Antes, o fogo, hoje um aquecedor a gás
Antes as paredes de uma caverna, hoje teclas virtuais
Antes a própria caverna, hoje um quarto
Antes a caça, hoje o supermercado
Antes grunhidos, hoje linguagem
Antes o riso, hoje bobagem
Antes Homo, hoje nem Sapiens
Antes estranhos, hoje se batem
Antes a flama que cria, hoje destruição
Sicrano, ano 58.045 A.C, estava lá onde se chama hoje Serra
da Capivara, Piauí
Um dos maiores acervos pré-históricos do mundo
E pré-histórico quer dizer que é um período de maior acervo artístico
cultural que a humanidade já teve
Sim, nem mesmo após a civilização,
Mesmo depois da civilização,
Passamos mais anos sendo artistas do que de fato sabemos,
Sapiens, Sicrano enveredava no meio do mato
Hora de caçar uma capivara gigante com seu bando
Devia ter uns 3 metros e uma tonelada de carne
Os habilidosos na arte do assovio e grito ficavam acocorados para confundir o bicho
Sicrano arrastava a mão na areia, metia na cara pra ficar da
cor das pedras
A capivara cavalgava em direção à rocha que piava com os
bichos sapiens
Lanças e mais lanças arrebatavam o bicho encantado pelo
assobiar artísticos daquela rocha
A capivara seguia inebriada pelo som daquelas canções de
assovio
Refeição cozinhada artisticamente, ponta de lança feita
artisticamente, bicho morto artisticamente
Até os sapiens, a capivara, arrebatada, carcomida, só
esqueleto eram artísticos
Sicrano pega a sua parte, a sua arte, volta pra caverna onde
está há algumas gerações ali, sem mudar
Era um conforto sem igual, aquela caverna bem cavada,
picada, feita
Sicrano aprimorou ali o que seus antepassados faziam
Seus antepassados eram tão grandes quanto os antepassados
nossos
Mesmo de inúmeros outras espécies homo extintas, cruzamentos
e sacríficios
Eles tinham a mesma quantidade ou muito mais antepassados
que nós
E Sicrano vê o seu tropeço ainda quente, quando tinha ido
meter a lança fatal no bicho
O sol escaldante, ele vê no rastro o próprio desenho do
animal que fora abatido na caça
Entra na caverna junto com o resto
Todos em volta da fogueira artisticamente trabalhada
Felizes? Não, tensos. Sabem que haverá revide
Capivaras gigantes revidam no ponto fraco preciso
Logo, logo vão perder muitos ou todos e já era
Sicrano limpa suas mãos de sangue na caverna calcária ao lado da
fogueira
Todos tocam timidamente e assoviam, medrosos e ansiosos pelo
dia seguinte
De novo, o rastro vem na cabeça de Sicrano
De novo, Sicrano vê agora o animal abatido na marca do sangue na
parede
Mas agora é de perfil
O seu coração na verdade pulsa seco
Sai pela boca, está com medo daqueles grunhidos que ouvira
agora há pouco
Caçou mas não tem fome
Mostra pra outro, pra outra, pergunta se ali vêem o mesmo
Uns dizem que vêem a felicidade da Capivara rindo
Outros dizem que vêem o animal enfurecido
Outros apenas o animal dormindo
Na imagem do sangue, durante o banquete, cada um diz ver algo no
Rastro e na Marca
Sicrano havia sido ensinado de geração em geração uma
técnica
Fazer a forma na parede calcária antes de aplicar tinta
Uma parede maleável como a realidade que vive
Moldava e fazia flutuar as técnicas aprendidas
Ele começa a anatomia dos bichos
Molda o muro e faz dele carne
Exagera o falo dos Sapiens para compensar o medo
E para exagerar mais ainda, Sicrano coloca a capivara anatomicamente
pertinente no meio daquela fogueira
Sicrano e muitos dos seus jamais pintaram a cor verde
Daltônicos? Superstição? Capricho artístico?
Sicrano pintava falos e capivaras, tatus e preguiças muito
maiores que eles, simples sapiens em volta da fogueira
Quando vi Sicrano a primeira vez, ele tinha acabado seu
afresco
Colocava para fora o medo, a boca seca, o coração pulsante,
A arte era coletiva, tal qual pichar muros
Ele dominava em sua criação não só o fato
Não só a emoção e o medo de perder tudo
Não só os falos e a capivara gigante
Ele também homenageava o animal
A dor una de existir
Ele era uno com o sofrimento
Sicrano tal como eu criava para entender e entendia para
criar
Quando vi Sicrano a primeira vez, cerca de 58 mil anos atrás
Ele me disse apenas com imagem tudo isso que conto agora
Sicrano tinha lágrima nos olhos
Eu tinha lágrima nos olhos
Eu tinha 8, Sicrano 58.004 anos
Ele cutucou com um galho e me mostrou as marcas na parede
Sabia que queria me perguntar o que eu via
E hoje eu sei que eu via a liberdade
Hoje eu sei que eu via a criação
A partir dali nunca mais parei de criar
Sicrano sorria e saiu junto com a poeira das andorinhas, às
17:35 no alto do Boqueirão
A marca de Sicrano tá até hoje lá
Eu, tal como Sicrano, andei filosofando, lendo, escrevendo,
pintando, caçando
Eu, tal como Sicrano, andei criando, porque no fim é isso
que mais importa
E só hoje pude, tal como Sicrano, meter a mão na areia, me
disfarçar, abater, interpretar uma marca e perguntar o que os outros acham.
Só hoje, me toquei, tal como sicrano, que algo pulsa em
mim numa vitalidade de milhares de anos.
E, tal como sicrano, nesse texto, tou homenageando, me
distanciando, vivisseccionando animais, feridas, dores, momentos, memórias. Tal
como Sicrano fazia com os seus antepassados e, a partir dele, criei algo em mim
que não cessa de criar.
Jayme Mathias
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