domingo, 26 de setembro de 2021

Ranhuras

Preencho esse espaço

com mais um pedaço de nada.
Encho ele com o vazio que estava em mim.
Em mais um regaço do meu avesso
me pego examinando as ranhuras do real.
Dos contrastes escancarados que ninguém vê.
Estampados na tv de led, nas manhãs de yoga e iogurte grego.
Nas noites de céu estrelado de traçante no Rio de Janeiro.
Preso em dilemas dimensionais da existência, examino a essência que ninguém mais sente. 
Tudo que encontro é angústia.
E a linha, cada vez mais indistinta, do bem e do mal.
Exercício hercúleo.
"Como o drible sem objetivo que se perde além da linha lateral".
E os espaços físicos ficam cada vez mais escassos.
Assinaturas digitais substituem momentos especiais.
Solenidades, reduzidas a QR codes
Não se ouve uma palma.
Na concha acústica sequer viva alma.
Apenas silêncio.
E está feito.
Outorgado mais um grau de imprestabilidade do sujeito 
que vê diante de si possibilidades tão próximas e tão equidistantes, inrreconciliáveis como os polos iguais de um eletroímã.
Resta tentar preencher o vazio dos outros
Para que, de alguma forma, pelo menos fique registrado
"Caso meu carro saia da estrada,
ou o avião que eu pegar decida que é meu último dia". Que quando você estiver só e assustado, não é só você que não está bem. Milhões de pessoas também não estão.
Pessoas infelizes e infelizes tem a mesma cara e se misturam na multidão de perdidos.
Mas como tudo que teve um começo, um dia esses dias encardidos encontrarão seu fim.

Já tem bastante tempo que não é apenas setembro que é amarelo. 
Mas o elo do ouroboros que une começo e final está próximo.
Em breve estaremos aptos a começar novamente.

Júlio César



domingo, 19 de setembro de 2021

Bike

Peguei emprestado o título do Syd Barrett para as artes da semana

Hoje eu tenho uma bicicleta 

E todo mundo pode ser feliz com ela

Livre para pedalar 

Vento no olhar

Pessoas pedalam eu e minha amada

Delicadezas acompanham o amor

Namorados na garupa 

Som de bikes livres

Pedalar um novo mundo 

Transporte urbano do futuro 

Perder-se na cidade com as próprias pernas 

Conectado com a cidade viva 

Desviar de cacos de vidro

Parar para passarem os passantes

Adrenalina da descida rápida 

Falta fôlego na subida 

Som das correias paradas e bike andando

Som do sininho na mão 

Olho as pessoas no olho elas me olham e vibram a mesma paixão 

Elas olham pra mim na bike também 

Feliz estão por passar em cada rua e suas saídas

Em cada alameda e suas avenidas

A cidade é um pátio de brincar 

Eu tenho uma bicicleta você também 

Eu tenho uma bicicleta e posso não parar 

Melhor remédio pro mundo não há: ter uma bike e pedalar 

Eu tenho uma bicicleta

E agora posso escrever sobre ela

Você pode dar voltas comigo e eu com você 

E o mundo pode ser diferente 

Com bicicleta todo mundo é criança 

Quem constrói o novo é a infância 

Eu tenho uma bicicleta e todo mundo pode ser feliz com ela 

Eu tenho uma bicicleta e sou criança 

Não canso nunca nela 

E a vida é mais feliz

Toda esperança tá nela

Eu tenho uma bicicleta e toda minha coragem tá nela

Eu amo os navegantes 

Eles têm bicicletas e todos dão voltas nelas

Sem rumo ou com rumo

A brincadeira é ter uma bicicleta

O fato é

Nunca vi ninguém que bicicleta tivesse e feliz não fosse


domingo, 12 de setembro de 2021

O fascismo e sua máquina de produzir ódio

  A sombra do fascismo continua circundando os corpos dos seres contemporâneos em nossa sistêmica sociedade de massa. Ele é fruto do corpo social industrialmente produzido em larga escala, do pensamento subjetivado, da linha de produção e sua vida enlatada. Por que movimentos fascistas não existiram em outros períodos históricos? O fascismo pressupõe um amontoado de indivíduos autômatos que sejam capazes de seguir ordens simples. Qual a maneira mais fácil de conseguir tal feito? Através do afeto irrefletido, imediato e moralmente básico, empatia reproduzida tecnológica e esteticamente.

Junto a toda reprodução técnica estetizante que sobrecarrega o sensorial humano, vinculada à produção de rebanhos coletivos, nos deparamos com um fenômeno das metrópoles oníricas, cidades iluminadas que retiram da terra as demarcações espaciais, construindo novos ambientes pluridimensionais que distorcem o tempo em um mundo de sonhos. O sonho do porvir, o sonho do progresso, da salvação, do paraíso, da moral pura e santa, totalizam os sonhos brancos, masculinos, héteros, cristãos, de consumo do capital.

Há perigo hoje do fascismo? A sombra do fascismo sempre existirá enquanto vivermos em uma estrutura social que garanta materialmente a produção em massa de indivíduos facilmente planejados, escalonados. O fascismo sempre trabalhará com ideias simples e claras, elas podem ser facilmente assimiladas e transmitidas por máquinas informativas, produtoras de afetos pré-fabricados.

Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 5 de setembro de 2021

Amortesalva

Tava lá pintado no muro.Em uma foto. Do Instagram.

Num muro de São Paulo. 

Nunca passei por lá, ainda assim me senti presente.

Porque a arte saiu da parede da foto, de repente.

Cruzou a divisa dos estados, mais rápido que qualquer avião. A tinta não foi suficiente pra segurar a sede. Ela vaga, na velocidade axônica. Como um parasita, procurando um coração hospedeiro.

Em dias estranhos, em que o silêncio  tem sido o melhor amigo, a arte é o estampido da bala do canhão, uma orquestra sinfônica, a ressoar na mente mais relapsa.

Palavras pintadas que cortam como faca o lobo frontal.

Colapsa o metabolismo basal do cerebelo.

Descompassando o ritmo do mediastino centrado.

E a dúvida? Amor ou morte? 

Sorte! De  perceber, sem nunca sequer ter ouvido o som que ela produz, no rolar da tela, numa foto, num muro, uma frase que até agora martela o juízo...um arranjo sintático com efeito lisérgico



Tava lá, pintada num muro, por alguém que eu não sei quem é, em uma foto tirada por alguém, não sei quem foi. E nem importa... Como uma flecha torta ricocheteou e bateu em mim.

 

Lá pintada, num silêncio que agora fala tanto na minha alma.

E tem gente que fala fala e não diz nada.


Amortesalva!


A arte também.

Júlio César Barboza