domingo, 19 de abril de 2020

Cinzeiro

A memória do tempo era um fardo para Maria. Na sala, ela espera. Sentada no sofá com o controle na mão procura o passado, onde o tempo não corria. “Antes tudo era quieto, calmo como cadeira de balanço na calçada. Tenho saudades do tempo”, conversa baixinho com a lembrança. Em cada canto da casa há recordações do que era. O livro de cem anos de solidão do marido, ainda com seu cheiro - fica no lado esquerdo da tela. A xícara da melhor vó do mundo - fica sobre o balcão da cozinha próxima da garrafa de café. O lenço para enxugar o olho que tanto lacrimeja, dado por sua filha - fica no bolso direito do vestido, que fora comprado em família na última reunião de natal dois anos atrás. Na tarde, 15 horas, liga o radinho presente de casamento do primo na estação favorita - foi posto por Joaquim no criado mudo que ficava do seu lado na cama. Ao chegar de noite senta na poltrona favorita do filho para assistir as velhas notícias da televisão e fumar seu cigarro. Antes de dormir veste seu pijama amarelo costurado ao longo do mês enquanto ouvia a programação do rádio. Deita sobre o lado da cama do seu falecido esposo, agarrada ao que sobrou de Joaquim.
No outro dia tudo era igual. Maria temia fazer algo diferente e apagar todo o mundo ao seu redor. Há dias não saía de casa, nem podia. Cada território deveria ser remarcado partindo do quarto à cozinha, do banheiro à sala, do controle à reminiscência. O hábito não deixava esquecer. “Amar é guardar na memória”, sussurrava o fantasma de Joaquim ao seu ouvido. Na medida em que essa ideia crescia, Maria era consumida pela rotina. Logo passou a se confundir com os móveis e os lugares, tornando-se um mobiliário só.
Amparando os territórios de suas recordações, Maria passou a alimentar o eterno retorno de si mesma. Tanto o apego aos rastros do passado, quanto a cristalização do seu eu mais pedante, a fizeram esquecer o peso do tempo em sua memória. Os dias estavam distantes, imensuráveis, irreconhecíveis. O agora são as cinzas que lhe restam entre cada tragada no cigarro. O aqui é seu único lar, além de qualquer mundo possível. A história repousa em seus rastros. Daí em diante Maria habita o sofá, o livro, a xícara, o lenço, o vestido, o rádio, a cama, o cigarro, o controle e as cinzas.

Paulo Victor de Albuquerque Silva.

3 comentários:

  1. Parabéns! Belo texto! Retrata a realidade de alguns.

    ResponderExcluir
  2. Obrigada pelo belo texto; faz-se necessário termos vontade de vivenciamos outras realidades que nos chegam...

    ResponderExcluir
  3. Parabéns Paulo Victor, muito bom o texto. Abraços e que Deus te abençoe

    ResponderExcluir

Muito obrigado pela participação. Continue acompanhando e comentando, isso é fundamental para nosso trabalho.

Jayme, Júlio e Paulo.