domingo, 6 de março de 2022

Sacro Santo



    Laica é uma jovem moça de família temida e poderosa, os Fonsecas. Linhagem respeitada de militares que utilizam de todas as estratégias para manterem seu status quo, ações que vão desde sonegação de impostos à criação de empresas para lavagem de dinheiro, fruto do eficiente trabalho miliciano. Ao centro do núcleo parental, Laica representa todo o esforço familiar concentrado em sua figura como a neta mais querida que carrega consigo a marca da eficiência educativa dos Fonseca. Quanto maior a docilidade e a passividade da garota mais larga seria a capilaridade do poder patriarcal da família falicamente egóica.

    Laica Fonseca sabia costurar, cuidar da casa e dos possíveis filhos. Era virgem, mas já fantasiava sua vida sexual, principalmente quando ouvia escondida a narrativa das aventuras de seus primos com as jovens do bairro. Imaginava sua cama revirada de orgarmos múltiplos na companhia de meninos e meninas. Masturbava-se sempre que se percebia sozinha em casa. Adorava ir ao confessionário da igreja ver a silhueta do padre atrás dos basculantes de madeira e idealizar seu corpo nu em pecado. Vingativa, perdia-se em pensamentos nefastos planejando qual a melhor maneira de matar seu vizinho que colocou veneno para sua gata de estimação. Na biblioteca pública, procurava livros com temáticas eróticas e romances investigativos. Resistia à moralidade falocêntrica de seu pai criando um mundo majoritariamente profano com libertinagens carnais e cadavéricas.

    Na quarta-feira de cinzas, após vasculhar as ruas da cidade à procura de coitos públicos prestativos no aprimoramento de suas fantasias, decide retirar suas sandálias e entrar com os pés descalços em casa, para não ser percebida. Do lado de fora, na calçada, uma mulher embriagada dorme ao chão, ela possui somente um dos calçados. Laica aproveita a ocasião e lhe oferece seu par novo de chinelas. De súbito, ao abrir os olhos, a mulher indigente vê uma luz vinda do céu a iluminar Laica num sinal divino como que enviado pelo próprio Deus dos cristãos. Ela chora copiosamente enquanto beija as mãos de Laica reconhecendo a figura santa que lhe ajudara. Os primeiros raios do dia traziam os moradores à rua indagando o que havia ocorrido. “Ela é uma santa enviada dos céus” afirmava a mulher, Laica negava enquanto rapidamente se encaminhava à sua casa com medo de ser descoberta por sua mãe.

    No mesmo dia, a história corria por todos os becos e calçadas. "A melhor neta dos Fonseca é uma santa”, a “Santa Laica”. Depois disso, Laica passou a receber pães de graça na padaria, visitas particulares na sacristia, rosas surgiam na porta de sua casa. Não conseguia ficar sozinha para suas leituras na biblioteca, as visitas constantes lhe retiraram sua masturbação matinal. Ela odiava tudo isso e só pensava em socar todas aquelas pessoas até banhá-las em sangue, ao invés disso sorria e agradecia, como fora educada. Logo compreendeu que toda essa blasfêmia sobre sua vida iria lhe roubar os possíveis pretendentes para suas orgias imaginárias, afinal ninguém mais a perceberia como vulgar. Os dias passaram, depois meses. Relatos de milagres surgiram, alguns envolviam até mesmo as sandálias que estavam com a indigente. O ser de Laica, que tanto lutara para ser seu, tinha agora como inimigo um grande falo, um moralmente coletivo. 

No fim, vieram roupas longas, procissões, admiradores, missas diárias e castidade. Ao compreender a fatalidade da vida miraculosa conclui ao avistar seu rebanho de cima do altar, “sou uma Santa”, e acreditou nisso.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

Um comentário:

Muito obrigado pela participação. Continue acompanhando e comentando, isso é fundamental para nosso trabalho.

Jayme, Júlio e Paulo.