domingo, 22 de julho de 2018

Julho do leitor: O enterro

Apenas outro anjo. Anjo, anjinho, era assim que os adultos designavam as criancinhas que morriam. Fui naquele dia ao enterro do filhinho de Zé Pereira, o empregado do seu Freitas. O caboclo era forte, parecia não ter medo de nada, mas na ocasião estava desfeito, arrasado, quebrado, humilhado por aquelas lágrimas que não lhe caiam nada bem. Mas tinha-se que compreender, o homem estava enterrando seu terceiro filho.
    O sol já se punha e o calor, finalmente diminuía. As pessoas em volta da pequena cova faziam um reverente silêncio, somente a mulher de Zé Pereira o interrompia com soluços e gemidos. A mim, incomodava ver o anjinho receber terra no rosto. Por que não tinham feito uma tampa para aquele caixão? Será que Zé Pereira não tinha dinheiro suficiente para o homem da marcenaria? Talvez aquela situação trouxesse ainda mais tristeza ao coração da mãe.
    Quando a cova foi finalmente coberta, Zé ajoelhou-se e pôs uma cruz na terra fofa. Neste momento imaginei a ponta da madeira indo de encontro ao rosto murcho do anjo. Maldade! Deviam ter mandado fazer uma tampa para aquele caixão.
Areia no rosto do morto.
    As pessoas começaram a sair e eu fiquei para trás para conduzir os meninos. Chamei cada um pelo nome, puxei pela mão de alguns. Seguimos pelo meio das cruzes, com cuidado para não pisar e afundar nas covas rasas. “Não perturbe os mortos”, dissera Jacinto, o coveiro. O homem que todas as crianças temiam, inclusive eu. Ele era poderoso, só podia ser; há muito que convivia com os defuntos, os túmulos; zelava pelo cemitério, era senhor de tudo. Eu era apenas um intruso, as crianças ameaçavam desorganizar tudo por ali, estava receoso. Continuei reconduzindo os meninos, invadindo canteiros, pisando em restos de flores e sobressaltando ao fazer isso. Medo! Aquele era o lugar dos mortos e os mortos, segundo minha avó e outros adultos, tinham grande poder. Assustavam, faziam arrepiar, colocavam para correr homens valentes, detinham os segredos da morte, eram os donos das noites escuras, não temiam nem ladrões, nem coronéis; alguns chegavam mesmo a virar santos e serem transformados em imagens de gesso para serem reverenciados nos domingos, nas novenas.
    Fui ficando impaciente com aqueles moleques. Tive que correr algumas vezes, afundar os pés naquele chão imundo, contaminado por restos de gente. Outras vezes brincar, contra a vontade, de esconde-esconde por detrás daqueles túmulos e roseiras.
    - Passa, ô infeliz!
    Dava vontade de deixar aquela meninada lá. Virar-se-iam com as almas dos falecidos. Tinha certeza de que iam chorar de medo dos fantasmas. Já estava farto daquilo, eram-me suficientes os pensamentos que certamente me tomariam de assalto à noite. Pesadelos! Sentia desejo de chorar. Depois de ameaças, consegui fazê-los seguir a trilha certa. Agora o cortejo seguia longe. Tínhamos que andar um longo trecho sozinhos. Lá foi eu caminhar por entre tumbas e covas abertas. Em dado momento nos deparamos com gatos. Muitos deles: pretos, brancos, amarelos, cegos, mancos. Para mim todos demônios em forma de animais. Foi um dos meninos se agarrar a um deles e eu gritei exasperado. Como não podiam ter respeito, temor? Já não eram tão pequenos assim. Sabiam sobre mortos, histórias de almas penadas e diabos no corpo de gatos pretos.
    Aos poucos fomos nos aproximando dos adultos. Para meu alívio, deixamos para trás aquele lugar assustador e imundo onde pequenas construções com cruzes no topo apareciam esporadicamente. A maior parte do terreno era mesmo dominada por pequenos túmulos de crianças onde não havia muito o que pôr. Tinha a consciência de que aquele era o destino de todos, reverenciava a morte mesmo acreditando que estava longe de mim.
Mas o quanto longe?
    Naquela noite demorei a pegar no sono. Na minha cabeça só havia espaço para uma coisa: os medos, imensos e incompreensíveis daquele cemitério, enorme, sua paisagem, seus mortos e todo o seu fascínio.

Por Jorge Raskolnikov
Vivisseccao.blogspot.com

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