domingo, 25 de setembro de 2022

Havia

 Tinha no ônibus um carinha que dizia

Eu podia tá matando

Eu podia tá roubando

Ele dizia o resto que rimava muito bem

E quem sabe conhece

Mas vou pegar só esse trecho

Eu podia tá matando

Eu podia tá roubando

E nesse ritmo penso

Eu podia está fazendo isso e aquilo

Eu podia tá resolvendo as coisas da minha carteira de motorista

Eu podia tá adiantando um trabalho que não tem prazo, mas o cliente só paga quando eu terminar

Eu podia tá dando um jeito da grana entrar mês que vem sei que tem pouca ou quase nada

Eu podia tá estudando a fundo um assunto filosófico do meu interesse

Eu podia tá vendo um novo ap para me mudar

Eu podia tá publicando um artigo acadêmico

Eu podia tá traduzindo um artigo para publicar

Eu podia tá dando uma volta na cidade

Eu podia tá andando de bicicleta

Eu podia tá planejando ter filhos

Mas, pasmem, tou justamente pensando em todas elas e escrevendo sobre elas

Nada disso tem nada a ver com vivê-las

Nada disso tem nada a ver com fazê-las acontecer

Mas simplesmente não faço nada delas

E escrevo sufocado por pensar em fazê-las

Admirado com a capacidade da memória em saber de cor tudo o que tem que ser feito e que justamente não faço

Ela parece até que é inimiga da preguiça que tanto sinto agora

Tenho preguiça, falta de ânimo e nada me motiva para fazer o que listei acima

Talvez porque realmente não faça sentido

Nunca planejo futuros, nunca os vejo, nunca os vi, o que faço acontece e o que acontece nesse momento é o texto

Um texto que alivia uma memória cansada

De tanto lembrar essas coisas, esses ciclos

Quando se escreve, as conexões se tornam elásticas

Mas nunca vou me entender

E até cansei disso, cansaço e preguiça é o padrão e a norma de toda a minha escrita

Um século da atividade, não obstante cercado de uma pandemia

A memória sanguessuga de mim

O texto sanguessuga da memória

As palavras sanguessugas do texto

E eu querendo sarar tudo isso

Aprendi a escrever para fazer sarar

Foi cedo, bem cedo na infância que queria escrever história quando li meu primeiro livro

Os Pequenos Jangadeiros de um tal Padilha

Li não, foi meus pais que leram para mim

Eu tinha e sempre tive a tal da dislexia pedagógica

Pra eu me centrar numa frase qualquer dói até as pernas

Quem tem sabe como é

Tá vendo isso? A memória vai ativando outras coisas

O que gosto da escrita é isso, ela vai fazendo a memória puxar os fios

Ela vai fazendo a memória ser outra coisa que não cobrança

É como se a memória tirasse férias da mente

Porque sou pensador, minha profissão nunca para, nem que num tenha nada a ver com pensar filosofias

Se não encontro no mundo ou nas pessoas os problemas, encontro em mim mesmo

Mas na verdade invento, porque nada disso existe

Nem a filosofia existiria se não fosse essa coisa de sarar por meio de textos e memórias

Quando conheci os filósofos de perto percebi, cada um deles tinha essa agonia que sinto

Essa dislexia com o próprio tempo, uma falta de ritmo, uma falta de rima com o que vive

A memória de todo filósofo encheu o saco daquele cérebro até ele ir lá e fazer o texto, de novo a memória tirava férias

Ou mesmo a fala

É só ver Sócrates e seu Daimon

Cristo e seus apóstolos, a memória deles cansou e tirou férias

Se Sócrates não falasse ia ficar doendo a perna dele o dia todo

Jesus também, por isso nem um dos dois escreveu

Igual dói a minha pra me concentrar numa tarefa como aquelas que listei acima

Tarefas que dão preguiça

É muito interessante essa tarefa de desopilar a mente com outras memórias

A mente de férias

Acho que comecei a filosofar porque minha mente queria essas férias forçadas

As férias da mente é quando ela ganha força para pensar por conta própria

Tanto é que a metafísica é a produção mental mais criativa da filosofia

Ou o filósofo cria uma metafísica ou aceita a do seu próprio tempo

A do nosso tempo é mercado, política e capital

Nunca mudou muito

Mas há várias outras

Porque é só a mente não se satisfazer com isso que ela vai atrás de outras e, se não acha, cria rápido

E pega aquele corpo, se apossa, faz filosofia nele e bota para escrever

Se tenho uma filosofia é porque acabei de descobrir e é essa

A mente que se apossa de tudo como um Daimon

É ligeiro a forma como se expressa, mas devagar sua insistência

As ideias insistem como escorpiões sorrateiros, vão acumulando e aprimorando veneno

Até que chega um dia que a mente cansa deles e arrasta para o texto tudo o que tem que dizer igual a um carneiro de chifres galopando para atacar o oponente

Ele tem que encher de ar os pulmões e fazer na máxima velocidade nas pernas, com os chifres e o restante do corpo pronto para aquele instante depois de anos de vida

Esse texto foi desse jeito e todo texto é

De uma forma ou de outra, essas férias da mente acontecem porque ela fica brava com os pensamentos

Todo Daimon é assim

E vejo que com quase tudo na vida sou assim

Então tudo isso é só coisa minha

Que talvez sirva para outra pessoa também

Vai que as almas batem igual dois carneiros de chifre

Se não bater, podem tomar emprestado ao menos a necessidade

E sou assim com tudo na vida, acumulo um pouco depois vou lá e bum, resolvo duma vez com perfeição e maestria ou de pouco em pouco para dar certo

Quando é difícil vou de pouco em pouco pelo mais fácil

Quando é fácil é bum atrás de bum

E agora o que cansou foi o texto em si

Que já tem ar de despedida

Ele já vai e só volta quando tudo isso de volta ocorrer

Mas talvez volte logo, porque, apesar de tudo, sinto que não sarei

Ainda penso no que tenho que fazer e nisso e naquilo que me falta

Por isso que dizem por aí que filosofia mesmo não morre nunca e num serve pra nada

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Muito obrigado pela participação. Continue acompanhando e comentando, isso é fundamental para nosso trabalho.

Jayme, Júlio e Paulo.