Tinha no ônibus um carinha que dizia
Eu podia tá matando
Eu podia tá roubando
Ele dizia o resto que rimava muito bem
E quem sabe conhece
Mas vou pegar só esse trecho
Eu podia tá matando
Eu podia tá roubando
E nesse ritmo penso
Eu podia está fazendo isso e aquilo
Eu podia tá resolvendo as coisas da minha carteira de
motorista
Eu podia tá adiantando um trabalho que não tem prazo, mas o
cliente só paga quando eu terminar
Eu podia tá dando um jeito da grana entrar mês que vem sei
que tem pouca ou quase nada
Eu podia tá estudando a fundo um assunto filosófico do meu
interesse
Eu podia tá vendo um novo ap para me mudar
Eu podia tá publicando um artigo acadêmico
Eu podia tá traduzindo um artigo para publicar
Eu podia tá dando uma volta na cidade
Eu podia tá andando de bicicleta
Eu podia tá planejando ter filhos
Mas, pasmem, tou justamente pensando em todas elas e
escrevendo sobre elas
Nada disso tem nada a ver com vivê-las
Nada disso tem nada a ver com fazê-las acontecer
Mas simplesmente não faço nada delas
E escrevo sufocado por pensar em fazê-las
Admirado com a capacidade da memória em saber de cor tudo o
que tem que ser feito e que justamente não faço
Ela parece até que é inimiga da preguiça que tanto sinto
agora
Tenho preguiça, falta de ânimo e nada me motiva para fazer o
que listei acima
Talvez porque realmente não faça sentido
Nunca planejo futuros, nunca os vejo, nunca os vi, o que
faço acontece e o que acontece nesse momento é o texto
Um texto que alivia uma memória cansada
De tanto lembrar essas coisas, esses ciclos
Quando se escreve, as conexões se tornam elásticas
Mas nunca vou me entender
E até cansei disso, cansaço e preguiça é o padrão e a norma
de toda a minha escrita
Um século da atividade, não obstante cercado de uma pandemia
A memória sanguessuga de mim
O texto sanguessuga da memória
As palavras sanguessugas do texto
E eu querendo sarar tudo isso
Aprendi a escrever para fazer sarar
Foi cedo, bem cedo na infância que queria escrever história
quando li meu primeiro livro
Os Pequenos Jangadeiros de um tal Padilha
Li não, foi meus pais que leram para mim
Eu tinha e sempre tive a tal da dislexia pedagógica
Pra eu me centrar numa frase qualquer dói até as pernas
Quem tem sabe como é
Tá vendo isso? A memória vai ativando outras coisas
O que gosto da escrita é isso, ela vai fazendo a memória
puxar os fios
Ela vai fazendo a memória ser outra coisa que não cobrança
É como se a memória tirasse férias da mente
Porque sou pensador, minha profissão nunca para, nem que num
tenha nada a ver com pensar filosofias
Se não encontro no mundo ou nas pessoas os problemas,
encontro em mim mesmo
Mas na verdade invento, porque nada disso existe
Nem a filosofia existiria se não fosse essa coisa de sarar
por meio de textos e memórias
Quando conheci os filósofos de perto percebi, cada um deles
tinha essa agonia que sinto
Essa dislexia com o próprio tempo, uma falta de ritmo, uma
falta de rima com o que vive
A memória de todo filósofo encheu o saco daquele cérebro até
ele ir lá e fazer o texto, de novo a memória tirava férias
Ou mesmo a fala
É só ver Sócrates e seu Daimon
Cristo e seus apóstolos, a memória deles cansou e tirou férias
Se Sócrates não falasse ia ficar doendo a perna dele o dia
todo
Jesus também, por isso nem um dos dois escreveu
Igual dói a minha pra me concentrar numa tarefa como aquelas
que listei acima
Tarefas que dão preguiça
É muito interessante essa tarefa de desopilar a mente com
outras memórias
A mente de férias
Acho que comecei a filosofar porque minha mente queria essas
férias forçadas
As férias da mente é quando ela ganha força para pensar por
conta própria
Tanto é que a metafísica é a produção mental mais criativa
da filosofia
Ou o filósofo cria uma metafísica ou aceita a do seu próprio
tempo
A do nosso tempo é mercado, política e capital
Nunca mudou muito
Mas há várias outras
Porque é só a mente não se satisfazer com isso que ela vai
atrás de outras e, se não acha, cria rápido
E pega aquele corpo, se apossa, faz filosofia nele e bota
para escrever
Se tenho uma filosofia é porque acabei de descobrir e é essa
A mente que se apossa de tudo como um Daimon
É ligeiro a forma como se expressa, mas devagar sua
insistência
As ideias insistem como escorpiões sorrateiros, vão
acumulando e aprimorando veneno
Até que chega um dia que a mente cansa deles e arrasta para
o texto tudo o que tem que dizer igual a um carneiro de chifres galopando para
atacar o oponente
Ele tem que encher de ar os pulmões e fazer na máxima
velocidade nas pernas, com os chifres e o restante do corpo pronto para aquele
instante depois de anos de vida
Esse texto foi desse jeito e todo texto é
De uma forma ou de outra, essas férias da mente acontecem porque
ela fica brava com os pensamentos
Todo Daimon é assim
E vejo que com quase tudo na vida sou assim
Então tudo isso é só coisa minha
Que talvez sirva para outra pessoa também
Vai que as almas batem igual dois carneiros de chifre
Se não bater, podem tomar emprestado ao menos a necessidade
E sou assim com tudo na vida, acumulo um pouco depois vou lá
e bum, resolvo duma vez com perfeição e maestria ou de pouco em pouco para dar
certo
Quando é difícil vou de pouco em pouco pelo mais fácil
Quando é fácil é bum atrás de bum
E agora o que cansou foi o texto em si
Que já tem ar de despedida
Ele já vai e só volta quando tudo isso de volta ocorrer
Mas talvez volte logo, porque, apesar de tudo, sinto que não
sarei
Ainda penso no que tenho que fazer e nisso e naquilo que me
falta
Por isso que dizem por aí que filosofia mesmo não morre
nunca e num serve pra nada
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