domingo, 18 de outubro de 2020

Máquina de moer bois


Eu não passo simplesmente pela Osório de Paiva, eu corro sobre ela. No volante, minha atenção está direcionada ao sinal, ciclista, carro, buraco, meio fio, cooper, pisca, moto, freio, ônibus. A avenida Osório de Paiva, para quem dirige o automóvel, não é a mesma para quem caminha. Quando nela ando vejo o carrinho de doces do Dé, cachorro morto no meio fio, roupas de ginástica emolduradas em corpos que correm, sinal, plantas, mato, ciclistas, churrasco, rachaduras na calçada. Eu simplesmente passo sobre a Osório compondo seu quadro.
Em tantas idas e vindas sempre me deparo com ele. Vem andando sobre o lado direito do meio fio respeitando a direção do fluxo do trânsito. Quando chega no desvio, retorna, ainda em respeito ao novo fluxo que não é uma volta mas somente o outro lado do meio fio. Tem o ombro direito mais elevado que o esquerdo, fazendo com que seus passos respeitem a velocidade de seu desvio corporal. Blusa marrom, não sei se devido ao tempo, calça cinza e empoeirada pelos agoras da calçada. Nunca olhei para os seus pés, não sei se usa sandálias, se caminha descalço, se percebe o chão. No rosto, nenhum sorriso, nenhuma lágrima ou dúvida, apenas a certeza do caminho, a avenida do sempre igual. A pele suja e a cabeleira amontoada em grandes blocos de cabelos concentrados de oleosidade, numa espécie de colmeia capilar, anunciam os longos anos de cuidado com sua trajetória.
Ele caminha. Em meio a tantas incertezas, desejos, procuras, atrasos e disputas, entre acidentes de vida e morte, ele caminha na certeza do seu lugar. Anda sobre o meio fio como o equilibrista sobre a corda no abismo que paira a Osório de Paiva. Nunca o vi parado conversando, observando, cheirando, contemplando, respirando, nunca o vi parado.
O homem que caminha sobre a Osório nunca é percebido, logo, não é interrompido. Seu perímetro é um fragmento da avenida. Ele circula um trecho de vida. Ele movimenta-se não como o Flâneur, não observa a vivência das ruas, antes, ele é o ser pulsador na artéria aberta transitória da periferia de Fortaleza. Sua casa é o passo, a jornada para chegar no mesmo lugar.
Em uma cena do filme de Walter Salles “Abril Despedaçado”, o “menino” questiona seu irmão se a vida de sua família não seria semelhante a dos bois que fazem a máquina de moer funcionar devido ao seu movimento eternamente circular. Pergunto-me o quanto nossa vida é maior do que a atmosfera da Osório de Paiva e se, afinal, o homem que caminha sobre a Osório realmente seria o boi.

Paulo Victor de Albuquerque Silva

5 comentários:

  1. Que texto maravilhoso!!! Parabéns pela percepção tão detalhada do "outro" e do Mundo!!!

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  2. Um texto com um quê de poesia. Parabéns por nos fazer ver através do seu olhar.

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  3. Eita que beleza de texto (crônica)!É sempre muito bom a leitura de um excelente texto 👏👏👏👏👏

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Jayme, Júlio e Paulo.