domingo, 13 de fevereiro de 2022

O pequeno entrave.

  Em uma dessas cidades antigas, perdidas no sudeste brasileiro, lembrei-me de um conto passado e longínquo, quase sem dono. Ruas de pedras batidas, casas coloniais com fachadas espessas e firmes. Templos carregados com o peso do tempo, cheios de histórias disseminadas em suas paredes e ruelas. O chão da cidade é sedento por aquilo que mais bebe, morte e vida. A multidão que nela caminha passa, ao seu ritmo, sobre os trajetos das eras, rumo ao esquecimento das ruas. Como em toda memória, a cidade colônia é lembrança e esquecimento. Suas casas, templos religiosos e narradores guardam o tempo, enquanto a rua da modernidade transpassa, mira o firmamento distraído.

Senhor Francisco, 57 anos. Apanha todas as manhãs o mesmo ônibus de ida e volta ao museu da cidade, onde trabalha há 26 anos. Desce em frente a praça principal, dobra na ruela do esquecimento (Júlia Augusta), assim chamada por ser pouco habitada. Decai a ladeira da vigília e finalmente chega a morada histórica da rememoração colonial. No trabalho sempre foi atento e prestativo, tem orgulho de ser historiador reconhecido e certificado pela comunidade, sustentando a alcunha de seu título, materializada por uma visita de um presidente português à sua cidadela no fim dos anos 90, onde foi porta voz da história viva narrada de seu povo, ato que lhe rendeu um broche lusitano. Xico, como gostava de ser lembrado, almoçava todas as tardes num antigo restaurante a 203 anos acomodado diante à igreja que inspirou seu nome. Comunicativo, amava conversar com os turistas, principalmente os curiosos, que por vezes conseguiam reaver, nos cômodos mais profundos, as obras adormecidas em seu corpo museológico. Claro, nem sempre o seu labor era assim, na maior parte do tempo recebia turistas mecanicamente automatizados, o que lhe exigia formular respostas enlatadas.

Retornando para casa, próximo ao fim de tarde, passou pelos variáveis e desconhecidos mendigos que se acomodavam na ruela do esquecimento, já que lá conseguiam o devido descanso da invisibilidade programada, do frio e da fome, debaixo de seus cobertores. Majoritariamente eram tipos variáveis pois, nômades, descartáveis, solúveis. Para Xico os indigentes que dormiam na ruela do esquecimento eram uma parte triste da história de sua cidade. Enquanto caminhava pela via, agora noturna e congelante de inverno, seguindo em direção ao ponto de ônibus, pensava o quanto deveria conversar com aqueles que lhe foram negados à história, que somente tinham o seu lugar às portas dos museus. Infelizmente, ao meio do percurso, teve um mal súbito e caiu, sozinho. Sem forças para se levantar decidiu dormir no chão, numa calçada pertencente a um casarão com mais de dois séculos de tempo. Esperou, imóvel, mas manteve-se leve pois dormia sob o mesmo céu de sua infância, no mesmo chão, repousando sobre a fronha de sua cidade.

No outro dia tudo igual. Carros passavam, cachorros, crianças, senhoras, mendigos. Todos miravam o futuro e seguiam na corda bamba à espera do abismo. Xico, adormecido, aguardava. Desviava o fluxo da calçada, mas mantinha-se imóvel, resiliente. Permaneceu deitado o fim de semana inteiro. Na segunda-feira, por um descuido, logo pela manhã quando todos devem retomar seus afazeres produtivos, teve o repouso interrompido por um dos pedintes da travessa com um leve cutucão nas costas. Seu chamado nunca foi atendido.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.


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