domingo, 29 de março de 2020

A invenção da mentira.

Cansados de mentiras, todo o povo de Fato decidiu abolir a falsidade do mundo terreno. Criaram a Constituição da Verdade. No artigo primeiro escreveram: “A verdade nos libertará”. Uma assembléia quilométrica se fez ouvida na praça dos poderes. Todos votaram, os representantes administraram a reunião. Logo após a única votação o povo de Fato percebeu o quanto a existência dos representantes, que falam pela boca de todos - falseamento da vida individual - não era compatível com a Constituição. “Fora representação!” gritavam os habitantes da cidade enquanto se abraçavam mutuamente formando uma grande onda de corpos políticos emaranhados num grande Leviatã. Foi nessa manhã cinza onde o sol se escondia e o seu brilho, que é o Estado, o grande mentiroso, sucumbiu.
Saíram em marcha, cada qual rumo a certeza. Nas esquinas encontraram os líderes em seus palanques, apontavam para o céu. Tudo estava seco. Francisco anunciou com a ponta de seu dedo, “mentira, não há nada além do povo de Fato, não há ninguém acima do firmamento”. Todos olharam para o dedo de Francisco e concordaram com ele. Desfizeram a marcha. As pessoas estavam na contramão. O céu chorava sobre a cabeça do povo de Fato, desta vez a água não era nada mais do que banho de chuva.
A longa noite chegou e com ela vieram taças e mais taças de vinho, ditirambos se formavam nas ruas, poesias eram proclamadas, a memória inebriada fez reluzir cenas teatrais vividas em peças coletivamente conhecidas. Francisco embriagado lhes alertou, “Persona amigxs, persona! Tais pessoas não existem, são frutos da imaginação, invenções do vazio, assim como nós que maquiamos um ego, o simulacro está morto”. Nos dias restantes quadros nunca mais foram pintados, filmes queimados, esculturas derretidas, teatros foram comidos por traças, a música era matemática e a dança curva, a arte estava morta.
Promessas não eram feitas, talvez não fossem cumpridas. O futuro não era desejado, não havia. O passado reprimido, resistia. A memória foi esquecida. Os dias seguiam sem direção, as demarcações na estrada apagadas e ninguém recobria, as paredes dos edifícios ruíram. A poeira cobria a origem e seus móveis imemoriais. As antigas residências aos poucos eram abandonadas por casas de vidro, ninguém desejava deixar rastros, eles poderiam trazer hábitos, por sua vez crenças. A vida era pautada na morte, a natureza crescia dentro da cidade. Moedas eram cópias, não serviam para a troca. A caça é o melhor alimento. Após outro dia de luta Francisco selvagem se dirige ao povo de Fato, “Falamos do mundo ou no mundo irmxs?” Apontou o horizonte com o indicador “A palavra diz o nada”. Subitamente seu dedo foi amputado por uma mordida feroz. Francisco mutilado grita, “Aponto o horizonte e vocês somente enxergam o dedo!”. O gosto de sangue na boca do bicho era mais real do que o mito da verdade do povo de Fato.


Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 22 de março de 2020

O despertar de Isaias

A luz do sol batia no espelho d'água e refletia em seus olhos, enquanto Isaias enxergava as coisas que o cercavam de maneira pouco convencional. O pensamento que se desenhava repentino era esse: "Tudo senesce."
Via, tanto nas plantas quanto nas pessoas, deterioração, desgaste. Fosse na folha pouco amarela, carcomida por insetos, ou nas linhas de expressão que demonstravam o sofrer dos anos, a finitude se mostrava. Como que um aviso da brevidade. Os coqueiros pendiam lateralmente, cansados do vento que a todos esses anos os confrontavam, os muros de paredes amareladas aparentavam batalhas lutadas e vencidas pela resistência em permanecer de pé.
"Tudo senesce!", pensava Isaias. "Tudo senesce e nos dá sinais a todo momento."
O mais belo de tudo isso, concluía, era pensar que o perfeito como algo sem falhas é tão falho como a imperfeição sendo apenas o defeito.
O perfeito era para ele, naquele momento, o real, tal qual se mostrava frágil, cheio de falhas. 
A brevidade mostrava o quão grato ele deveria se sentir por apreciar aquilo que o cercava e concluir que do momento em que nasceu, senesce graciosamente, como quem diz aos Deuses : "a estática da eternidade é um saco!" Eu quero mesmo é a brevidade, é poder fazer e arrepender por não ter tido suficiente tempo. É ter no corpo e na alma cicatrizes, que nos tornam únicos e, ainda assim, tão iguais.
Por alguns minutos Isaias permaneceu a observar silenciosamente e agradecer tudo que o cercava, até ouvir o chamado de volta à superfície: "Vem diabo de menino danado, sai da piscina, a feijoada tá pronta!"

Júlio César 

domingo, 15 de março de 2020

O indeciso

Voltaire escreveu sobre o terremoto em Lisboa de 1755, questionando Leibniz sobre a coerência com um Deus Bom que tudo planejou e também nosso livre arbítrio.
E eu nem sei se tenho livre arbítrio.
Qualquer decisão que me passa é não primeiro e só muito depois é um sim.
Pergunto-me até se isso não seria um comportamento infantil!
Sei apenas que não encontro nada como resposta.
Se de um lado o Estado para Gilles Deleuze é impotente e fraco por ser poderoso, de outro lhe somos espelho
quando impotentes e crentes de poder de decisão. O estado e o capital não se apropriam de tudo com sua exuberância. Eles contaminam com sua fraqueza, empobrecendo nosso desejo.
Eles não decodificam porque podem, mas porque temem. E decodificam de forma burra, porque infatilizam e distribuem a culpa e o medo. Cuidado!
E eu nem sei se vou ou não vou fazer o que tenho que fazer. Esse eu é abstrato demais! Não encontrei nenhuma filosofia que diga. E li uma ruma!
Tenho que fazer milhões de coisas, enviar isso e aquilo antes. Mas parei para pensar.
E penso. Filosofia é bom quando é literatura ao mesmo tempo. Filosofia quando poetiza e vice versa. Então, eu acho que vou...

Jayme Mathias Netto 

domingo, 8 de março de 2020

Manuscrito.

Logo cedo Paulo encontrava-se posto na poltrona trabalhando com sua máquina de escrever o mundo. Ela lhe garantia mobilidade, agilidade, volume. A máquina de escrever. Descrevia o dia, a rua, da janela, com café. Às vezes falava mais do que devia, noutras devia. O fluxo do mundo corria sobre a máquina, na pior das hipóteses a máquina corria sobre o mundo. Afinal, o que seria do mundo sem a máquina? O que seria de Paulo?
Paulo tinha uma vida simples. Casado, mãe de dois filhos lindos que mais pareciam dois pés de cajú pequenos no quintal de casa. O cuidado com os dois era tamanho que sua unipresença não garantia a segurança das crias na distância. Comprou um aparelho que mostrava em tempo real a exata posição espacial dos meninos. Seus filhos desde bebês conviviam muito bem com as máquinas. Dentro de seus berços existiam aparelhos que captavam seus berros quando não encontravam os seios de sua mãe. Paulo os ouvia de longe, respondia com o peito.
Sua esposa era ausente. Corria ferozmente pela cidade, mais do que seus passos podiam andar. Ócios do ofício. Toma o carro, que passa à ônibus, que pega trem, que vira a moto, feito máquina. Quando queria notícias de Paulo mandava uma mensagem de voz que viajava pelo espaço até chegar no aparelho receptor de seu marido. Quando queria ver, câmera, quando queria sonhar, pílula. Era um companheiro onírico que retornava durante o sono da madrugada.
A técnica, intermédio entre a vida de Paulo e o mundo. Percebia os acontecimentos do dia através de seus tentáculos mecânicos. Fazia uso de todos os recursos possíveis há vários anos, mas não esperava que no domingo um mau súbito iria interrompê-los. A máquina de escrever parou. Paulo não via as letras, tela preta. Não ouvia as crianças, a bolinha verde do aparelho apagada. Foi conferir. Estavam plantando bananeiras no quintal. Nesse momento, Paulo percebeu o quanto o mundo ficou pequeno. Cabia na ponta de seus dedos. Então lembrou de algo muito antigo, pueril, que estava guardado no quintal de sua infância. Enquanto ouvia as crianças percebeu seu ouvido. Ele estava lá. Num súbito momento de susto, como se seu corpo fosse arremessado sobre sua pele, deparou-se com carne e ossos. Paulo poderia fazer de seu corpo, máquina. Voltou à sua poltrona, puxou a gaveta, tirou folha e lápis, olho no dia, ouvido na rua, nariz na janela, mão na xícara, língua no café. Como prova de sua mão-máquina decidiu escrever esse texto de próprio punho.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 1 de março de 2020

Velha nova moléstia

Há um novo vírus dizem eles.
Novo, que de novo não tem nada.
Proveniente de organismos de existência despropositada, sem motivo outro que não causar pânico, embrutecimento, morte, escassez.
O seu comportamento é previsível. Já era descrito em filmes de ficção em 93.
Um novo vírus.l, que vai acabar com a humanidade, eles dizem. Como disseram antes umas 5 ou 6 vezes.
Esse, parece não ter limites, é pandêmico e se espalha tão rápido quanto o vento que passa por entre os cabelos. 
Atinge a massa de todas as formas possíveis, abarca todos os modelos de sociedade dita organizada.
Os sintomas são altamente empobrecedores e contagiosos.
Não há refúgio, não há cura. O capsídeo é uma armadura inquebrável que perfura a pele, seja mulher, homem ou criança, branco, amarelo, preto ou vermelho.
A carga viral se espalha de maneira quase imperceptível, sem distinção de orientação sexual, quase mesmo invisível e quando menos se espera... estão seus hospedeiros defendendo a terra plana, contestando a vacina, dizendo que foi culpa da menina que saiu de saia curta.
A chacina é silenciosa e segregadora. Doentes e saudáveis se misturam sem ter ideia de quem é quem.
E o contágio ocorre todos os dias, a cada segundo aparecem milhares no mundo, infectados, segregados e com delírios de possuir para si a verdade absoluta.
Doença astuta que inovou ao não ser transmitida de maneira normal, não é presencial e hoje se pega pelos dedos, no simples digitar de uma desinformação.
Um vírus, eles dizem. Novo que de novo não tem nada. Que conosco estava desde o surgimento da humanidade e só agora surgiu a necessidade em falar sobre ele. Muitos nomes existem para denominá-lo. Os infectados o chamam pelos mais variados: esquerdopata, favelado, viado, feminazi, pobralhada...eu particularmente prefiro tratá-lo por seu nome original: 

Ignorância Vírus.

E ao contrário do que muitos pensam, esse vírus não tem como objetivo eliminar a espécie. E sim manter a todos vivos, torturando uns aos outros, virando ao avesso qualquer convicção. Deixando que cegos guiem aqueles que tem alguma visão, rumo a um precipício de escuridão.
Um novo vírus, que de novo não tem nada!

Júlio César