai pra Venezuela!"

Saudade daquele povo que só se preocupava com novela, pois, pelo menos nela, a ficção não saia nas ruas batendo panela, acreditando, vã, no fim da corrupção.

E a inteligência, hoje, nos põe em definitivo, na previdência da providência, vira burrice em sua essência e de nada nos impediu à chegada deste triste fim.

Ele sim,
          ele não,
                   no final,
                            tanto faz!

Aqui jaz um pátria chamada Brasil.

Por Júlio César
Vivisseccao.blogspot.com