segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Existência do não ser.

 


 

Havia algo entre as eras, algo que não era

Existia sem ser vista, nas entranhas dos dias, muda ficava

Em meio a isto e aquilo, não dizia

Se ser é ser percebido, então não era, pois não havia

Um não lugar, não ouvido, não sentido, não comido

E as horas passavam ao seu largo, mansa corrente de era

Arrastando tudo e todos que transcorreram

Mas aquela coisa no meio deslocada, fora do radar, nunca era

Não é o nada, pois o nada tem sido

O não ser, existente, puro e límpido como tudo o que não é percebido

Se escrevo sobre ela é porque quero que não seja

E faço isso com o verbo, dentro do Ser que é linguagem

Dizer o indizível já que nunca percebido

Mas ela está aqui bem perto, íntima do lugar em que a palavra não mora.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

domingo, 6 de novembro de 2022

Centelha

  


Vivemos num mundo de pesadelos reais.

Onde, cedo ou tarde, enfrentamos o que mais tememos.

E nos tornamos tudo aquilo do que mais fugimos.

Há um magnetismo inexorável e inevitável que nos atraí.

Onde aquele que canta, morre enforcado.

O fiel, trai.

Aquele que treina, morre deitado.

Repousa uma ironia macabra.

Um ímã do inevitável, que arrasta a todos ao "Maktub"

Somos consciência coletiva perdida em sua derrocada?

Os segundos finais de atividade cerebral post morten.

Diriam os Maias.

Onde o tempo ficou na relatividade de Einstein.

Sofremos juntos a alucinação de Belchior, todos os dias.

Mantemos acesa a centelha divina

Que mina o real, mandando a salvação para uma vida além.

Tirando muitas vezes o foco, de quem estamos nos tornando aqui.

Quem é você para além da sua casa?

Quando o sapato aperta?

Quando a festa acaba?

Quando no final da reta, havia uma curva, uma cova rasa e uma arma com uma bala só?

Quando a mente turva e o julgamento opaco falham em te assistir?

O que você deseja? O seu? O do outro? O de todos?

Quem é você?

Ouro de tolos reside na ideia de que a indecisão é decisiva.

De que quem se encontra, assim o faz na missiva, de se esquivar do que já te atingiu.

No silêncio, a história se tinge de sangue mais uma vez.

Vivemos um mundo de pesadelos reais.

Onde, cedo ou tarde, enfrentamos o que mais tememos.

E se você não estiver na frente estará atrás.

E o silêncio não falará mais, apenas te arrastará para aquilo que você mais teme.

Júlio César 

domingo, 23 de outubro de 2022

Todo dia

Todo dia
Todo dia
Tudo bem
Tá gordo
Tá velho
Tá bonito
Tá sarado
Tá fumando
Tá bebendo
Tá depressivo
Tá alto
Tá baixo
Tá franzino
Tá esquisito
Tá grande
Tá pequeno
Tá mal visto
E esse corpo que não aguenta mais 
tanto vício
E quem pune é o teu mais
conhecido
E quem te trata é também
adoecido
E a cura na falta de ombro
amigo
E essas teclas que nem sequer
ligam
E essa falta sem
perigo
Pra que tanto
desperdício
Se a vida é correr
risco?

Jayme Mathias

domingo, 16 de outubro de 2022

Verdades.

 

Eu minto para a vida sobre ser

Minto saber o que sei

Minto sobre o que não sei

Minto o porquê sei

Eu minto para continuar vivo

Minto pra miséria

Minto pro amor

Minto pra morte

Eu minto quando faço arte

Minto quando escrevo

Minto quando crio

Minto em poesia

Mas a pior mentira não é para mim mesmo

O deus da mentira não é o diabo

A mentira não é a ausência da verdade

Eu minto de dia e de noite

Minto de corpo e alma

Minto pra filosofia

Minto para honrar a falsidade

Eu minto com o não dito

Minto o dito

Minto dissonante

Minto em silêncio

Eu minto quando busco a justiça

Minto quando tenho virtude

Minto na igualdade

Minto em legalidade

Eu minto pois a mentira é o último adágio da verdade

Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 9 de outubro de 2022

Expiação

 


Sou culpado.

Assim me considero.

Não espero clemência, 

Mas pagar aquilo que devo.

Não a homens, não a crenças 

A mim mesmo.

Nenhum tribunal jamais me incumbiu.

Nenhuma instituição para me eximir da pena.

Minha sentença é reconhecer e também suportar.

E quando me faltar energia, que me sobre força.

A mata branca confidencia minha dor.

No céu o imperador dos astros, inclemente, faz descer sobre minhas costas o seu chicote.

Resignado, ouço seu clamor.

O suor que como sangue serpenteia em minha testa.

Atesta a expiação.

Estunado, movo-me lentamente na superfície escaldante.

O instante é infinito.

Não há injustiça. Não há lamento.

Pago o que devo.

Sob o firmamento, sou ciente

De que meu silêncio jamais me eximiu.

Do erro contínuo ao qual pertenço.

Vício ou virtude? Me atenho ao fato.


Imperfeito

Errático

Estou.

Devo então expiar, para curar, criar casca e cicatriz

Pois tudo que nasce morre.

Para que renasça algo melhor, algo que condiz

Depois de toda a expiação,

Estamos, meu bem...



                                       por um triz.

domingo, 25 de setembro de 2022

Havia

 Tinha no ônibus um carinha que dizia

Eu podia tá matando

Eu podia tá roubando

Ele dizia o resto que rimava muito bem

E quem sabe conhece

Mas vou pegar só esse trecho

Eu podia tá matando

Eu podia tá roubando

E nesse ritmo penso

Eu podia está fazendo isso e aquilo

Eu podia tá resolvendo as coisas da minha carteira de motorista

Eu podia tá adiantando um trabalho que não tem prazo, mas o cliente só paga quando eu terminar

Eu podia tá dando um jeito da grana entrar mês que vem sei que tem pouca ou quase nada

Eu podia tá estudando a fundo um assunto filosófico do meu interesse

Eu podia tá vendo um novo ap para me mudar

Eu podia tá publicando um artigo acadêmico

Eu podia tá traduzindo um artigo para publicar

Eu podia tá dando uma volta na cidade

Eu podia tá andando de bicicleta

Eu podia tá planejando ter filhos

Mas, pasmem, tou justamente pensando em todas elas e escrevendo sobre elas

Nada disso tem nada a ver com vivê-las

Nada disso tem nada a ver com fazê-las acontecer

Mas simplesmente não faço nada delas

E escrevo sufocado por pensar em fazê-las

Admirado com a capacidade da memória em saber de cor tudo o que tem que ser feito e que justamente não faço

Ela parece até que é inimiga da preguiça que tanto sinto agora

Tenho preguiça, falta de ânimo e nada me motiva para fazer o que listei acima

Talvez porque realmente não faça sentido

Nunca planejo futuros, nunca os vejo, nunca os vi, o que faço acontece e o que acontece nesse momento é o texto

Um texto que alivia uma memória cansada

De tanto lembrar essas coisas, esses ciclos

Quando se escreve, as conexões se tornam elásticas

Mas nunca vou me entender

E até cansei disso, cansaço e preguiça é o padrão e a norma de toda a minha escrita

Um século da atividade, não obstante cercado de uma pandemia

A memória sanguessuga de mim

O texto sanguessuga da memória

As palavras sanguessugas do texto

E eu querendo sarar tudo isso

Aprendi a escrever para fazer sarar

Foi cedo, bem cedo na infância que queria escrever história quando li meu primeiro livro

Os Pequenos Jangadeiros de um tal Padilha

Li não, foi meus pais que leram para mim

Eu tinha e sempre tive a tal da dislexia pedagógica

Pra eu me centrar numa frase qualquer dói até as pernas

Quem tem sabe como é

Tá vendo isso? A memória vai ativando outras coisas

O que gosto da escrita é isso, ela vai fazendo a memória puxar os fios

Ela vai fazendo a memória ser outra coisa que não cobrança

É como se a memória tirasse férias da mente

Porque sou pensador, minha profissão nunca para, nem que num tenha nada a ver com pensar filosofias

Se não encontro no mundo ou nas pessoas os problemas, encontro em mim mesmo

Mas na verdade invento, porque nada disso existe

Nem a filosofia existiria se não fosse essa coisa de sarar por meio de textos e memórias

Quando conheci os filósofos de perto percebi, cada um deles tinha essa agonia que sinto

Essa dislexia com o próprio tempo, uma falta de ritmo, uma falta de rima com o que vive

A memória de todo filósofo encheu o saco daquele cérebro até ele ir lá e fazer o texto, de novo a memória tirava férias

Ou mesmo a fala

É só ver Sócrates e seu Daimon

Cristo e seus apóstolos, a memória deles cansou e tirou férias

Se Sócrates não falasse ia ficar doendo a perna dele o dia todo

Jesus também, por isso nem um dos dois escreveu

Igual dói a minha pra me concentrar numa tarefa como aquelas que listei acima

Tarefas que dão preguiça

É muito interessante essa tarefa de desopilar a mente com outras memórias

A mente de férias

Acho que comecei a filosofar porque minha mente queria essas férias forçadas

As férias da mente é quando ela ganha força para pensar por conta própria

Tanto é que a metafísica é a produção mental mais criativa da filosofia

Ou o filósofo cria uma metafísica ou aceita a do seu próprio tempo

A do nosso tempo é mercado, política e capital

Nunca mudou muito

Mas há várias outras

Porque é só a mente não se satisfazer com isso que ela vai atrás de outras e, se não acha, cria rápido

E pega aquele corpo, se apossa, faz filosofia nele e bota para escrever

Se tenho uma filosofia é porque acabei de descobrir e é essa

A mente que se apossa de tudo como um Daimon

É ligeiro a forma como se expressa, mas devagar sua insistência

As ideias insistem como escorpiões sorrateiros, vão acumulando e aprimorando veneno

Até que chega um dia que a mente cansa deles e arrasta para o texto tudo o que tem que dizer igual a um carneiro de chifres galopando para atacar o oponente

Ele tem que encher de ar os pulmões e fazer na máxima velocidade nas pernas, com os chifres e o restante do corpo pronto para aquele instante depois de anos de vida

Esse texto foi desse jeito e todo texto é

De uma forma ou de outra, essas férias da mente acontecem porque ela fica brava com os pensamentos

Todo Daimon é assim

E vejo que com quase tudo na vida sou assim

Então tudo isso é só coisa minha

Que talvez sirva para outra pessoa também

Vai que as almas batem igual dois carneiros de chifre

Se não bater, podem tomar emprestado ao menos a necessidade

E sou assim com tudo na vida, acumulo um pouco depois vou lá e bum, resolvo duma vez com perfeição e maestria ou de pouco em pouco para dar certo

Quando é difícil vou de pouco em pouco pelo mais fácil

Quando é fácil é bum atrás de bum

E agora o que cansou foi o texto em si

Que já tem ar de despedida

Ele já vai e só volta quando tudo isso de volta ocorrer

Mas talvez volte logo, porque, apesar de tudo, sinto que não sarei

Ainda penso no que tenho que fazer e nisso e naquilo que me falta

Por isso que dizem por aí que filosofia mesmo não morre nunca e num serve pra nada

domingo, 18 de setembro de 2022

Ponto na curva.


Arnaldo Antunes nos diz que o “real resiste”, mas ele não resiste ao século XXI. A geometria clássica já nos dera o diagnóstico. O espaço é formado pelo alinhamento dos planos. O plano, por sua vez, se constitui por retas alinhadas. A reta é o conjunto de pontos que não fazem curva. E os pontos, bem, os pontos não possuem forma nem dimensão, são objetos adimensionais. O ponto não está no espaço, mas o constitui. Nosso mundo pós-moderno com seus terabytes é uma superestrutura maciça construída em cima do abismo. A edificada selva de concreto e aço que esconde o que sobrou do céu, suspira atomizada, é ponto disforme e sem dimensão. Então você vem me dizer que a verdade é o real? O real é o vácuo esquecido pelo mundo. Mas, na verdade, o mundo real é isso, um ponto que não está no espaço mas que o constitui. Coisa que o fascismo capitalista compreendeu muito bem.

Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 11 de setembro de 2022

Nada escrito

 

Eu não tenho nada escrito.

Tenho o que cito e tão logo esqueço.

Tenho o cálculo mas também o devaneio.

Receio ser esse o preço da geração fast food.

Fast think, fast poetry. Tudo tão a miúde.

Robin Hood, tiro da gramática, pra dar ao motivo.

E sai tira da Mafalda com piada sem sentido.

Acho que entender é melhor que soar bem na norma culta.

A vida adulta transcorre por mim como brisa que não marca. Não conta.

Como passar batido no fotosensor.

Aguardo pela multa do excesso de velocidade.

Salvo pelos cabelos brancos que se reproduzem em minha barba, denunciando a idade,

Vivo a eterna ressaca de dias fúteis.

Carrego em minha Arca de Noé, porquês raros e vazios.


Eu não tenho nada escrito.

Nenhuma frase em negrito, nada que denote brio, que a algures possa ser citado em algum rodapé.

Tudo que falo, já foi dito.

Ando por aí feito um céu repleto de nuvens carregadas sem que, no entanto, caia delas um reles pingo d'água.

Não decoro nada do que falo.

Não recordo nada do que escrevo.

Não declamo.

Me derramo sobre o silêncio constrangedor.

Nas horas vagas, reclamo.

Bodejos fluem como enxurrada, arrastando barrancos de sensatez e prática.

Me misturo em solução eutrofizada onde algumas poucas partes por milhão são jóias, que nem acredito que tenham vindo da minha foz.

Tão raro quanto as avisto é ouvir sua voz.

É preciso tempo.

É preciso deixar acalmar, para perceber que a vontade precisa de falta para se revelar. 

Deixar a torrente virar calmaria, rio cheio de volta.

Rebelião e revolta, darão lugar a um fino fio de sensatez.

Depois de toda a baboseira que se solta e vai embora de vez no resmungo sobrenadante, brilha no fundo do espelho d'alma o instante pensante do não dito.


Perturba como zumbido de mosquito.

Ressoa como as 7 trombetas...

E eis me aqui a escrever algo que amanhã já não lembrarei.

Mesmo assim...


Ainda que nunca tenha realmente estado aqui...


é bom estar de volta.


Júlio César 

domingo, 4 de setembro de 2022

Feito ou Perfeito?

É arrumar a casa sabendo que por mais impecável que fique ainda terá muita bagunça

É dar um jeito, sabendo que a grande parte não tem jeito

É pagar as contas sabendo que muitas contas nem precisava ter

É saber que a gente morre e muita coisa não deu tempo

É saber que fomos acostumados a deixar a felicidade para depois e os problemas primeiro

É se indignar porque ainda não resolveu muita coisa

É viver resolvendo coisa

É fazer declarações mesmo sem saber por que

É fazer afirmações que amanhã não serão nada

É estar pronto, sabendo que pronto mesmo nunca estamos

É dormir cheio de coisa na cabeça, mesmo sabendo que o dia não foi tranquilo

É acordar para trabalhar, mesmo sabendo que o dinheiro pode não dá

É se desfazer de roupas velhas mesmo sabendo que muita roupa velha ainda tá lá guardada

É ter esperança, mesmo sabendo que o medo é que bate na porta

É se sentir bem com as pessoas, mesmo sabendo que muita gente fala mal

É ter certeza, mesmo sabendo que a cabeça tá cheia de dúvidas

É ter vida, mesmo sabendo que boa parte em mim tá morta

É estar alegre, mesmo sabendo que dura bem pouco

É fazer faxina sabendo que muito ainda ficou e vai ficar por fazer

É ter a morte, mesmo sabendo que boa parte em mim tem vida

É se embriagar, mesmo sabendo que tem ressaca

É ser isso e não ser nada daquilo

É fazer arte, mesmo sabendo que a sociedade que criamos é enfadonha em suas entranhas

É ver a beleza, mesmo sabendo que é um jeito de ver

É sentir firmeza, mesmo sabendo que o humano nunca construiu nada de firme

É sentir clareza, mesmo sabendo que todos os nossos projetos são dúbios

É apontar para um objetivo, mesmo sabendo que nada pode dar certo

É dar sua vida, mesmo sabendo que tudo pode se perder

É limpar o vidro da janela sabendo que por trás dos móveis tá sujo

É sair de casa, mesmo sabendo que se pode morrer

É saber, mesmo sabendo que não dá para saber com certeza

É cuidar de uma coisa, mesmo sabendo que muita coisa não é cuidada

É ser atravessado por tudo isso, mesmo sabendo que podíamos fazer tudo sem saber

É tentar fazer, mesmo sabendo que muito não vai ser feito

É ficar velho, mesmo sabendo que cada dia você enxerga mais e melhor

É saber que vai morrer e a vida pode ter passado e você pensando que sabe

É saber que há um conforto em pequenos momentos passageiros que poderiam ser eternos

É saber que nem todo conforto vem do que é resolvido

É resolver, sabendo que nada tá resolvido

Tentar estar contente com isso, mesmo sabendo que contente mesmo não vai estar com aquilo

É saber decifrar a angústia, mesmo sem ela nos poupar

É saber-se finito, mesmo sabendo que temos sensações infinitas

É saber-se imperfeito, mesmo que possamos fazer perfeito

E nada mais angustiante, do que ficar entre achar que dá ou não dá

Jayme Mathias







domingo, 28 de agosto de 2022

Releituras (a)gosto: Altares Profanos

 



Da matéria profana ao sagrado posto em matéria

A arte sacra é o encontro paradoxal entre o corpo mundano e a imaterialidade divina

Quanto mais próximo dos espaços religiosamente ilustrados tanto melhor experimenta-se o sobrenatural

É possível existir uma matéria sacrossanta?

Toda arte é divina na medida em que, a cada obra, se eclodem outros mundos de sentidos e emoções

A arte é o limiar entre o sagrado e o profano

Ela é o barqueiro que nos leva ao Hades

Transforma mercadorias em ruínas

Ruínas em altares

A arte evoca os mortos numa marcha necromântica pela história

Dissolve mitos

Eterniza mártires

A arte representa o que há de inumano no humano

A imaterialidade na matéria

O sagrado no que é profano

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 21 de agosto de 2022

Releituras (a)gosto: Ranhuras

 Preencho esse espaço


com mais um pedaço de nada.

Encho ele com o vazio que estava em mim.

Em mais um regaço do meu avesso

me pego examinando as ranhuras do real.

Dos contrastes escancarados que ninguém vê.

Estampados na tv de led, nas manhãs de yoga e iogurte grego.

Nas noites de céu estrelado de traçante no Rio de Janeiro.

Preso em dilemas dimensionais da existência, examino a essência que ninguém mais sente. 

Tudo que encontro é angústia.

E a linha, cada vez mais indistinta, do bem e do mal.

Exercício hercúleo.

"Como o drible sem objetivo que se perde além da linha lateral".

E os espaços físicos ficam cada vez mais escassos.

Assinaturas digitais substituem momentos especiais.

Solenidades, reduzidas a QR codes

Não se ouve uma palma.

Na concha acústica sequer viva alma.

Apenas silêncio.

E está feito.

Outorgado mais um grau de imprestabilidade do sujeito 

que vê diante de si possibilidades tão próximas e tão equidistantes, inrreconciliáveis como os polos iguais de um eletroímã.

Resta tentar preencher o vazio dos outros

Para que, de alguma forma, pelo menos fique registrado

"Caso meu carro saia da estrada,

ou o avião que eu pegar decida que é meu último dia". Que quando você estiver só e assustado, não é só você que não está bem. Milhões de pessoas também não estão.

Pessoas infelizes e infelizes tem a mesma cara e se misturam na multidão de perdidos.

Mas como tudo que teve um começo, um dia esses dias encardidos encontrarão seu fim.


Já tem bastante tempo que não é apenas setembro que é amarelo. 

Mas o elo do ouroboros que une começo e final está próximo.

Em breve estaremos aptos a começar novamente.


Júlio César




domingo, 14 de agosto de 2022

Releituras (a)gosto: Antoine

 Certa vez, viajei até a cidade em que Van Gogh tinha falecido. Auvers-sur-Oise. Lá tinha um artista que escreveu na porta de seu atelier: "Aberto, pode entrar, não espere eu morrer para valorizar minha arte. assinado: Antoine". Eu sorri e ele me sorriu de volta. Ele deu com os ombros como quem diz "mas num é verdade?". Eu afirmei com a cabeça como quem diz "eu sei bem". Eu entrei e ele me explicou:

- É que essa valorização do passado é por causa do mal-estar. Se a gente separar, se uma arte dadaísta vinhesse primeiro que uma arte clássica, então para muita gente essa seria a verdadeira arte, boa e bela. O que eles estão negando é o mal-estar, não a arte. Quando criticam uma arte dos dias de hoje dizendo que não é arte, na verdade querem se livrar do mal-estar contemporâneo e não daquela forma de arte específica. Olham meu trabalho e dizem: "ele é como eu, é do meu tempo, ele vive toda essa merda, então não presta! A não ser que faça igual antigamente!"

Eu não tinha o que dizer e saí anotando o que ele havia dito, mas também não comprei nenhum quadro e ele sabia que não compraria. E eu sabia que ele sabia. Mais tarde, no final da tarde após ver o quarto do Van Gogh, o cemitério onde ele está enterrado e todas as pinturas de todos os ângulos que ele fez na cidade, eu voltei para o senhor Antoine com um café e uns biscoitos que comprei. Sorri pra ele novamente. Era o máximo que podia fazer, os quadros eram caros demais. Ele agradeceu gentilmente pela visita e pela conversa enquanto terminava sua mais recente obra. A noite chegou, conversei bem mais coisas, peguei o trem e fui embora atordoado. A arte faz essas coisas e não possui remédios ou preventivos. Afinal, por que simplesmente um artista contemporâneo é tão menosprezado? Por que tantas desculpas para não comprar seus quadros? Por que tão pouco valor damos? Como diz Paulo Victor: "é mesmo, tem como não!". Ou Júlio que diz com preponderância : "é mah, esse bicho". Aí pensando nisso fiquei até agora. Se num escrevesse isso acho que eu ia explodir, e o senhor Antoine deve fazer a mesma coisa para não explodir também.

Jayme Mathias Netto

domingo, 7 de agosto de 2022

Releituras (a)gosto: Anunciação

  


Tu não viestes de longe estrela cadente

Pronuncias o vindouro do dia

Alumia o amanhã num caleidoscópio póstumo

Tens na chegada fria e cálida minha sina


Itinerários ramificam-nos às lonjuras

Ocupam fendas nos pés rachados

que

Assentam morada no barro barroco da modernidade


A noite descultiva, tal qual girassol a espera do dia

Ninho sacro profano, guarda-me nú

Roubaste-me a esperança na espera

Finca-me no agora sujo e arraigado da margem


És tu, ó finito, quem anuncias a senhora morte

Dama vestida à foice em sepulcro mórbido

Doas o sabor à vida, pois em queda vislumbramos o abismo

Abocanha-nos a profundeza com suas notas de desespero


Daí amar-te,

amo-te porque sei que findas

Amo-te pois não me pertences indistintamente

Amo-te pois nunca mais serás minha, já que não há amanhã

Amo-te pois sei que findo-me em teus abraços


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 31 de julho de 2022

Julho do Leitor: Desaguar

 


Desprendida fui do aconchego do seio materno e colocada para correr pela casa. Pelas frestas das janelas vislumbrei ásperas e secas realidades e medo senti, ainda tentaram cobrir meus olhos com lençóis de algodão e com o cheirinho de doce de goiaba vindo da cozinha, mas o medo continuou em mim. Chegada a hora, empurrarem-me e o lá fora passou a ser minha casa também.

Rodeada de visões de escassez estava e para acalmar deram-me pequenos simulacros de beleza e liberdade, tentando ocultar o que fizeram de nossa casa. Ando pelo solo seco e encardido, observo o horizonte desmatado, cheiro o ar de metano, olho para o ruído na barriga do menino. Como era bom o tempo da infância, no colo da mãe, deliciando seus doces feitos só para mim. Não há opção para voltar, não há como fingir, agora a escassez está ao redor. Também sou eu. 

Nessas alteridades desérticas, que assolam o mundo, abate a sede por novas possibilidades, para que as bocas ressequidas possam enfim falar e que a água escorra para inundar nosso chão. Necessidade há de regar novos começos para o que é de uns vire de todos, para o que é deserto vire oásis.


                                                                                                                                       -R



domingo, 24 de julho de 2022

Julho do leitor: DAYSE E O MONSTRO

 

Dayse tinha dez anos e percebeu que não podia contar para ninguém. Havia um monstro dentro de sua própria casa. Ele vinha visita-la no quarto, na sua cama todas as noites. Era um pavor absoluto. O monstro a tocava com seus dedos frios e ela estremecia. Um dia contou para a mãe, mas a mulher se irritou e a ameaçou de castigo. Não tolerava mentiras! Falar com o pai, nem pensar. Então Dayse atravessou dias, meses e anos suportando os pavores noturnos, sozinha. Um dia fugiu de casa e viu pavores maiores ainda. Reuniu forças e resistiu. Uma noite, dormindo na rua, foi acordada por um homem. Num susto reconheceu o velho monstro e num gesto rápido, cortou a garganta dele com uma navalha. Após o incidente, continuou vendo o monstro, mas este se mantinha afastado, parecendo receoso. Dayse logo percebeu que isso era algo que podia ser ensinado para as outras garotas... Esse monstro sangra, garotas, disse ela.

Jorge Raskolnikov 

domingo, 17 de julho de 2022

Julho do leitor: Ela é uma Deusa antiga

 


Ela possui todos os defeitos e qualidades dos Deuses.


Ela possui os desejos de Afrodite;


Ela possui a luz do raio de Zeus;


Ela possui a coragem de Hércules;


Ela possui a beleza de Apolo;


Mas...


Ela possui a tristeza de Hades (pois fora abandonado pelos seus irmãos);


Ela possui o orgulho de Zeus;


Ela possui a maldição de Narciso;


Ela possui a impulsividade de Poseidon;


Ela deve ser aceita com todas as suas qualidades e defeitos.


Eric Vieira

domingo, 10 de julho de 2022

Julho do Leitor: Paragens

É momento de pausa, e vou aqui pensando… sinto falta do interior, e com interior quero dizer o campo, os lugares longe da cidade. Quando vou, e já faz um tempo que não vou, o cheiro do mato me traz muitas reminiscências boas, referidas à minha infância e ao começo de minha adolescência no interior de meu falecido avô e avó - esta ainda viva - maternos. O silêncio, as pessoas, as cercas (não sei o motivo, mas a imagem delas, que na verdade deveriam me representar algo ruim, porque são cercas, me trazem uma sensação boa, talvez por me lembrarem as paragens dos meus já citados ascendentes), o céu noturno, a paz, a igreja, os alpendres. Os alpendres são um espaço muito especial. São onde ficam as redes, as cadeiras, e, em alternativa à cozinha, é onde se conversa com os visitantes. As pessoas chegam, sentam nos parapeitos, sacam seus fumos, fazem os seus pé-duros e conversam, conversam longamente. Ninguém tem medo de ninguém. Entra-se nos alpendres e deita-se nas redes das casas alheias sem o menor pudor - nonada, isso é um disparate! E acontece que você está ali, sentado na cadeira de balanço, mais ou menos às cinco e meia da tarde, e o sol já vai baixinho. Lá de longe, você escuta os passos de alguém remexendo a terra e se aproximando, se aproximando cada vez mais; sua avó está na rede e, estando o visitante já bem próximo, fala, "Como é que vai, comadre?". Você não conhece a pessoa, nunca a viu. Ela, por sua vez, diz "Tudo bem, comadre, e contigo?". Em seguida, o mais esquisito acontece, quando a mulher idosa vira pra você e diz, "É o Willem, filho da Nega?". Isso sempre me assustou, sempre me fez perceber o quanto eu estava num lugar completamente estranho, mas ao qual, ainda assim, sentia-me muito pertencente. Como assim as pessoas conhecem você, sua mãe, seu pai, seus tios e tias, seus primos e primas e você nunca as viu antes, não as conhece? Parece-me ser uma outra estrutura social, cultural, de vida, ou, enfim, de tempo, para não escorregar num tipo de termos que não quero utilizar aqui. Todas as famílias se conhecem. Cada uma tem sua característica, seu estereótipo. Há a família dos ricos, aquela das mulheres bonitas, aquela dos homens bonitos, aquela dos loucos, aquela dos pistoleiros, aquela dos políticos, aquela dos festeiros, aquela dos trabalhadores. Já em outra ocasião, sua avó pede ao seu pai que a leve até a casa de sua comadre, esposa de seu irmão. Você, como criança metida, vai junto. Ao chegar, as duas se cumprimentam e a anfitriã pede a todos que tomem seus lugares nas cadeiras e redes do alpendre - ele, outra vez. Passadas as introduções típicas de qualquer conversa, as matriarcas de suas famílias tratam de falar dos problemas das terras, das cercas, da safra vindoura, dos bezerrinhos, dos empréstimos de castanha, enfim, das coisas que só as matriarcas podem resolver. Enquanto isso, você está completamente distraído olhando pro mato escuro que está ao redor da casa; observa as luzes que estão lá, bem distantes, e fica imaginando quem vive por debaixo daquelas lâmpadas; quando dá por si, olha pro seu irmão e fala, "Vamos brincar?", e vão os dois correr pelos terreiros iluminados pelas luzes da casa, sob céu coalhado de estrelas. Bem, o que eu sei é que o interior muda as pessoas, só por estarem lá. Sua mãe não se preocupa se você está longe de casa, ela sabe que simplesmente não há perigo, a não ser que o perigo seja você mesmo, que é uma criança e pode fazer aquilo que crianças fazem de melhor: se machucar brincando. Ela parece saber que, para onde você for, por mais longe que seja, sempre estará perto de alguém conhecido, e esse alguém vai cuidar de você e te deixar seguro. Se alguém te ver, logo te dirá, "Olha, é o Willem, filho da Nega", e pronto, você estará em segurança. Outra coisa é o silêncio, que é muito intrigante. Sentado em cadeiras no terreiro, junto a primos, tios e tias, você começa a escutar um barulho que parece ser de motor (provavelmente será uma moto). Esse barulho perdura, perdura tanto que você esquece que ele está ali. Vai aumentando o volume, lentamente, até que, cinco, seis, sete, dez minutos depois, a bendita moto passa na estradinha que fica bem em frente à casa. Na cidade grande, é impossível escutar o barulho do que quer que seja que esteja a dez minutos de distância de você. Devido ao barulho, você só se apercebe quando esse algo está em cima, e olhe lá. 

Bem, já lembrei demais. Memória é coisa romântica, inapropriada para a pressa de que preciso.

 

 

 

* * *

 

 

Willem Carneiro.

 



domingo, 3 de julho de 2022

Julho do leitor: As sobras


O que restou de nós quando todos eles se foram?

0,5%, 1%. De que importa?

Sem tempo ou despedida, como num raio.

Um instante que crava a solidão no peito dos que restaram.

Ficara pensando por um tempo, o que é que se pode traduzir da imensidão do nada?

Vestígios contagiosos do que já fora num instante sem tempo ou espaço.

Eis que nos debruçamos entre as sobras.

O abismo grita como um animal em desespero.

Só sussurros são ouvidos.

Um frio na espinha estremece meu corpo.

Perdi o olfato, 

Perdi a coragem,

Perdi o suspiro,

Pensei estar de bruços... já não me acomete mais.

Não estou em lugar nenhum. Será o nada?

Como se o nada hospedasse aquilo que, um dia, sonhou ser algo muito além do ar que respirava.

Luiz Tiago Soares de Souza

domingo, 26 de junho de 2022

Prometheia Parte 1- Prometheus bound

 

Imagem: Luiz Tiago Soares de Souza (L. T. S. S.)

Quem lhe dera a morte fosse sorte possível de encerrar a dor.

Quem lhe dera o corte só sangrasse sangue e não rancor.

Cerrar os olhos e não ver a cor que se desbota do tecido do tempo.

Quem lhe dera o alento do simples cessar do ser.

De não viver para sofrer todo dia, o corte e arranque do fígado

Pela águia em fria vendetta animalesca de Zeus.


Acontece que herdamos do barro o berro do pai das artes.

E o sofrer é só mais uma parte passada pelo filho de Jápeto

aos seus protótipos de barro.


Como quem brada num lamento:

"Ó santa mãe minha, ó firmeza que revolve a luz comum de todos, vedes os males que sofro."


Quem lhe dera a sorte de não subir aquele morro, de morrer tranquilo.

Porém, da semente dispersada do silo do saber,

algumas herdaram o poder de prever do titã acorrentado.


E nem só de barro são feitos,

São semi perfeitos, como retirados do solo com um trado,

Que carregam no peito a centelha do pulsar, em tudo.


Àqueles que morrem padecem por pulsar somente em uma pequena parte

restrita apenas a carne, que por hora se habita, mas logo se esvai.


Mas estes a quem se reserva arte pensante,

pertencente a poucos grãos na estante dos amaldiçoados,

se desvela no rompante do sensível 

O incrível fardo da imortalidade.


São pois o que compõe o cerne. Sólidos como o chão em que pisam.

Alicerce, palco onde dança, a posteriori, a razão específica e seus "frufrús" de senhor "sabe tudo".


Esses potes de barro jamais morrem, transbordam, se derramam e se fundem, no próprio chão em que pisam.

Unem-se a eternidade.

Não são pois tão somente o artista, mas também a própria obra de arte.


Permanecem como o baluarte em vigília na região da Cítia, que hoje também é conhecida como: toda e qualquer esquina.

Continuamente se descortina serem escravos e donos do Cáucaso.


Embora por fora, muitas vezes apareçam decreptos de eterna doação.

Permanecem intrépidos de pé na esteira do vulcão.

Peito aberto, bofes pra fora. 

Estraçalhados ao fim do dia, 

para no seguinte, tornar a se levantar.


Desafeto após desafeto,  sem tempo, sem hora, na forja do mendigo Hefesto.

Seu destino nefasto é também o manifesto mais nobre.


Enquanto a maioria flutua,

Eles vibram como o núcleo da terra.

Esfera nua de solidez maciça de cobre e aço de maior dureza.


Quem lhes dera portanto a destreza de cessar, que atiça a finitude  como virtude fugaz.

Infinito, no entanto é o exorto e à sua constituição voraz.

Pois que o derrame requer o constante movimento para fora do próprio corpo.

Expressão cortante como um refluxo esofágico.


E aqueles que sentem o trágico sentem o cerne e, tal como ele, são imortais. Embora sintam como tudo que morre, não o fazem.

Morrerem eles é como morrer o próprio chão.


Não morrem. Não nascem.

Não começam. Não terminam .


Nem doxa, nem Sofia.

Nem Cratos, nem Bia

São capazes de mantê-los presos, ou mesmo de libertá-los.


Crias da anarquia

Rebentos da paz


Como a prole de Jápeto, que apenas jaz.

Sentindo toda a tristeza.

Toda a alegria.

Tocando a sangria da eternidade.


Não são superiores, não estão acima nem abaixo.

Estão!

São!


Como seu pai.

Prometeu acorrentado.


Condenados por tempo indeterminado a usar as correntes da liberdade .


Júlio César 

domingo, 29 de maio de 2022

Serra das almas



As palmas das mãos calejadas
A calma estrelada da abóbada celeste
Perneiras para as picadas.
Apontam que ali não há peste, 
pior que o bicho homem.

Os espinhos do sabiá
Que se agarram por sob a testa
Como garras de quem detesta
Quem ali chega pra perturbar, avisam.


A mata não aliviará quem ali teimar em bulir.
E não apenas uma, mas toda criatura,
do carcará a saracura advertem no canto
 Que o manto que cobre o sertão
Fez o cansanção e a urtiga
E deu ferrão à abelha e à formiga
Pra brigar com a teimosia.

No meio do nada, o silêncio abafa até o sinal das redes.
O que aplaca a sede dos homens é o cansaço de brigar com o mato.

E todo dia é uma derrota. 
Que na manhã seguinte se renova
E a noite vira anedota achar que repelente funciona.


A natureza é implacável
E há muito fizemos a nossa escolha.
Hoje onde caem as folhas não repousamos mais.

Serra das almas pois ali o corpo físico jaz
Em meio a beleza voraz
Do que um dia foi nosso lar.

Júlio César



domingo, 22 de maio de 2022

Diferente

Teria uma coisa bem interessante para escrever


Teria algo daquela surpresa da arte


Teria beleza


Teria emoção


Teria choro e alegria ao mesmo tempo


Teria vida


Teria uma ideia que se liberta


Teria algo que finalmente sairia da cabeça


Teria algo que me pararia de incomodar


Teria palavras


Teria cores


Teria texturas


Teria mudanças 


Teria sensações para se livrar ou compartilhar


Teria tudo e


Teria nada


Teria todos e


Teria ninguém


Mas é que atualmente faço outra coisa diferente até de viver


Diferente até de observar e expressar


Diferente até de pensar


Diferente até de sentir


Diferente até de ser


Diferente até de olhar


Diferente até de cheirar, tocar


Diferente até de gosto, de paladar


Diferente até de som, de escutar


Diferente até do DNA


Diferente até do oxigênio


Diferente até de universo


Diferente até do conhecido e também


Diferente até do desconhecido


Diferente até do íntimo


Diferente até do público


Diferente de mudança


Diferente de ser


Diferente de estar e ter


Diferente de tudo


Diferente de nada


Diferente de todos


Diferente de ninguém


Mas é que atualmente vivo demais pra escrever, exprimir, só o que me interessa hoje é essa outra coisa que teria e seria o que não dá 

Nem pra dizer nem pra não dizer

Nem pra fazer nem pra não fazer

Nem pra gostar nem pra não gostar

Nem pra...

?

.

Tá ligado?

Jayme Mathias

domingo, 15 de maio de 2022

Ione

 

Deus nos presenteou com um universo enorme. Até onde se sabe ele possui 45,7 bilhões de anos luz, onde se encontram mais ou menos 2 trilhões de galáxias. Uma delas, em formato de espiral, é a Via Látea, nossa galáxia. Esse pequenino lar é composto por centenas de bilhões de estrelas com várias cores e tamanhos, mas somente uma nos é importante já que nos aquece, o sol. Esse jovem astro ilumina, com toda potência que possui, seus 8 planetas circundantes. Permite vida na terra, tudo meticulosamente calculado.

O planeta azul que habitamos, comporta cerca de 7,8 bilhões de humanos. Mas há entre eles uma mulher especial para todos nós, filha de Maria Colaço e Manuel Pereira, irmã de Mazé, Fransquinha, Aurimar, Raimundinha, Zeneida e Chiquinho. Mãe de quatro filhos, criados com muita garra, longe da família, sobrevivendo do seu esforço empregado na casa de vizinhos para pôr comida e amor à mesa, resistindo à fome e à solidão.

Ainda bem que essa foi somente uma parte de sua história. Retornando ao seu lar, com a ajuda da família, continuou a trabalhar para sustentar seus filhos, e logo conheceu o mundo da educação. Alfabetizou centenas de crianças por vários anos, lhes proporcionando o prazer de viver novos universos possíveis através da leitura. Lhes deu dignidade, esperança. A arte da educação transpira de seus poros inundando toda sua família, seus filhos, netos e bisnetos, sua igreja e seus estudantes.

A dádiva da vida não lhe foi concedida por acaso, a senhora nos gerou, nos formou, nos criou. Como um astro galáctico, há 80 anos a senhora nos sustenta, nos ilumina e nos atrai com sua gravidade natural. Sempre que preciso se faz presente, com serenidade e lucidez. Nos momentos difíceis, de acolhimento, de celebração familiar, litúrgicos, continuamente nos clareia com o brilho de sua sabedoria solar, nos acalentando e aquecendo. A senhora traz a nossa vida um sentido único, é criatura linda que inspira e ampara o nosso viver, marca nossa existência no firmamento tanto no corpo quanto na alma.

Em nossas vidas a senhora não é somente mais um ser humano, mais um número, mais um ser vivo qualquer, é, essencialmente, mãe, professora, irmã, tia, madrinha, filha, avó, bisavó, é minha Vó Ione.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 24 de abril de 2022

Quasimodo


Às vezes eu preferiria ser mudo. 
Que tentar mudar as bases do discurso, nem com força e paciência de um urso eu seria capaz.

Preferia ser surdo que ouvir os estalos de quadros pendurados plenas quatro horas da manhã, enquanto inspiro agoniado pela visita da inspiração.

Ser cego, a seguir o sinal que ressoa no suor que cai da testa no chão, a atestar que o fato de ser ciente, não exime a ciência frente ao senso comum. O sonso e o santo se diferem pela retidão do rumo que dão às suas vidas.

Entre idas e vindas, origem que finda no início, para fundar-se novamente e seguir o mesmo destino, o discurso segue, afundando o fundamento, afirmando o firmamento mais altivo do pódio mais laureado daquilo que se chama de verdade. 

Fomentando o fermento da réplica dialética, cada vez mais mal elaborada que o "porque não" de costume.
Enquanto a "aleteia" clama clemência do juízo da reta razão, que se usa na régua do terraplanista.
Que inocenta o culpado sem pistas de que o mesmo não cometera o delito que apontara o delator.

Queria não ter tato para segurar a chama olímpica do "bem" que tremulou bamba nas mãos trêmulas de Mohamed. 

Queria não me sentir obrigado a brigar pelo brado retumbante que partiu de lábios da fidalguia, para legitimar igualdade num mundo de oportunidades desiguais.
Nem ter experiência que tornasse possível prever que o que sucede, depende daquilo que precedeu.

Tudo isso emerge encadeado em cadeados lógicos, que aparecem entrelaçados em qualquer conversa de bar, com roupagens mais moderninhas. Jogos de linguagem, no linguajar da filosofia analítica.

Preferia não ter olfato a sentir o cheiro de queimado dos meus neurônios em mais um parco raciocínio que, vez ou outra, me leva a esses escombros insolucionáveis que se repetem como um erro na matrix.

Diante de tamanha complicação do simples, por vezes desanimo do pensar.
Desatino ou fato? 
Feto feito de receio, ressaca e rancor.
Que agora é dado a luz para eu parar de sentir a dor da angústia de ter olhado atrás da cortina.

E então, eis mais um Quasimodo, quase um modo de escrever como pintava Picasso. Em pedaços picados, fragmentos de dúvida duras como aço, que divido para, só agora, juntar.
Feito raspa do tacho.

Embora eu muito queira queixar-me por sentir, se não falasse, ouvisse, tocasse, visse ou cheirasse, eu nada quereria.
Nada escolheria, quando muito, daria a luz a esse discurso feio e caótico do qual agora me aproveito como um marginal da retórica.
Aproximar-me-ia pois de uma planta pronta pra repetir para sempre a mesma fotossíntese.

Que seja então feliz esse escrito, enquanto escondido permaneça, badalando os sinos da catedral da minha mente.

Júlio César

domingo, 3 de abril de 2022

Revolta

 


Dedico esse poema àqueles que ousam desavergonhar-se de suas imperfeições antes de mais nada!

Pois que eu quero escavacar tudo

Devorar minha juventude em odiosidade

Botar um disfarce e insurgir nos caminhos

Como uma irresponsável

E regozijar-me do dia em que me arredei dos meus progenitores

O estouvamento onusto

Desculpe as palavras difíceis

É pra fingir intelectualidade

O “deixar meus cabelos longos”,

Aquele corte Punk

O viver de embriaguez de gerações pregressas

E estar eivada como uma desconhecida!

O “jogar fora títulos e faculdades” contado em biografias

O “jogar para cima e bem alto os embargados conceitos” das vanguardas artísticas

E pisar na revolta alheia para que elas firam, me firam e vos firam!

Não quero ser poeta, pensadora pateta

Quero ser um larva rastejante que gira a cabeça “como as pedras rolando”

Anseio me dar conta de que sou rock and roll dentro de mim e rebentar em distorções

Desse jeito me envaidecerei em ser nada

Minha arte é produto da minha imperfeição e, portanto, assim me é a vida!

Não posso enfraquecer músculos nesses conceitos filosóficos que não contorno magneticamente

Tenho que soltar a força de um caminho merecedor e não devo sublimar

Já chega de fazer isso, meu corpo não suporta! 

Eu não suporto! 

Cansei de ser covarde como quem pensa.

Vou entortar a coluna desse edfifíco e virar a mesa desse escritório!

Chega de fingir, porque eu não sou a paz! 

E, no entanto, venho do medo da solidão.

Portanto, “sejais junto comigo” - digo ao espelho 

“Vamos porra!” – eu repito assobiando bem alto "fi-fiiiuu tá na hora"

Mas ninguém responde, e nos olhos de lamentações prefiro continuar escondida, agradando-me aos olhos dos outros.

Sentada e morfada como um cogumelo

Preso às entranhas dos seus sofrimentos

Sem coragem de enfrentá-los e

Entregá-los de bandeja a cabeça fria que não é sua

Prefiro esquentá-la com questões outras, notícias dos dias passageiros

A fraqueza requer frieza, apaziguadora, sutil e lenta

A coragem é quente, tudo ou nada, vida e risco!

Depois vem aquele verme sutil e triste, o lamento: "é, o sistema é foda né?! Fazer o que? Trabalha aí, se esforça aí, estuda praquilo lá, paga aí, paga lá, vive como se tivesse tudo bem, como se..."

Mas sempre digo "Se liga aae em mané!? Fi-fiiiiuu!" 

E bato no peito mostrando os mamilos pro combate!

A revolta tem o nome de Cássia Eller!


Jayme Mathias

segunda-feira, 28 de março de 2022

Ouroboros uma última vez

 


    Pompeu, antes de tomar qualquer decisão, sempre levanta-se de seu trono e, com o cetro na mão, anuncia sua decisão. Comandante dos destinos, senhor do reino da história. Foi abandonado por Deus para julgar seus súditos. Isso não evita que ainda rogue aos céus clamando por socorro ao decretar suas sentenças. Por vezes, revolta-se, chinga o divino, cospe no símbolo sagrado, mas rapidamente se arrepende e retoma as súplicas quando se vê perdido tendo que tomar uma decisão, pobre ser finito que reina. Está fadado ao acaso, seja para criá-lo ou mesmo para cumpri-lo.

    No que diz respeito a sua vida, acredita que a coisa é completamente diferente. Toma suas próprias decisões. Comanda seu destino e é senhor de sua história. Mesmo quando abandonado por Deus, acolhe as rédeas do porvir e guia seu caminho. Quando se percebe só, implora por intervenções celestiais à procura de alento, chora como todo sujeito moderno detentor de consciência de sua sina. Foi lançado ao mundo completamente nu e sozinho, uma criatura pequena coberta com roupas monárquicas que está fadada ao destino, seja para destruí-lo ou mesmo rejeitá-lo.

    A corte representa seu mundo em miniaturas, onde as criaturas jogam acreditando brincar. Na verdade, Pompeu tem o cetro preso às suas mãos quando acredita o segurar. No fim do espetáculo as luzes se apagam, a cortina se fecha, os personagens são recolhidos do palco e Pompeu, arrastado pelas cordas amarradas em suas extremidades, é guardado na caixa de bonecos.

Não tenho tanta certeza se já não escrevi esse texto antes.


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 20 de março de 2022

Réu primário do marasmo

 


Tenho lutado contra a retórica em meu favor.
No processo sou eu o juíz,
advogado, réu e promotor.

A acusação entra.
Os crimes: procrastinação, fracasso. Ter se fechado ao espaço que se abre para o pensar.
Introjeção e ocultação de reflexão. 
Falsidade ideológica.
Receptação de tudo. Emissão de nada.
Homicídio qualificado da leitura.

Ao testemunho, no banco dos reus, relato:
Que aos céus tenho rogado, apesar de não crer na total benevolência do divino
Que alguma força me devolva o fascínio, traga de volta o tino para arte.
Que apague do peito a letra escarlate que salga a semeadura da estrofe.
Além disso não tenho muito que dizer em meu favor.
Pois note, que por tanto tempo fui aluno e agora me recuso a ser professor.
Professar sobre a certeza que nem eu mesmo tenho.
Seria inútil empenho em vender o que não se compra, nem mesmo para si.
Desesperançoso, resta deixar que a defesa entre em cena.
E aponte algo que valha a pena salvar
No meio do lixão em que não mais tenho sido capaz de me encontrar.

A defesa inicia:
Ora se até o nada, tem sobre si uma vasta filosofia 
Onde as conclusões sobre o "não ser" se bicam como galos numa rinha,
Que linha reta essa defesa poderia seguir senão uma curva?
Quando até a própria mente se turva de tal modo a não poder se enxergar no horizonte distante.
A defesa poderia chamar a depor várias testemunhas, para invalidar as acusações nesse instante.
Vivissecções já feitas.
Elocubrações constantes nos autos do processo da vida.
Seriam provas concretas e lavradas.
Porém a inocência ficaria clara apenas aos outros. 
E nada disso inválida o presente julgamento, que nesse momento é de si.
Como, no entanto, demonstrar ao juiz a inocência de alguém que quer ser incriminado?
Ou pelo menos desistiu de se declarar inocente?
A defesa apela portanto que se atente a verdadeira culpada dos crimes apontados. Depressão.
Ora, pois que nada mais ela é, que se colocar além de qualquer salvação.
Empurrar para si o irremediável rótulo de invalidez.
Sem clamor, sem amor, sem perdão.
Pois ainda que todas as autodefesas, "autoestimativas" tenham sido dribladas, a defesa foca a narrativa no argumento de que permanece acima de tudo, o julgo da razão. Ao que dizia Sêneca: " a adversidade é exercício. Não importa o que você suporta, mas como você suporta."
E este indivíduo caro juiz, segue suportando. Fez disso um vício ano após ano, depois de todas as quedas que levou.
Como um indivíduo que berra aos 4 cantos, que desistiu de si e ainda assim, segue escrevendo esse texto, a defesa encerra pedindo absolução deste, por cegueira do ser causada pela "desvontade" da vida

A sentença:
Todos de pé!
Com a palavra vossa excelência, inteligência máxima residente neste amâgo:
Das acusações feitas e argumentações apresentadas, este que autolegisla entende, que este julgamento é a maior prova de que ainda se processa no réu tentativa de ir contra tudo aquilo de que fora acusado. Tendo em vista que intenção não exime culpa, a justiça determina que o réu peça desculpa a si mesmo pela sua autosupressão constante, caso assim não consiga, que busque ajuda profissional externa.
Para concluir um conselho da jurisprudência para o comitê de essência do réu, que baniu de si a alegria.
Um excerto, de uma mensagem certa vez capturada, despropositada, a esmo, mas nunca realmente em vão, nos arquivos do inconsciente:
"Você tem que acreditar na poesia. Porque tudo na sua vida vai deixar você na mão. Inclusive você mesmo."

Júlio César


domingo, 13 de março de 2022

Cuspe

 Sim, título bizarro!

É que só a poesia liberta!

Entre emoções que esfriaram

Entre panoramas que se igualaram

A vida quando parece 

Não dizer nada de importante

É só a poesia que salva!

E o cuspe, claro!

O cuspe punk que trouxe 

Pra ter um tom de rebeldia

E meu poema não existe

Se não como alguém

Que cochicha

Falo também de poeta

Não só de poesia

Da música

Como quem samba

E se veste 

De felicidade

Com ritmo da terra mãe

Que se não tivesse

Ainda Beethoven se ouvia

Não que Beethoven não seja excelente

Mas é do ritmo que falo

Dança e tambor

Não que todo o resto não seja lindo

Mas falo de música com a beleza do batuque

Não que as fenders não sejam surpreendentes

Mas falo de solo de guitarra com violão, pandeiro

e cuica

“E alguma coisa acontece no meu coração..." 

Pra substituir qualquer ra-ta-ta e exercício nuclear

Pois logo cedo já escolho morrer bêbado de poesia, música e não de medo

Aquele abraço!


Jayme Mathias 

domingo, 6 de março de 2022

Sacro Santo



    Laica é uma jovem moça de família temida e poderosa, os Fonsecas. Linhagem respeitada de militares que utilizam de todas as estratégias para manterem seu status quo, ações que vão desde sonegação de impostos à criação de empresas para lavagem de dinheiro, fruto do eficiente trabalho miliciano. Ao centro do núcleo parental, Laica representa todo o esforço familiar concentrado em sua figura como a neta mais querida que carrega consigo a marca da eficiência educativa dos Fonseca. Quanto maior a docilidade e a passividade da garota mais larga seria a capilaridade do poder patriarcal da família falicamente egóica.

    Laica Fonseca sabia costurar, cuidar da casa e dos possíveis filhos. Era virgem, mas já fantasiava sua vida sexual, principalmente quando ouvia escondida a narrativa das aventuras de seus primos com as jovens do bairro. Imaginava sua cama revirada de orgarmos múltiplos na companhia de meninos e meninas. Masturbava-se sempre que se percebia sozinha em casa. Adorava ir ao confessionário da igreja ver a silhueta do padre atrás dos basculantes de madeira e idealizar seu corpo nu em pecado. Vingativa, perdia-se em pensamentos nefastos planejando qual a melhor maneira de matar seu vizinho que colocou veneno para sua gata de estimação. Na biblioteca pública, procurava livros com temáticas eróticas e romances investigativos. Resistia à moralidade falocêntrica de seu pai criando um mundo majoritariamente profano com libertinagens carnais e cadavéricas.

    Na quarta-feira de cinzas, após vasculhar as ruas da cidade à procura de coitos públicos prestativos no aprimoramento de suas fantasias, decide retirar suas sandálias e entrar com os pés descalços em casa, para não ser percebida. Do lado de fora, na calçada, uma mulher embriagada dorme ao chão, ela possui somente um dos calçados. Laica aproveita a ocasião e lhe oferece seu par novo de chinelas. De súbito, ao abrir os olhos, a mulher indigente vê uma luz vinda do céu a iluminar Laica num sinal divino como que enviado pelo próprio Deus dos cristãos. Ela chora copiosamente enquanto beija as mãos de Laica reconhecendo a figura santa que lhe ajudara. Os primeiros raios do dia traziam os moradores à rua indagando o que havia ocorrido. “Ela é uma santa enviada dos céus” afirmava a mulher, Laica negava enquanto rapidamente se encaminhava à sua casa com medo de ser descoberta por sua mãe.

    No mesmo dia, a história corria por todos os becos e calçadas. "A melhor neta dos Fonseca é uma santa”, a “Santa Laica”. Depois disso, Laica passou a receber pães de graça na padaria, visitas particulares na sacristia, rosas surgiam na porta de sua casa. Não conseguia ficar sozinha para suas leituras na biblioteca, as visitas constantes lhe retiraram sua masturbação matinal. Ela odiava tudo isso e só pensava em socar todas aquelas pessoas até banhá-las em sangue, ao invés disso sorria e agradecia, como fora educada. Logo compreendeu que toda essa blasfêmia sobre sua vida iria lhe roubar os possíveis pretendentes para suas orgias imaginárias, afinal ninguém mais a perceberia como vulgar. Os dias passaram, depois meses. Relatos de milagres surgiram, alguns envolviam até mesmo as sandálias que estavam com a indigente. O ser de Laica, que tanto lutara para ser seu, tinha agora como inimigo um grande falo, um moralmente coletivo. 

No fim, vieram roupas longas, procissões, admiradores, missas diárias e castidade. Ao compreender a fatalidade da vida miraculosa conclui ao avistar seu rebanho de cima do altar, “sou uma Santa”, e acreditou nisso.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Onomatopeia do fim.

 

Pow...escutou-se ao longe, isolado.
Pooooow Poooooow! "Tá se aproximando."
Ratatatatatatá!
"Foi aqui do lado?"
Trrrrrraah! Trrrrrraaaah!
Corre filha! Corre!
Bang! Bang!
Aiii! Minha perna.
Crash!
Mamãe o vidro?Jogaram alguma coisa no vidro...
Clac...Booooom!
Jesus, por que?
Zooooooom 
Deus tenha misericórdia.
Kabooooooom!

"Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança."

Júlio César

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Aldinha

Não posso mais tocar

Não posso mais sentir o carinho

Não posso mais pedir uma história que ela lembrava

Não posso mais pedir pra saber como era quando eu era criança

Não posso mais pedir pra ela pastel de queijo

Não posso mais pedir pra ela meu bolo de goma

Não posso mais ir na sua casa e sentir seu cheiro, sentir seu abraço e seu beijo

Não posso mais pedir para que me conte o dia em que eu nasci

Não posso falar com a única pessoa na vida, a única que nunca me aborreci, que nunca briguei, que nunca me irritei...

Há 5 anos já tinha ido o mental, com o Alzheimer confundia-me com outros netos, não lembrava tanto 

dos detalhes nas histórias

Há muito não tinha eu os detalhes dela

Mas o fato é que foi-se...

Que não posso mais tocar...

A vida agora é o tudo o que havia antes, porém sem ela

E não posso mais um monte de coisa

Só resta lembrar o quanto era forte, o quanto era algo o mais próximo que vi de uma santa

Nunca foi à Fátima, seu sonho, mas mesmo assim dentro dela era como Fátima

Fazia milagres

Só resta lembrar o quanto era humilde, às vezes teimosa, mas sempre cuidadosa consigo mesma e com 

os outros

Só resta lembrar o que aprendi para ter pulso firme levantando sempre a mão esquerda

Mas agora a vida é tudo o que era antes, porém sem ela

E nessas horas queria reinvidicar de Deus meu direito de sofrer na hora certa

Deus sendo esse ser dotado de vontade devia nos dar a chance de fazer uma cesária da morte

Escolher hora e data, já que o dia estaria chegando

E a gente ia lá e se despedia de todo mundo

Ele nos mandava embora sem estarmos em hospitais, sem sofrer

Só se despedindo como quem viaja e olha uma paisagem bonita pela última vez, talvez até festejando e fazendo da morte um momento único como o nascimento

Mais simples seria se trágico fosse

Ao guardar certa tragicidade ganharíamos talvez bem mais beleza e força

Jayme Mathias

domingo, 13 de fevereiro de 2022

O pequeno entrave.

  Em uma dessas cidades antigas, perdidas no sudeste brasileiro, lembrei-me de um conto passado e longínquo, quase sem dono. Ruas de pedras batidas, casas coloniais com fachadas espessas e firmes. Templos carregados com o peso do tempo, cheios de histórias disseminadas em suas paredes e ruelas. O chão da cidade é sedento por aquilo que mais bebe, morte e vida. A multidão que nela caminha passa, ao seu ritmo, sobre os trajetos das eras, rumo ao esquecimento das ruas. Como em toda memória, a cidade colônia é lembrança e esquecimento. Suas casas, templos religiosos e narradores guardam o tempo, enquanto a rua da modernidade transpassa, mira o firmamento distraído.

Senhor Francisco, 57 anos. Apanha todas as manhãs o mesmo ônibus de ida e volta ao museu da cidade, onde trabalha há 26 anos. Desce em frente a praça principal, dobra na ruela do esquecimento (Júlia Augusta), assim chamada por ser pouco habitada. Decai a ladeira da vigília e finalmente chega a morada histórica da rememoração colonial. No trabalho sempre foi atento e prestativo, tem orgulho de ser historiador reconhecido e certificado pela comunidade, sustentando a alcunha de seu título, materializada por uma visita de um presidente português à sua cidadela no fim dos anos 90, onde foi porta voz da história viva narrada de seu povo, ato que lhe rendeu um broche lusitano. Xico, como gostava de ser lembrado, almoçava todas as tardes num antigo restaurante a 203 anos acomodado diante à igreja que inspirou seu nome. Comunicativo, amava conversar com os turistas, principalmente os curiosos, que por vezes conseguiam reaver, nos cômodos mais profundos, as obras adormecidas em seu corpo museológico. Claro, nem sempre o seu labor era assim, na maior parte do tempo recebia turistas mecanicamente automatizados, o que lhe exigia formular respostas enlatadas.

Retornando para casa, próximo ao fim de tarde, passou pelos variáveis e desconhecidos mendigos que se acomodavam na ruela do esquecimento, já que lá conseguiam o devido descanso da invisibilidade programada, do frio e da fome, debaixo de seus cobertores. Majoritariamente eram tipos variáveis pois, nômades, descartáveis, solúveis. Para Xico os indigentes que dormiam na ruela do esquecimento eram uma parte triste da história de sua cidade. Enquanto caminhava pela via, agora noturna e congelante de inverno, seguindo em direção ao ponto de ônibus, pensava o quanto deveria conversar com aqueles que lhe foram negados à história, que somente tinham o seu lugar às portas dos museus. Infelizmente, ao meio do percurso, teve um mal súbito e caiu, sozinho. Sem forças para se levantar decidiu dormir no chão, numa calçada pertencente a um casarão com mais de dois séculos de tempo. Esperou, imóvel, mas manteve-se leve pois dormia sob o mesmo céu de sua infância, no mesmo chão, repousando sobre a fronha de sua cidade.

No outro dia tudo igual. Carros passavam, cachorros, crianças, senhoras, mendigos. Todos miravam o futuro e seguiam na corda bamba à espera do abismo. Xico, adormecido, aguardava. Desviava o fluxo da calçada, mas mantinha-se imóvel, resiliente. Permaneceu deitado o fim de semana inteiro. Na segunda-feira, por um descuido, logo pela manhã quando todos devem retomar seus afazeres produtivos, teve o repouso interrompido por um dos pedintes da travessa com um leve cutucão nas costas. Seu chamado nunca foi atendido.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.


domingo, 6 de fevereiro de 2022

Luzes neon

Vivemos de luzes neon
Quase que incessantemente estamos on...
Como vagalumes atraídos para um chamariz.
Eterna balada, de cores e sons.
Chafariz de informações passando no feed.
Como escaladores de um cume, sem experiência em subir um serrote, seguimos em lote, conduzidos pelo "experiente coach do sucesso."
Guerreiros sem nenhuma cicatriz.
"Não é preciso saber nada, basta mentalizar e você será um exímio escalador." "Até onde sua mente é capaz de levar você?" Eles dizem.
Estamos constantemente hipnotizados por vídeos iluminados, retratando realidades utópicas que massageiam a mente.
Bombardeados de virais, nudes, atores e atos convergentes com aquilo que sonhamos.
A modernidade se nos apresenta como uma mãe tentando fazer o filho comer a papinha do sumo do supérfluo.
Deslumbrados, ingerimos o aviãozinho vindo em nossa direção.
Clamando por resultados, desdenhamos dos requisitos necessários.
Rejeitamos o que julgamos esquisito sem ao menos lhe dar o benefício da leitura.
E estampamos na cara a lisura do especialista.
Quem hoje prefere o preto e branco das páginas de um livro, às luzes neon? Quem é capaz de ignorar o frisson das redes sociais?
Passou de duas linhas é leitura dinâmica.
Não sobra espaço para o trabalho mental.
Tudo é servido, de bandeja como a luz de natal que atrai a mariposa.
E estáticos permanecemos frente ao neon.
Que vende a mesma mensagem, em diferentes espectros coloridos.
Você quer? Você pode!
Não precisa ler porra nenhuma não.
É só vestir a camisa da Nike.
E Just do It!
Mas ainda existe por detrás da cortina, algo que foge a rotina do like. A superfície das pétalas da vontade jamais traduzirão o que está pouco acessível na raiz da essência.
Que não se esqueçam os que perseguem a luminecência a todo custo, o que reside no fim da jornada, na fonte de transmissão luminosa.
Ao chegar perto demais da luz, nada mais se enxerga.
Em sua fonte o que aguarda, para além da longínqua espera, é somente o fim.
Nada permanece de paupável, nem para o corpo, nem para a alma, tal como não se toca a luz, esse tipo a nada conduz, senão ao vazio do ser.

Júlio César