Eu não passo simplesmente pela Osório de Paiva, eu corro sobre ela. No volante, minha atenção está direcionada ao sinal, ciclista, carro, buraco, meio fio, cooper, pisca, moto, freio, ônibus. A avenida Osório de Paiva, para quem dirige o automóvel, não é a mesma para quem caminha. Quando nela ando vejo o carrinho de doces do Dé, cachorro morto no meio fio, roupas de ginástica emolduradas em corpos que correm, sinal, plantas, mato, ciclistas, churrasco, rachaduras na calçada. Eu simplesmente passo sobre a Osório compondo seu quadro.
Em tantas idas e vindas sempre me deparo com ele. Vem andando sobre o lado direito do meio fio respeitando a direção do fluxo do trânsito. Quando chega no desvio, retorna, ainda em respeito ao novo fluxo que não é uma volta mas somente o outro lado do meio fio. Tem o ombro direito mais elevado que o esquerdo, fazendo com que seus passos respeitem a velocidade de seu desvio corporal. Blusa marrom, não sei se devido ao tempo, calça cinza e empoeirada pelos agoras da calçada. Nunca olhei para os seus pés, não sei se usa sandálias, se caminha descalço, se percebe o chão. No rosto, nenhum sorriso, nenhuma lágrima ou dúvida, apenas a certeza do caminho, a avenida do sempre igual. A pele suja e a cabeleira amontoada em grandes blocos de cabelos concentrados de oleosidade, numa espécie de colmeia capilar, anunciam os longos anos de cuidado com sua trajetória.
Ele caminha. Em meio a tantas incertezas, desejos, procuras, atrasos e disputas, entre acidentes de vida e morte, ele caminha na certeza do seu lugar. Anda sobre o meio fio como o equilibrista sobre a corda no abismo que paira a Osório de Paiva. Nunca o vi parado conversando, observando, cheirando, contemplando, respirando, nunca o vi parado.
O homem que caminha sobre a Osório nunca é percebido, logo, não é interrompido. Seu perímetro é um fragmento da avenida. Ele circula um trecho de vida. Ele movimenta-se não como o Flâneur, não observa a vivência das ruas, antes, ele é o ser pulsador na artéria aberta transitória da periferia de Fortaleza. Sua casa é o passo, a jornada para chegar no mesmo lugar.
Em uma cena do filme de Walter Salles “Abril Despedaçado”, o “menino” questiona seu irmão se a vida de sua família não seria semelhante a dos bois que fazem a máquina de moer funcionar devido ao seu movimento eternamente circular. Pergunto-me o quanto nossa vida é maior do que a atmosfera da Osório de Paiva e se, afinal, o homem que caminha sobre a Osório realmente seria o boi.
Paulo Victor de Albuquerque Silva
Parabéns pelo belo texto de hoje.
ResponderExcluirQue texto maravilhoso!!! Parabéns pela percepção tão detalhada do "outro" e do Mundo!!!
ResponderExcluirMuito obrigado pelos elogios!
ResponderExcluirUm texto com um quê de poesia. Parabéns por nos fazer ver através do seu olhar.
ResponderExcluirEita que beleza de texto (crônica)!É sempre muito bom a leitura de um excelente texto 👏👏👏👏👏
ResponderExcluir