domingo, 4 de fevereiro de 2018

Análise de um abandono

A paciente N era uma incógnita para o analista Erasmus. Ele já era o quinto especialista que tentava solucionar aquele grande ponto de interrogação orgânico sobre duas pernas. Através dela foi obrigado a conversar com um ânus, um anel que naquele instante expelia o eterno retorno da insanidade.
“Eu vi o espelho derretendo. Coloquei o dedo nele. Meu dedo derretia.” Ele anotava tudo o que ela dizia. “O espelho derreteu meu rosto. Não. Eu derreti o espelho.” O analista se derreteu em tinta. Correu pela folha de papel.
Outro dia Erasmus encontrou a paciente N encostada e imóvel em uma estrutura de ferro que se encontrava dentro do sanatório, ele tentou se comunicar com ela esperando alguma reação ao seu monólogo. Ele não conseguiu compreender que ela agora era o aço.
Tantos anos fazendo análise, tantos anos de estudo e no auge de sua carreira brilhante não consegue ter forças para fazer o que mais ama. “O senhor ler mentes doutor”, afirma N olhando para ele, “o problema é que não tenho uma”. Claro que Erasmus sabia que aquilo era apenas uma tolice de uma esquizóide. “Sabe doutor, o meu único problema é que eu não me deixo levar pela sanidade, mas ninguém quer aceitar isso.”
Na verdade Erasmus precisava de algum modo vislumbrar o que N sentia. Então, desceu até o pátio e se encostou na estrutura de ferro. Lá ficou. Pouco tempo depois N passou e não o viu. Uma explosão emotiva borbulhou dentro dele, estava invisível. Lembrou de quando era criança se escondendo detrás da porta e se transformando em madeira, corpo palpitante na esperança de jamais ser encontrado. Agora era o Erasmus de aço.
Pouco tempo depois lembrou do que N havia lhe dito, e com a serenidade daquele que analisa decidiu desistir da sanidade.

Por Paulo Victor Albuquerque 
vivisseccao.blogspot.com

2 comentários:

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