domingo, 6 de dezembro de 2020

Desperdício

No desdém que o cotidiano tem ao homem de pensamento, houve certa vez uma roda de conversas.

Estavam todos a gabarem-se de seus afazeres e ocupações que trazem o dinheiro, pois dessa forma é que todos querem muito poder. 

Cada qual fervilhava no ardor quente das gabações e vantagens a serem contadas, esforçavam-se para chamar atenção do quanto eram aplicados em suas profissões. 

- Sabe, fui promovido ontem e o chefe vai dá um churrasco pra gente comemorar lá na firma.

- Uau, isso merece um brinde com Chivas.

- Uau, é mesmo. Vou buscar.

E, por detrás das amarguras reais, um homem de pensamento apenas pensava:

"Quantos demônios ainda terei de expulsar de dentro de mim para que essas pestes saiam da minha vida? Quantos ainda tão desconhecidos vão me atormentar? Quero expulsá-los do nada para lugar nenhum para ver se ao menos sangram por algo que não seja preço e números. Não observo muito bem nenhum deles, mas existe ainda luz até no nada?"

No entanto, como que encerrando o assunto, aquelas cabeças voltaram-se com desprezo para ele que ao menos aparentemente e inocentemente nada fazia. E  passaram a fazer valer o mal-estar de seu ócio. 

Ao que o homem de vita contemplativa, para usar um termo mais filosófico, afirmou docemente - com ar de sobriedade de quem trouxe aqueles pensamentos de cumes bem altos e cheios de neve - e como quem odeia com modéstia suficiente para ser um guerreiro em palavras. 

- Bem, eu vos responderia, não faço eu nada? Pois bem. Ousem, sair dessas fervuras egóicas, ousem sair de suas comodidades que querem tanto encobrir com finanças, isso que em excesso torna evidente a vossa insegurança. Ousem tecer em seus espíritos a liberdade, não essa de proatividade que tanto esquentam vossos couros com chibatadas abstratas que vocês se orgulham com o nome de trabalho, mas parecem mais macacos no trono cheio de lama! Ousem ministrar não respostas, afinal vocês têm muitas, mas perguntas silenciadas por conhecimentos que beiram a loucura. Ousem admitir a náusea da descoberta de uma ideia em seu corpo e, depois de muito tempo, ousem aquela suprema alegria, da ideia de gerar um modo de vida próprio, um valor próprio. Ao fazerem isso verão que jamais quem assim vive está de férias, jamais encerra o ato de pensar, jamais deixa de incomodar-se nem mesmo nos seus sonhos. Verão ainda que não temos quase nenhuma recompensa material. Nada que possam dizer férias. Nada que nos faça assumir de fato o orgulho de sequer "ter algo", pois percebemos o domínio que nos encobre e que nos utiliza como instrumento, bem como as entranhas capazes de nos fazerem forasteiros. E verão que tão hábeis para a guerra somos também hábeis para a fuga.

Calaram-se todos, desconversaram como covardes. Quem é lá debaixo não sente o fogo da coragem, querem sempre a novidade. Eles simplesmente mudaram de assunto. Enquanto ele ainda pensava:

"A vida nos pega pela mão e nos ajuda a entender da melhor forma que podemos, ela nos deu a melhor forma que podemos e o que há por aí é muito desperdício."

Jayme Mathias Netto

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