domingo, 28 de abril de 2019

Esteves

"Eu fiz como? Eu mandei aquele recado como? Será que isso? Será que aquilo? Ah não foi isso, ah não foi aquilo." Essas coisas rondam a cabeça doentia de Esteves. O arrependido Esteves. Esteves arrependido, caçando a dor em tudo. Ao evitar sair de casa, morto de vergonha, eu constatei que era ele o mais narcísico e vaidoso que já conheci. Necessitava estar bem, como se todos se importassem com sua vida. Não saía se não tivesse tudo no lugar.
- Não Esteves, você é um puta egoísta! Só pensa em ti Esteves! Já havia tempo percebo como tu és um saco. Culpado como um bicho morto. O arrependido Esteves.
Perguntava-me sobre isso de arrependimento, o inimigo da ação. Ele, no entanto, se orgulhava dessa porra de sempre tá refletindo. Eu insistia:
- Esteves, tu só faz porque é um arrependido.
Ele negava brutalmente, falava que era coisa de homem de conhecimento, a dor, o sofrimento e o frio pensar que o levava a não sair de casa. Era o tal de um conceito de nada. E essas coisas de que se sentia superior e sua angústia era coisa de sentimentos mais nobres não experimentados nunca por mim e pelo resto dos nossos amigos. Penso que nunca se sentia bem algum dia. Era um desencaixado. Parecia sempre cansado, sonolento com aparência de que tinha uma doença constante. Disse-me, ao tomar um café para animar o ânimo, que ia fazer uns telefonemas. Passava a tarde ligando e, vez por outra, reclamava da vida para uns e se divertia com outros. Quando desligava tudo, eu perguntava:
- O que tu pensas oh Esteves? Ele retrucava:
- Ah estou aqui, arrependido por ter falado ao Mário umas coisas. E começava a falar mal de Mário...Arrependido por ter deixado de responder à Maria quando ela me perguntou sobre a vida aqui, tropecei e mudei de assunto rapidamente. Arrependo-me. Queria falar um pouco de mim para melhorar um pouco, sabe?! E também o que disse ao João quando tinha quinze anos, mandei-lhe cuidar da vida, que da minha cuidava eu, e que não era dinheiro a coisa mais importante do mundo... Hoje sei que a maior merda que se faz na vida era não valorizá-lo... Deveria ter ouvido...
Depois começava a falar mal do dinheiro e no outro dia tinha lido um tratado inteiro a favor do comunismo.
- E sabe o que fiz? Ele perguntava. Confiei na reflexão, ele mesmo respondia. Confiei nos meus pensamentos que querem tudo domar. Confiei que era eu filósofo, poeta e humano...Eu o consolava:
- Ah meu deus, Esteves, não se arrepende assim. Queres ser um santo? Não és tu que vive dizendo que prefere ser um sátiro a um santo? Que a vida deve ser vivida, valorizada, amada. Tua vida é muito boa, tens tudo que queres.
- Não, não tenho, sabe, acho que hoje me vou, não dá mais. Um grande abraço, mas não dá para ser o que não fui.
O arrependido Esteves era pertencente à sua própria prisão voluntária.
- Oh Esteves, meu caro, vai atrás da vida. Ganhar uma grana, essa tua vida não tardará precisar de onde descansar os ossos. Tenhas um filho e uma mulher que cuidem de ti, oh Esteves. Não morre só. Eu lhe dizia e ele respondia veementemente com amor:
- Tenho tu, basta!
- E se eu morrer, oh meu caro?
- Eu morro antes. Ele respondia olhando tristemente para o nada.
O que havia? De que sentia tanta vergonha, medo e toda tristeza da vida? Chamava de sofrimento metafísico. Dizia que via de longe o vagar calmo dos homens que vivem da prática, pois ele era pura teoria. Não adiantava, era o dia todo pensando, mas nunca agindo. Pensava em parar de comer. Seu pai disse que ele viciou-se nos livros aos oito de idade, discutiu o pós-estruturalismo aos dez e tinha sua opinião convincente das descobertas de Hawkins, quem admirava por ter o mesmo nome, mas em português. "Da vida não se leva nada", cochichava a mãe dele, e isso era seu pai que contava, ele respondia para mãe que era verdade, amava o que ela dizia. "Faz o que ama", dizia ela, e ele obedecia. Acreditou tanto na vontade da mãe que a observava em todas as fases da vida, até que resolveu escrever o Tratado das Profundezas do Espírito. Eram uns tais de uns diários que tinha feito desde quando o conheci aos dezessete. "Pega leve, oh Esteves" disse-lhe quando brigamos na última vez e até hoje ele está pensando na possibilidade do suicídio, sei que nunca fará, porque ainda quer pensar a vida toda. Dizem que essas coisas são típicas dos filósofos e ele compra a ideia. Mas vive colocando em cheque com suas teorias as leis do capital e do mercado. Dizia-lhe, nas raras vezes que ele parava de me falar e explicar as coisas, que ele era uma alienado, mas do lado oposto. A única coisa que ele não enxerga é essa verdade, a que está bem na sua frente, porque quando ele diz entediado "Ah não nasci para a vida prática", prefiro ir, ele profere uma verdade, mas não a executa nunca. E passa a vida a odiar a si mesmo e odiar as pessoas, esse Esteves. O seu nada é apenas um furo na sua cabeça. Resmunga e anota qualquer coisa em sua poltrona, faz exercícios duros na academia que fez em seu quarto e disse que quer superar o homem. Eu até entendia ele, mas nunca senti igual. Comecei a me afastar do Esteves e até hoje falo pouco. Lembrei dele porque começou a bater um vento frio de tarde, um cheiro de chuva, como quem avisa uma tristeza do dia. Chuva triste e Esteves ao menos nessas horas conversava deixando-se calar, era o mestre de escutar tristezas, curava todos, só ele permanecia intacto, sempre quieto, mudo e para baixo quando consultado. Ele queria o profundo, andava olhando para baixo e eu lhe dizia: "Esteves, vais cavar um buraco no chão." E cavou, porque só encontrava ele mesmo. Não saía de si e vivia criticando os outros que não saem, vivia anunciando suas teorias filosóficas como se fosse superior a alguém. Eu lhe dizia que essas besteiras que lia se só servem para vaidade e morte, era melhor parar. Mas era realmente um viciado. Cercou-se de livros, pessoas e grupos que apenas repetiam aquela coisa de filosofia. Falei com seu pai de que não se apegasse pelo nada. O pai disse, viciou-se, só olha para si na tentativa de ser feliz. E as conversas que tinha e compartilhava com os amigos ninguém entendia, era um tal de nada, de ser, de ente, coisa, algo. Ouvia às vezes todos eles bêbados e se orgulhavam dizendo que ninguém os entendia e foram picados por uma víbora chamada filosofia. Afastava de todo mundo o veneno. E eu me benzia, eles pareciam possuídos pelo capeta. Preocupei-me com Esteves, mas não deu jeito, nem eu entendia ele, nem ele a mim. Tentou me explicar segundo uns tais pensadores, mas eu não tinha mais paciência. Queria arranjar um ganha pão e fui. Onde estará Esteves? ...Pensando sobre a chuva ou sei lá, mudou-se... Seu pensamento nunca saiu de mim e ele repetia: "Eu sou assim, mas um dia quando lembrar da falta de apoio eu vou aparecer como imagem, tu vai sentar e querer filosofar, como todo mundo aí fora. Só aprendem a pensar quando estão tristes, eu não, eu tou aprendendo outro modo de vida: a vita beata." Com essas palavras ele dizia essas palavras sem significado, ele, o arrogante. Mas eu sabia que era impossível, jamais conseguiria uma alegria que não fosse essa coisa que todo mundo busca. Ele se irritava dizendo que eu era um cético, mas no sentido filosófico. E dizia: "Tu já é filósofo e não sabe. Já vejo em ti a picada da víbora filosofia". Hoje, triste, lembro do Esteves e desse negócio de filosofia. Serve de nada. Só pra ficar triste.

Jayme Mathias Netto

domingo, 21 de abril de 2019

Ruminando borras de café

- Pêdo, mãe disse pra nós aboiar os bicho. Às vezes eu acho que nossa vida é que nem dessas vaca da máquina de moer cana. Nós roda roda e num sai do canto.
- Num sei.
- Eu fico oiando elas e me alembrando das Maria de nossa vida. Vó quando fala dela criança parece que ta dizendo do meu hoje. Tu num acha não?
- Num sei.
- Um dia desse seu Jorge teve um sonho e viu meu distino. Me viu moendo cana... Por isso fuiminbora naquele dia. Até que ia, aí mãe ficou doente. Seu Jorge... antes lia o futuro na borra, agora disse que vem no sonho. O sonho é meu, eu ainda vou mimbora, só passar isso aqui. Eu acho que ele sonhou cum futuro dele né?
- Num sei.
- Ôxe homi tu só diz que num sabe. Antes tu era chei de ideia, chei de sonho. O que será que acuntece cá gente. Quando foi que tu ficô assim?
- Num sei.
- A Pêdo dá não. Mió sonha só mesmo. Tô começano a achá que os sonho são as nova borra de café do distino.
- Já sei.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 14 de abril de 2019

Périplo destino


Despeço-me hoje
munindo o inverso do que sentia quando aqui chegara.
Das águas turbulentas que aqui me trouxeram,
espero hoje que me recebam suaves.
Que as aves que antes denunciavam a solidez da terra, hoje me desejem boa fortuna.
Que a oportuna viagem mostre na imensidão azul o quanto ainda hei de navegar.

Despeço-me hoje
E peço-lhes que velem pelos versos
pelas velas das belas palavras,
para que se estendam ríjas pelos ventos da inspiração.
Que me conduzam são e salvo além da rebentação, e das ondas do embrutecimento.
Que na lembrança permaneça a enseada antes de sumir no horizonte e os verdes montes da costa à beira-mar
que com todo jeito de lar, sempre me dirão: "bem vindo!"

Despeço- me hoje
Certo do regresso que cedo ou tarde se dará
Tal como a cobra que se volta à própria cauda.
Despeço-me por um instante
Certo de que o sextante da memória me guiará de volta, outra e outra vez.

Despeço-me
humildemente,
peço passagem,
a Poseidon e Iemanjá
para que me livrem das sereias,
para que eu não encalhe nas areias
que privam do livre pensar.
E que tenha sempre em mente
que mesmo Eu, marinheiro de tão pouca viagem
com tudo a revés,
não me deixe levar pela corrente.

Por Júlio César

domingo, 7 de abril de 2019

O riso...

Era exatamente um dia depois do Natal.
Na sala de jantar estavam todos a escutar.
Escutavam o rádio, no jornal
Fatos que vinham noticiar...
"Obrigado e feliz Páscoa!" o narrador dizia.
As crianças começaram a rir, porque páscoa não seria.
Riam aquela gargalhada que tremia.
O corpo todo em vermelhidão,
a garganta no ritmo do coração.
Riam e riam...
Alguns adultos diziam para elas pararem.
Alguns idosos reclamavam
da chatice daquelas gargalhadas.
Outros começaram a rir como as crianças.
Mas tinha uns bem diferentes, que não rindo nem reagindo àquilo tudo, tentavam conter as criancas e explicar que o
narrador não tinha falado "Obrigado e feliz Páscoa!", mas "Obrigado pelo espaço".
Foi desse tipo diferente que as crianças riam mais e mais e, confesso, mereciam.
Os mais velhos entendidos, embora não entediados, riam também.
Até um velhinho muito simpático e leve, cujo respeito guardo, se levantou da cadeira de balanço, mascando fumo e, ainda vermelho de gargalhada, anunciou:
"Riso que se sente, e não há de quem.
Riso não entendido, e não contra alguém.
Acaso sabem disso
quão raras vezes nos vem?"

Por Jayme Mathias Netto