domingo, 29 de novembro de 2020

Velho mundo

Hoje, acordei procurando algo novo

Na esperança do diferente me deparei com o mesmo

Vasculho o velho baú encostado no porão

Dentro, empoeiradas lembranças do sempre igual


Onde está a diferença que tanto procuro?

Onde habita o novo, em mim ou no mundo?


O novo me vem no velho que me habita


Paulo Victor de Albuquerque Silva


domingo, 22 de novembro de 2020

Diafragma

De onde surge a poesia?
É a pergunta da vez. 
Com quantos anos você fez seu primeiro poema?
Viu na linguagem o primeiro problema entre sentir e dizer?
Respondo que,
como o canto da voz,
como o vento assobia,
como água da foz,
ela "brota no bailão."
Como o regurgitar,
involuntário,
daquilo que não se consegue segurar, um transbordar que se finda no alívio da expressão.
Sem pressão,
feito respiração diafragmática,
ocorre sem que percebamos.
Ray Bradbury disse certa vez que "o homem precisa ter algo para fazer, caso contrário sente-se inútil" deve-se, nestes momentos, lembrá-lo de que existem outras coisas. Lembrá-lo "da honestidade, beleza e poesia que se perdeu pelo caminho."
Aquilo que se fez verbo, possível foi somente por parar para observar na contramão da repetição técnica.
"Homens ativos rolam tal como pedra conforme a estupidez da mecânica."
Camus diz que isso acontece pois:
"Adquirimos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar. Nessa corrida que todos os dias nos precipita um pouco mais para a morte, o corpo mantém esta vantagem inalterável."
Por isso é importante,
que uma vez ocorrido o rompante,
é preciso treinar o olhar, para ver adiante,
tal como se treina o diafragma.
Dar atenção à beleza colateral.
Nela pois, reside a poesia,
na fantasia de sonhar acordado,
de olhar de lado e enxergar, 
por entre as frestas da rotina,
no reflexo da piscina,
durante a sabatina do professor,
o arranjo de palavras, usadas todos os dias, 
ordenadas de tal forma,
como o retumbar de uma metralhadora,
que atinge diretamente a alma,
lembrando o homem daquilo que  criança nunca esquece.
Pois pode ser que no fim das contas,
a junção de todas as pontas, 
a resposta de todas as somas que fazemos em nossa cabeça, 
é de que o sentido da vida é sentir e não pensar.
Expressão,
concretização da impressão.
A tantas pressões somos expostos. Mas é justamente da contramão que nasce a poesia,
da mesma fonte da filosofia que responde a teimosia do corpo em existir e questiona o motivo.
Mas também pelo que foi sentido na pele, nos olhos, nos ouvidos.
Reflexão,
reagir a uma ação.
Como o respirar. 
Relaxar.
E assim, o que começa como um tatear no escuro,
um sapatear no desconexo,
toma forma de sentimento que não cabe em nenhuma gramática.
A muitos porquês atribui-se a causa poética, ao absurdo, ao avesso,
a estar perto do fim,
ou logo no começo,
a resistência,
a essência e a beleza,
até mesmo ao estranho.
Gostaria pois, de adicionar a estes ganhos, o diafragma.
Ele está em todos nós,
move-se silencioso, sem que notemos. Involuntariamente,
tal como ouvimos o silêncio,
como enxergamos a escuridão e consertamos o que quebrou.
Está lá!
E uma vez que passamos a percebê-lo, podemos usá-lo sempre que julgarmos pertinente.

Júlio César 

domingo, 15 de novembro de 2020

Pus

"Fugi do mau cheiro. Fugi da idolatria dos supérfluos. Fugi do mal cheiro. Fugi da fumaça desses sacrifícios humanos. 
Ainda agora a terra está livre para as almas grandes. Vazios estão ainda, para os solitários e os sozinhos a dois, muitos lugares em torno dos quais corre o cheiro dos mares quietos. Ainda está livre, para as almas grandes, uma vida livre. Na verdade, quem pouco possui, tanto menos será possuído: louvada seja a pequena pobreza."
(NIETZSCHE em Assim Falou Zaratustra ) 

A poesia tornou-se um pus da sociedade, anunciando que há uma luta interna entre a cura da doença que a gente vive. Sinalizando a luta do corpo doente. Anunciando a ação de um anticorpo. No futuro, verão esse século e falarão: "Eles eram isso e isso, eram uma transição entre tal e tal coisa”, como sempre fazem os historiadores e acrescentarão: “Mas aquele século era o século onde a arte se disseminou para qualquer um. A Áurea por trás do artista apagou-se e deu lugar ao artista que havia em cada um, porque seu tempo sufocava um por um. Eram seres expressivos por excelência que não queriam deixar sufocar a vida que 
levavam. Tinham turismos acessíveis, viajavam em vários cantos do mundo, tinham informações para saber sobre qualquer tempo de qualquer lugar e época, mas algo sufocava aquele século pelo qual eles tinham que expressar artisticamente sem serem artistas 
consagrados." 
Então pergunto-me hoje: seremos nós a efetivação do triste eterno retorno? Sou uma espécie de Nietzsche não germinado? Um tipo de Spinoza corrompido? Incapaz de operar qualquer mudança na forma de concepção dessa realidade de ‘panem et circenses’? Um decrepto incrédulo e fruto de uma sociedade abortiva que me desceu pelo ralo? “Fugi do mau cheiro”, mas ele não se foi totalmente. Permanece entranhado cada vez que tento me comunicar... E quanto mais passo o rodo da língua, mais sujeira eu vejo que me cerca. Sou o peixeiro que se lava compulsivamente após o expediente e ainda assim não cheira bem. Por hora me concentro em passar o sabão da forma mais intensa que consigo. Que minha tentativa de ser diferente não me leve a uma igualdade qualquer. 

Jayme Mathias & Júlio César 

domingo, 8 de novembro de 2020

Poesia ruim

Não sei escrever uma poesia que preste

Nem minha mãe elogia

Ainda insisto escrevendo, pensando, rimando

É gostoso compartilhar meu infortúnio


Acho mesmo pretensioso chamar isso de arte

Até chego a me preocupar com uma vírgula, pontuação, peço a ajuda de um amigo

Mas é só pra confirmar o inevitável

“Tá uma porcaria”


Cansei de tentar escrever bem

De onde vem sua inspiração? Perguntam

Da mosca que atazana minha cabeça

Respondo me coçando


Vocês já se perguntaram o quanto é difícil escrever algo bonito?

Por isso prefiro o ridículo

Esquisito, medonho, grotesco...enfadonho

Tentar ser bom cansa


Melhor do que a boa escrita é admitir minha falha, a incongruência e ruindade que habitam em mim. A poesia sonoramente inferior é aquela que fere o ouvido, que arde o olho, que fadiga, que causa nostalgia.

Sim!

Nostalgia…

Nos deixa com saudades da boa poesia

Do mundo dos sonhos que se abre na linguagem

Que faz da língua portuguesa um parceiro de dança

Ao som do silêncio que repousa nas páginas e os sinais das palavras cravadas em nossa pele.

Nas extremidades do meu corpo, encontro o limite da boa poesia

Assisto o fracasso do escrito cuidadosamente amparado pelas páginas

Sinto vividamente o sentimento mais puro e honesto dos últimos dias

Me encerro compartilhando a mais doce e velha nostalgia.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

domingo, 1 de novembro de 2020

Ozymandias

Adrian, altivo, observa de cima de seus ombros bem postados a humanidade em decadência. Tanto tempo se passara e ainda assim quase nenhuma ruga denunciava seus dias. Não fosse a mecha de cabelo prateada, partindo do topo da fronte e descansando serpeante parietalmente, atrás da orelha, lhe diriam ter seus vinte e poucos anos. Sempre bem tratado pelos cativos que enfileirou aos pés do seu intelecto, das mais diversas etnias, religiões e filosofias, ele bebeu. Absorveu o que dinheiro nenhum, mesmo os seus bilhões o proporcionaram. Empírico, se inspirou em grandes conquistadores, atraído por suas perfeições estratégicas. Alexandre, Ramsés, com os quais sonhava e se inspirava, mas que após conhecer detalhadamente suas trajetórias, regurgitou os anseios ao ver o quão pequenos eram e o quanto os livros tinham sido para eles enormes lentes de aumento. Agora suas imperfeições o fascinavam ainda mais. Questionava o que teriam feito esses homens de bom para serem tão honrosamente retratados, por matar e escravizar, por ter em suas mãos culturas e povos desmanchando-os como esculturas de argila. "Esses--refletia ele com desdém-- são os maiores exemplares da humanidade", almejava chegar em outro patamar, construir para si a hegemonia perfeita. Em contramão, era concomitante o quão às vezes pegava-se no introverso cotidiano dos comuns e os observava inquerindo como idiotas erráticos conseguiam errar de novo e de novo e continuar errando depois disso? Como tartarugas a escorregar no lodo da saída do lago e voltar ao fundo para tentar tudo novamente. Mas é do feitio da própria existência que genialidade alguma, de grande homem qualquer, por maiores que sejam suas conquistas, consiga superar o inato. Como que num giro do plot, o destino colocou Adrian junto ao joio do qual tentara a todo custo se separar, quando murmurava repetidamente para si e seus cativos: "Meu nome é Ozymandias rei dos reis, contemplem minhas obras ó poderosos e  desesperai-vos." Adrian julgou que o conhecimento ultrapassa o tempo e o tempo daquilo que ele julgava saber passou e transformou tudo ao seu redor. Como numa espécie de círculo perfeito. Seu Q.I rapidamente assimilou que o tempo engole tudo, até mesmo a certeza científica, fazendo o mais inteligente ser o mais tolo por não ter percebido o simples giro de um ponteiro.
Já com ombros nem tão altivos assim, Adrian se viu espatifado. Dos seus pedaços, sobrou a cara não mais astuta, mas resignada. Em cacos diante de seus próprios pés, repetia seu mantra com os lábios quebrantados em meio aos gentios, que aos poucos sumiram dali deixando Adrian soterrar-se lentamente no próprio deserto de solidão quase inabitável, exceto para si e seu fabuloso ego.
Pouco antes do oblívio, sua mente mesmo convalescendo, em um relance de acuidade, entendeu tarde demais que, defronte ao tempo, a verdade se torna mentira, o absoluto vira relativo, uma quimera é louvada de sensatez, e impérios de reis viram o caos do tolos. 
Que "homens gostam muitíssimo de construir e pouquíssimo de preservar"
E o que um dia fora fidúcia da imponência, hoje se esvai distante na narrativa fantástica de um viajante de terras antigas que certa vez se deparou com "duas imensas e destroncadas pernas de pedra erguendo-se no deserto... e no pedestal apareciam essas palavras: "Meu nome é Ozymandias rei dos reis, contemplem minhas obras ó poderosos e desesperai-vos."
De quase tudo que se vai, o que permanece nos lembrando volta e outra é que, seja pelos olhos de Shelley, ou de Smith, seja nos reinos de Alexandre, Ramsés, ou até mesmo o do impetuoso Adrian, é que todos os impérios caem.

Até mesmo os da mente.

Júlio César