domingo, 29 de julho de 2018

Julho do Leitor: O indigno (PARTE 1) - 1/2

O homem era velho. Era difícil saber sua idade com exatidão, mas sua barba grande e suja, que passava por tons de cores do cinza escuro ao branco e as rugas bastante demarcadas, acusavam que aquele senhor já passava dos sessenta, de certo. Mas, como iríamos saber quantos anos tinha, se ninguém perguntava sequer o seu nome? O nome, este já o sabemos. As outras pessoas da rua o chamavam de velho pedro e diziam que ele não falava muito, que era tímido, era infeliz, mas era andador e sabia trabalhar. O velho vestia um trapo de calça preta, bem manchada e suja, uma camisa de botão que, um dia, já foi branca, mas que, hoje, mais caminhava para aquele tom encardido que só as roupas muito usadas, imundiçadas e nunca lavadas alcançam. Era a muda de roupa que tinha e nada mais. Como sabia trabalhar com madeira, juntou pedaços de caibro que um dono qualquer de mercearia por onde passou lhe deu, cortou, amarrou, armou e conseguiu preparar a estrutura do que viria a receber a cobertura daquele plástico preto em que se põe lixo. Estava feita a sua casa. Era feia, mas os outros da rua tinham inveja, pois, além de não precisar correr quando chovesse, pedro poderia até levar visitas íntimas para o seu particular. Não era necessário inveja: há muito não chovia e há muito, mas muito, pedro não levava ninguém para qualquer particular. 

Era primeiro de novembro. O dia não tinha surgido e o sol só iria dar as caras dali a uma hora.  O velho pedro se levantou, subiu o fecho-éclair da calça e a abotoou, vestiu a camisa, pôs o chapéu preto e saiu com um saco de pano vazio nas costas. Foi à esquina, dobrou à esquerda, andou três quarteirões, dobrou de novo, mais três quarteirões. Chegou. Quando parou, pensou, “É aqui. Aqui passam muitas pessoas”. Sentou ao chão e pôs-se a esperar. O dia chegou e os carros começaram a passar, as pessoas a andar e o sol a aquecer. Quando a primeira pessoa apontou na esquina, o velho pedro a observou, respirou fundo e estendeu a mão. A pessoa passou e não desenhou reação com relação a pedro. Era a primeira a fazer isso, mas não seria a última. Quando o sol apontou no cimo do céu, não havia mais sombra e o dia estava quente. O concreto da calçada fervia e pedro resolveu levantar. Aquele que estava ao chão, de mão estendida com a palma para cima e com os dedos arcados a fazer uma curva côncava, agora estava de pé e fazia-se mais visível. Visível só se for para o sol, que não o perdoava, porque, para aquelas pessoas que passavam, pedro e o poste, pedro e a placa, pedro e a calçada, eram a mesma coisa, eram cenário urbano. Juntava, por aquela altura do dia, um par de moedas. “Tenho que conseguir”, pensou ele, “mas é melhor que eu ande, pra que prestem atenção em mim”. O couro grosso daqueles pés descalços sentia apenas uma parte do calor escaldante do chão de concreto e pedra. Quando um homem vinha, pedro apontou em sua direção, meio sem jeito, como quem não quer ir, e disse, “...”, desculpem, mas, mesmo eu, que sou narrador onisciente e  onipresente, que tudo sei, que estou em todo lugar, não pude ouvir coisa da boca daquele senhor. O homem que vinha percebeu aquela figura, olhou e, à medida que passava, virando o pescoço, disse, “Desculpe, o que disse?”, e continuou o seu caminho. Pedro sentiu vergonha de estar naquela condição – pedir era difícil. Percebeu, quando escorou-se na parede a pensar, que não conseguia falar na altura para que o ouvissem. Não por timidez, era dignidade que faltava. “Como vou conseguir falar a outra pessoa se minha barriga dói de fome, se não há borracha entre meus pés e o concreto quente do chão duro?”, pensou ele, chegando às conclusões. O velho pedia, mas não queria pedir. Duas coisas o seguravam naquela posição: a primeira, o fato material, sensível e simples de que, se não pedisse, morreria. Pedia, também porque precisava de algum dinheiro necessário para cumprir um dever auto imposto. O homem pediu e pediu outras vezes naquele dia, pediu até conseguir o que precisava. Era invisível o velho e era igual a outros objetos da rua, mas, como todo objeto, que tem sua função definida, a daquele senhor era a de ser mendigo. Mendigos recebem moedas de pessoas. Afinal, não são mendigos as coisas para as quais damos moedas, com a intenção de descarregarmos a consciência de suas culpas? Mendigos são como cofres, e à medida que neles depositamos moedas, acumulamos qualidade para um sono cínico e passos dados para o alcance de um paraíso desejado...

continua... (próxima postagem: domingo 05/08)

Por Willem Carneiro

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domingo, 22 de julho de 2018

Julho do leitor: O enterro

Apenas outro anjo. Anjo, anjinho, era assim que os adultos designavam as criancinhas que morriam. Fui naquele dia ao enterro do filhinho de Zé Pereira, o empregado do seu Freitas. O caboclo era forte, parecia não ter medo de nada, mas na ocasião estava desfeito, arrasado, quebrado, humilhado por aquelas lágrimas que não lhe caiam nada bem. Mas tinha-se que compreender, o homem estava enterrando seu terceiro filho.
    O sol já se punha e o calor, finalmente diminuía. As pessoas em volta da pequena cova faziam um reverente silêncio, somente a mulher de Zé Pereira o interrompia com soluços e gemidos. A mim, incomodava ver o anjinho receber terra no rosto. Por que não tinham feito uma tampa para aquele caixão? Será que Zé Pereira não tinha dinheiro suficiente para o homem da marcenaria? Talvez aquela situação trouxesse ainda mais tristeza ao coração da mãe.
    Quando a cova foi finalmente coberta, Zé ajoelhou-se e pôs uma cruz na terra fofa. Neste momento imaginei a ponta da madeira indo de encontro ao rosto murcho do anjo. Maldade! Deviam ter mandado fazer uma tampa para aquele caixão.
Areia no rosto do morto.
    As pessoas começaram a sair e eu fiquei para trás para conduzir os meninos. Chamei cada um pelo nome, puxei pela mão de alguns. Seguimos pelo meio das cruzes, com cuidado para não pisar e afundar nas covas rasas. “Não perturbe os mortos”, dissera Jacinto, o coveiro. O homem que todas as crianças temiam, inclusive eu. Ele era poderoso, só podia ser; há muito que convivia com os defuntos, os túmulos; zelava pelo cemitério, era senhor de tudo. Eu era apenas um intruso, as crianças ameaçavam desorganizar tudo por ali, estava receoso. Continuei reconduzindo os meninos, invadindo canteiros, pisando em restos de flores e sobressaltando ao fazer isso. Medo! Aquele era o lugar dos mortos e os mortos, segundo minha avó e outros adultos, tinham grande poder. Assustavam, faziam arrepiar, colocavam para correr homens valentes, detinham os segredos da morte, eram os donos das noites escuras, não temiam nem ladrões, nem coronéis; alguns chegavam mesmo a virar santos e serem transformados em imagens de gesso para serem reverenciados nos domingos, nas novenas.
    Fui ficando impaciente com aqueles moleques. Tive que correr algumas vezes, afundar os pés naquele chão imundo, contaminado por restos de gente. Outras vezes brincar, contra a vontade, de esconde-esconde por detrás daqueles túmulos e roseiras.
    - Passa, ô infeliz!
    Dava vontade de deixar aquela meninada lá. Virar-se-iam com as almas dos falecidos. Tinha certeza de que iam chorar de medo dos fantasmas. Já estava farto daquilo, eram-me suficientes os pensamentos que certamente me tomariam de assalto à noite. Pesadelos! Sentia desejo de chorar. Depois de ameaças, consegui fazê-los seguir a trilha certa. Agora o cortejo seguia longe. Tínhamos que andar um longo trecho sozinhos. Lá foi eu caminhar por entre tumbas e covas abertas. Em dado momento nos deparamos com gatos. Muitos deles: pretos, brancos, amarelos, cegos, mancos. Para mim todos demônios em forma de animais. Foi um dos meninos se agarrar a um deles e eu gritei exasperado. Como não podiam ter respeito, temor? Já não eram tão pequenos assim. Sabiam sobre mortos, histórias de almas penadas e diabos no corpo de gatos pretos.
    Aos poucos fomos nos aproximando dos adultos. Para meu alívio, deixamos para trás aquele lugar assustador e imundo onde pequenas construções com cruzes no topo apareciam esporadicamente. A maior parte do terreno era mesmo dominada por pequenos túmulos de crianças onde não havia muito o que pôr. Tinha a consciência de que aquele era o destino de todos, reverenciava a morte mesmo acreditando que estava longe de mim.
Mas o quanto longe?
    Naquela noite demorei a pegar no sono. Na minha cabeça só havia espaço para uma coisa: os medos, imensos e incompreensíveis daquele cemitério, enorme, sua paisagem, seus mortos e todo o seu fascínio.

Por Jorge Raskolnikov
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domingo, 15 de julho de 2018

Julho do Leitor: um surto poético em meio ao enfadonho cotidiano

Basta...!

Dizia o homem de meia idade em demasiada inquietação...
Uma cidade não pode ser tranquila e interessante ao mesmo tempo?
Ah, inconcebível dignidade humana, derradeira importância política... 
Não se iluda, não nos iludamos, esgotamo-nos dia a dia em desprazeres.

Ô, mediocridade...!

Escapemos do óbvio, da pressa e do ganho a qualquer custo.
Não sucumbais à vida... Ei-la aí, experimentai sem grilhões.
Mas o que é a vida? – dizia um provocador. Talvez eu decidirei e ponto.
Certamente não será labor, nem imitação, tão pouco a companhia dos homens parvos.
Quero extravasar ainda que em solidão, principalmente nessa bendita solidão. 
Para que a vida não me escorra pelos dedos, feito água se esvaindo pelo muito pingar, secando prematuramente. Pois a vida pinga e seca e não a sentimos passar por estarmos em extrema atenção a outros afazeres que não são a vida, que só preocupa e a azeda.
A vida tornou-se incoadunável e, por isso insuportável, insustentável, lamentável...
Trabalho, confinamento, assédio, violência, congestionamento, miséria, poluição, concorrência extremada, aborrecimento, o sonho do outro, e nada de originalmente meu próprio?! É justo que o outro seja em mim?! É natural que eu queira ser, tão somente ser, ao meu jeito... Do outro só aproveitarei aquilo que me interessar. Ao inferno todos aqueles que dizem que devemos seguir o sistema determinado, a mim só importa o viver autômato, eu gasto o meu tempo da maneira que me apraz, chamem isso do que quiser.
Sim estou indignado, mas lúcido!Não notaram ainda que querem sugar a nossa vida com tudo que não nos interessa!Tirarei a tipoia de impossibilidade, os óculos de cego, abandonarei as muletas convencionais e seguirei tateando sozinho... Isso não pode ficar assim... Não irei me render, a rendição é para os que não encontram saída, eu ao contrário criei a minha própria saída...

Por Valterlan Tomaz Correia
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domingo, 8 de julho de 2018

Julho do leitor: Amor e palavras proibidas

O efeito do ópio começou no instante da consciência começar a fantasiar sobre sua boceta, jogada ao lado de sua cama, contendo instrumentos abundantes. Toda minha concepção de belo começou a se refazer. Minha crença desfeita. Meu rosto sem expressões e logo deduzo: a linguagem é errônea ao tentar entender a beleza. A linguagem não cumpre a significação da benevolência dessa súcuba. Se, porventura, viro na direção de seus olhos, percebo uma harmonia nos seus lábios excitantes e avermelhados, nos seus olhos em êxtase quando chocam com os meus e no calor em que nenhuma criatura sabe medir ou reter. Quando me vê, não sabe sobre seu poder perante meu corpo. Um mero homem perturbado. Loucura ocasionada pela beleza transcendental dessa moça catita. Traço planos e ideias para seus regaços. Nunca ouvira palavras descritas tão convenientes a esta moça. Quando me adentro na sua parte mais poderosa e íntima, onde tudo acontece, entrego-me ao turbilhão dos prazeres divinos e exuberantes, cobiço por mais, desejo tê-la no meu membro mais sutil e apetecível, julgo cada movimento de sua boceta único e conduzindo objetos de diversos tipos. Últimos suspiros prazerosos. Chamo-o assim. Deleite humano, gozo angelical. Eis o ponto em que tocamos o céu, recuperando nossas asas e elevando-se a um andar superior à imanência humana.

Por Eric Vieira
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domingo, 1 de julho de 2018

Julho do leitor: Podemos dizer que o amor existe ou ele é só uma palavra?

Podemos dizer que o amor existe ou ele é só uma palavra?

Uma vez, ao começar uma aula de Filosofia, perguntei aos alunos: “O que é o amor? ”. Um aluno de uns dez anos respondeu: “O amor é um substantivo abstrato. ” Esta fala daquele aluno me faz pensar até hoje. Será que podemos dizer que o amor existe ou ele seria apenas um nome? No segundo filme da trilogia Matrix, um personagem fala a Neo que o amor é uma palavra que possibilita uma conexão.  “E o verbo se fez carne e habitou entre nós”. A questão que se coloca para mim é que a nossa linguagem determina o nosso modo de enxergar o mundo, criando, também, um mundo artificial no qual vivemos como se fosse natural. A cultura - criação humana – nos faz dizer o que é certo e o que é errado, nos faz adquirir formas de ser e estar no mundo. Nesse contexto, como podemos dizer que encontramos um amor? Não seria o amor mais uma idealização criada na cultura para permitir relações sociais diferenciadas? Não seria o amor a nostalgia da alma que busca a plenitude na vida? Seria o sonho que preenche as carências emocionais que cada um possui? Podemos dizer que o amor existe ou ele é só uma palavra? O que significa um “Eu te amo”? Talvez o amor seja apenas uma palavra bonita no romance da existência. Talvez o amor seja uma palavra que permite um alívio para a condição humana de desamparo.

link do trecho de Matrix citado: https://www.youtube.com/watch?v=NQawiwYuLK0

Por Renan Soares Esteves
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