domingo, 8 de março de 2020

Manuscrito.

Logo cedo Paulo encontrava-se posto na poltrona trabalhando com sua máquina de escrever o mundo. Ela lhe garantia mobilidade, agilidade, volume. A máquina de escrever. Descrevia o dia, a rua, da janela, com café. Às vezes falava mais do que devia, noutras devia. O fluxo do mundo corria sobre a máquina, na pior das hipóteses a máquina corria sobre o mundo. Afinal, o que seria do mundo sem a máquina? O que seria de Paulo?
Paulo tinha uma vida simples. Casado, mãe de dois filhos lindos que mais pareciam dois pés de cajú pequenos no quintal de casa. O cuidado com os dois era tamanho que sua unipresença não garantia a segurança das crias na distância. Comprou um aparelho que mostrava em tempo real a exata posição espacial dos meninos. Seus filhos desde bebês conviviam muito bem com as máquinas. Dentro de seus berços existiam aparelhos que captavam seus berros quando não encontravam os seios de sua mãe. Paulo os ouvia de longe, respondia com o peito.
Sua esposa era ausente. Corria ferozmente pela cidade, mais do que seus passos podiam andar. Ócios do ofício. Toma o carro, que passa à ônibus, que pega trem, que vira a moto, feito máquina. Quando queria notícias de Paulo mandava uma mensagem de voz que viajava pelo espaço até chegar no aparelho receptor de seu marido. Quando queria ver, câmera, quando queria sonhar, pílula. Era um companheiro onírico que retornava durante o sono da madrugada.
A técnica, intermédio entre a vida de Paulo e o mundo. Percebia os acontecimentos do dia através de seus tentáculos mecânicos. Fazia uso de todos os recursos possíveis há vários anos, mas não esperava que no domingo um mau súbito iria interrompê-los. A máquina de escrever parou. Paulo não via as letras, tela preta. Não ouvia as crianças, a bolinha verde do aparelho apagada. Foi conferir. Estavam plantando bananeiras no quintal. Nesse momento, Paulo percebeu o quanto o mundo ficou pequeno. Cabia na ponta de seus dedos. Então lembrou de algo muito antigo, pueril, que estava guardado no quintal de sua infância. Enquanto ouvia as crianças percebeu seu ouvido. Ele estava lá. Num súbito momento de susto, como se seu corpo fosse arremessado sobre sua pele, deparou-se com carne e ossos. Paulo poderia fazer de seu corpo, máquina. Voltou à sua poltrona, puxou a gaveta, tirou folha e lápis, olho no dia, ouvido na rua, nariz na janela, mão na xícara, língua no café. Como prova de sua mão-máquina decidiu escrever esse texto de próprio punho.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

Um comentário:

  1. A cada domingo uma bela surpresa que num fim de dia nos prepara para uma semana com mais cor,mais sabor,mais cheiro e assim com os olhos escorrendo te agradeço o presente.

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