domingo, 25 de fevereiro de 2018

Remoto controle

...ligar
Pode-se ver o borbulhar ácido dentro do copo gelado
Bolhas de ácido que flutuam para fora do copo escorregam pela superfície de vidro
Do copo ao corpo, escorregam pelas costas. Arrupio da alma
Dilatam-se os corpos e seus poros. A bolha engole o corpo e flutua
Os poros pairam na imensidão. Com seu pólen germina vida
A vida pulsa nos micro-pólens e suas alamedas da perdição
As encruzilhadas da existência recebem as oferendas da alucinação
Com o olho se enxerga o som que a poeira cósmica faz
A harpa do desejo transpira uma dissonante no ar
Aérea é minha solidão, flutuo sobre os montes, agarro-me à escuridão
Mas eis que a força fez comigo o que ela sempre faz
Arrastou-me da corda bamba que me suspendia acima do abismo de mim
E caí
Desligo…

Paulo Victor Albuquerque
Vivisseccao.blogspot.com

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Vícios do meu Eu

Destoo, à toa de uma conversa filosófica.
Refugo, a fuga de uma realidade em que o Eu é medida para tudo.
Escoro, na escória do pior que posso ser.
Inspiro, piro quando encontro os vampiros do discurso.
Absorto, surto com a inadaptabilidade do pensamento com os meus.
Exclamo, clamo para que escolham a pílula vermelha.
Admito, que há de mito em mim muito mais do que verdade.
Escravo, escrevo a minha carta de alforria, poesia que liberta a mediocridade da alma.

Por Júlio César Barbosa
vivisseccao.blogspot.com

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Na escola a gente só aprende a fugir

- Filhinho faça a mochila!
- E agora?
- E agora, tome banho.
- E agora?
- E agora, se arrume.
- E o agora?
- E agora, venha tomar café.
-E o agora?
- Agora, meu queridinho vai pra escola. Aprender pra quando crescer ser alguém, né?
- Aprender?!
....

- Zequinha meu filhinho, como foi na escola? A professora disse que meu filhinho tá distraído, sozinho no canto, sentando longe dos coleguinhas.
- É! Eu sento na janela.
- Na janela é? Você gosta de lá?
- Gosto!Eu fico vendo os passarim, o sol nas planta e a formiguinha feliz.
- E a aula meu minino!?
- Eu num gosto não. Só vejo boca movendo, mão escrevendo. Parece uma ruma de morto-vivo, que tenho medo.
- Medo meu filho?
- É. Medo ... num quero ser eles. O que olho na janela é mais bonitim. Mas mãe e agora tamo indo pra onde em?
- Agora cê vai pra aula de inglês. Aprender a falar outra língua pra ter futuro.
- Futuro?!
...

- Zequinha meu filho, no inglês a professora disse que cê olha vazio pra ela. Tu num tá gostando não é? Num tá entendendo? Ta imaginando o que ela diz né?
- Tou mãe, mas é que sei lá. A sala num tem janela pra onde fugir. Fico imaginando até a aula acabar. Aula chata, nam!
- Imaginando o que filhinho?
- Os passarim, o sol nas plantas, a formiguinha feliz e eu lá na frente desses morto-vivo. Queria era fugir.
- Fugir meu filho? Fugir pra onde?
- Sair pra longe daquela sala chata mãe. Mas me diz, e agora eu vou pra onde?
- Agora vai pra natação. Vai se movimentar um pouquinho pra crescer bem muitão.
- Crescer?!
...

- Zequinha meu filho, o professor disse que você tá crescendo, mas não quis nadar hoje.
- Foi nada mãe, eu ainda sou pequeno e quero ficar pequeno, bem pequenino queria encolher toooooodim. O prof. ficou me perguntando o que eu ia ser quando crescer.
- E o que meu filhinho disse?
- Que num ia crescer. Ele disse que a escola prepara pro futuro. E perguntou que matéria eu gosto mais.
- Que que cê disse?
- Nenhuma, eles num ensinam nada! Ninguém me ensina nada!
- Filhinho! Ele tá certo tem que estudar pra ter futuro. Crescer é tão bom...
- Sei lá, quando cresce cês ficam assim meio morto-vivo... Eu prefiro num ter futuro.
- Não. Vem cá, me dá um abraço. Que que há? Que meu fi é assim tão caladim. Meu fi vai ser grande.
- Mamãe eu quero ser criança pra sempre! Do jeito que sou!
- Ah é?
- É, porque pelo menos sei que vivo. Vocês grande tão tudo morto. Te pergunto faz é tempo e o agora quando é que vivo e você nunca responde. Nessas aulas só vejo vida da janela e só me ensinam que tenho que ser grande. Só me ensinam a fugir. Parece que tou num filme de zumbi.

Zequinha sai correndo até o mato perto de casa, por pouco tempo sabe que vive igual as plantas, o sol batendo e a formiga feliz. Quando sua mãe lhe acorda:
- Filho, faça a mochila. Hoje vamos à  psicóloga.

Por Jayme Mathias Netto
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domingo, 4 de fevereiro de 2018

Análise de um abandono

A paciente N era uma incógnita para o analista Erasmus. Ele já era o quinto especialista que tentava solucionar aquele grande ponto de interrogação orgânico sobre duas pernas. Através dela foi obrigado a conversar com um ânus, um anel que naquele instante expelia o eterno retorno da insanidade.
“Eu vi o espelho derretendo. Coloquei o dedo nele. Meu dedo derretia.” Ele anotava tudo o que ela dizia. “O espelho derreteu meu rosto. Não. Eu derreti o espelho.” O analista se derreteu em tinta. Correu pela folha de papel.
Outro dia Erasmus encontrou a paciente N encostada e imóvel em uma estrutura de ferro que se encontrava dentro do sanatório, ele tentou se comunicar com ela esperando alguma reação ao seu monólogo. Ele não conseguiu compreender que ela agora era o aço.
Tantos anos fazendo análise, tantos anos de estudo e no auge de sua carreira brilhante não consegue ter forças para fazer o que mais ama. “O senhor ler mentes doutor”, afirma N olhando para ele, “o problema é que não tenho uma”. Claro que Erasmus sabia que aquilo era apenas uma tolice de uma esquizóide. “Sabe doutor, o meu único problema é que eu não me deixo levar pela sanidade, mas ninguém quer aceitar isso.”
Na verdade Erasmus precisava de algum modo vislumbrar o que N sentia. Então, desceu até o pátio e se encostou na estrutura de ferro. Lá ficou. Pouco tempo depois N passou e não o viu. Uma explosão emotiva borbulhou dentro dele, estava invisível. Lembrou de quando era criança se escondendo detrás da porta e se transformando em madeira, corpo palpitante na esperança de jamais ser encontrado. Agora era o Erasmus de aço.
Pouco tempo depois lembrou do que N havia lhe dito, e com a serenidade daquele que analisa decidiu desistir da sanidade.

Por Paulo Victor Albuquerque 
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